domingo, 26 de agosto de 2012


Simbiose





Enquanto vestia as meias, aparvalhado sempre por nunca achar os pares certos, melhor sair com um de cada cor, a calça encobriria, não seria visível.
O relógio no pulso, feito um juiz severo, a cobrá-lo pela negligência e atraso. Sabia como seria a reação, o rosto contrafeito, o silêncio mordaz, acusatório, a falar mais que as palavras eventualmente proferidas. Andariam lado a lado, em constrangedor silêncio, numa muda punição.
Aos poucos teceram aquela teia enervante. Como ele trabalhava meio período, a apanhava à porta do prédio do serviço dela, para tal, contudo, ou saia para o encontro com tempo ou precisaria contar com condução, ônibus ou metrô. Conheceram-se na faculdade, primeiro ano na mesma sala, no estágio básico, depois cada qual em sua opção de carreira. A convivência gerou o namoro, os sorrisos dela, o seu jeito encantador de menina, pele morena e o corpo mignon, o seduziram.
Brincalhão, certo dia pediu desculpas pelas brincadeiras mais ousadas com ela, pensando em respeitá-la como alguém compromissada que sabia ter um namorado, embora nunca os tivesse visto juntos. E ouviu a confissão, ela também adorava a presença e os jeitos dele, estava iniciada, oficialmente, a relação. Do outro nada mais soube.
Jovens, primeiranistas de faculdade, dividiam lanches, andavam a pé, enamorados, esperando o ônibus, não sem antes falarem “enes” vezes ao telefone durante o dia. Coisas triviais, detalhes, amenidades de namoro.
O que o afligia, contudo, era o ter se distanciado de tudo e de todos, respiravam unicamente o mesmo ar, pareciam serem únicos, dois em um.
Aquelas correrias para buscá-la, acompanhá-la, viverem um para o outro, com todos os finais de semana grudados, na casa dela. Começou a cansá-los, sobretudo a ele, pela imposição de buscá-la, cumprindo horários, no que não primava pela pontualidade, azedando a convivência.
Aquele encanto inicial o estava escravizando, o mantinha cativo, distante de qualquer relação com amigos, sufocava. Sentia-se cada vez menos ele mesmo, sem privacidades. Em verdade já não existia rotinas que não se entrelaçassem, não se sabendo o que era de quem, dele ou dela. Eram personagens únicos de uma mesma história, onde o mundo funcionava como pano de fundo, coadjuvante.
Os passos dela, eram também os dele, confundiam-se. O “eu” dele, imerso nela, sufocados. Seus dias, os dela, sem vida social, ilhados em seu universo restrito, onde qualquer possibilidade de intromissão era risco à intimidade. Ambos viviam uma bolha perigosa, desgastante, perdendo as relações sociais com os demais, afastados naturalmente do casal.
Um dia, ele resolveu, finalmente, verbalizar o que sentia, queria um tempo, não o fim do relacionamento, apenas um espaço para si mesmo. Continuariam juntos, sim, mas com mais independência de lado a lado.
Foi ouvido sem reprimendas, no silêncio dela o inescrutável de suas deduções, as piores possíveis, deduziu depois.
Os olhos dela, negros e graúdos, encheram-se de reprimidas lágrimas, parecia que pedia o fim do relacionamento e não apenas uma moderação na convivência, o que seria salutar a ambos. Não conseguia entender que a razão nem sempre caminha na mesma via da emoção.





Alguns dias depois, falando sempre ao telefone, mas vendo-se mais espaçadamente, resolveu procurá-la na casa de seus pais, à noite, sem encontrá-la, era sábado. Acolhido pela mãe da moça, já bastante familiarizada com ele, conviva de tantos finais de semana. Acabou dormindo lá, pois a espera pretextada ficou tarde e a condução rareava. Permanecia o coração acelerado e enciumado. Aquilo não estava em seus planos, o sair sozinha, chegando altas horas, estaria, afinal, com quem?
Iniciava-se o suplício das dúvidas. Resolveram que teriam tempo cada um para si, mas experimentava do seu próprio veneno. Ela parecia que rapidamente reconstruíra sua rede de amizades, não faltando programas e diversões. Quanto a ele, distante dos poucos amigos, não estava conseguindo reatar os laços, arrefecidos na distância e no menosprezo anterior. Embora mais aliviado do compromisso de buscá-la e acompanhá-la, exigindo ser pontual e atencioso, não esperava vê-la livre, leve e solta.
E mais, parecia que a distância dele para ela, fizera muito bem... a ela. Aquilo não passava despercebido, irradiava-se no semblante mais vivo, intenso, alegre, transbordando energias naquele rosto tão querido.
Buscou a tranquilidade, encontrou o inferno. Nenhuma noite mais pacífica, a sobressaltá-lo as dúvidas, os ciúmes. Quisera a liberdade, encontrou a prisão. Sentia-a dependente dele, não o inverso, a justificar o seu pedido de distanciamento provisório.
Aquelas lágrimas derramadas, reprimidas, sentidas nas faces dela diante ao seu pedido, cresciam, o inundavam de remorsos, a asfixiá-lo na lembrança. Embora não tivesse, nunca, a intenção de romper a relação, precisando, unicamente, de um espaço para si mesmo.
Não tardou a notícia, não sem antes experimentar angústias e pesadelos, emagrecia a olhos vistos, chorava amiúde. O que temia ocorreu. Apareceu um outro príncipe, solícito e disponível, para aquele coração alforriado de compromisso.
Diante a si restava o desafio de libertar-se, aleijando-se, mas necessário amputá-la de seu Ser, vencer a si mesmo suas resistências, conter a autopiedade que o assolava levando-o ao desespero. Estava infinitamente só, como nunca supusera ser possível.
Reaprender a caminhar com os próprios passos, não a quatro pernas, unicamente as suas, recompondo-se, buscando encontrar-se consigo mesmo e trilhar novos caminhos, sozinho. Tal era o custo da amarga lição pela liberdade.

 

* PUBLICADO NO BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÕNICAS E ARTIGOS LITERÁRIOS - SÂO LUIZ-MA ( + DE SEIS MILHÕES DE ACESSOS NA INTERNET). ILUSTRAÇÕES DE MEL ALECRIM, POETISA E CONTISTA.

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16 comentários:

Anônimo disse...

Comentário de Maria Luiza Silveira Teles:

Lindo conto, meu amigo! Eu, pessoalmente, acho que o verdadeiro amor não pode ser uma simbiose. Cada qual deve ter o seu espaço. Isto é fundamentel e sadio para um relacionamento duradouro. Entretanto, às vezes, quando o outro não compreende vai atrás de outra simbiose...
Abraços e obrigada por esse instante de distração e beleza. Um abraço,
Maria Luiza

(VERSO & PROSA)
17 de maio de 2011 19:08

Anônimo disse...


Comentário de Albérico Silva de Carvalho:

...caro amigo poeta, creio que quando o amor pede tempo, é por que o tempo já saturou o amor, e o cotidiano que se vestir de boas novas. Seu conto é primoroso se veste de beleza e nos encanta.

Parabéns Ediloy, bela construção.
Abraço fraterno!

(VERSO & PROSA)
17 de maio de 2011 23:05

Anônimo disse...


Caro amigo e nobre poeta a (simbiose) por vezes se torna uma faca de dois gumes. Não só pelo fato da convivência, mais, sobretudo, pela dependência (siamesa) criada ou embutida de forma proposital ou intencional. De qualquer forma ser ou virar dependente de algo ou de alguém mesmo que seja por uma causa extremamente justa sempre será prejudicial ao dependente quando este tiver que viver sozinho. O texto nos dá a oportunidade de refletirmos sobre a nossa própria vida, será que ela esta sendo gerida de plena liberdade ou estamos (acorrentados ) ao calcanhar de alguém! Belo tema, parabéns.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
18/05/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...


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Como disse Raul Seixas em uma de suas canções( A Maçã), " O Amor só dura em Liberdade" o que é a pura verdade... não existe amor escravo, amor egoista, amor possessivo, o amor está muito acima de tudo isso, tanto que nos falta capacidade para entendê-lo ou administrá-lo... Magnífico conto( como Sempre)... muitos aplausos...

Grande abraço
Pedrinho Poeta
pedro.poesia@hotmail.com
19/05/2011

(SITE o <DE POESIAS)

Anônimo disse...

Um conto bem bolado, bem narrado e lindamente ilustrado

Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 26/8/2012

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Anônimo disse...

Gostei. Muito bem Ediloy

Comentário Enviado Por: Irene Romero Em: 26/8/2012

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Anônimo disse...

Bicho, toda vez que leio seus textos fico com inveja, você humilha o time B.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 25/8/2012

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Anônimo disse...

Putz, adorei. O cara se ferrou, mas caiu em si.

Comentário Enviado Por: Eleuza Xavier Em: 25/8/2012

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Anônimo disse...

Achei um conto lindo, embora de final infeliz.

Comentário Enviado Por: Ivanete Costa Em: 25/8/2012

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Anônimo disse...

Caro Ediloy, é um conto lindo, sofrido, doloroso até

Comentário Enviado Por: Rebeca Ferreira Em: 25/8/2012

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Anônimo disse...

Quem muito exige e pouco dá em troca, perde o lugar. É a lei da vida.

Comentário Enviado Por: Joana Amaral Em: 25/8/201

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Anônimo disse...

Oi, Ediloy, gostei imensamente. É um conto que encerra muitas lições.

Comentário Enviado Por: Melissa Costa Em: 26/8/2012


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Anônimo disse...

Quem com ferro fere, com ferro será ferido. Coitado!
Você continua muito produtivo, Ediloy. Tem escrito bastante. Parabéns.

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 26/8/2012

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Anônimo disse...

muito bem Ediloy

Comentário Enviado Por: Hilda Canário Em: 26/8/2012

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Anônimo disse...

Um conto bem burilado. Gostei.

Comentário Enviado Por: Alice Matos Em: 26/8/2012

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Anônimo disse...

Triste, porém muito bom.

Comentário Enviado Por: Eliene Matos Brito Em: 27/8/2012

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