quarta-feira, 29 de junho de 2011

CANTOS SOLITÁRIOS


Por que difere a vida
Da enaltecida beleza
Dos sonhos decantada ?

Como se do crânio
Emanações sublimes
Alheios anseios fossem.

Em opostos campos
O real e as ilusões
Muletas, sendo, as fantasias

Nas venturas íngremes
Da realidade dura
Aos caminhantes, consolo.

Então, indago,
Por que as quimeras
Desdenhadas na travessia?

Não se fia o homem, apenas,
Á  fome da matéria
Antes o alimenta

A beleza das cores
Entintando negrumes
 Em calvários floridos

Imaginação vendo delícias
Em precipícios de lágrimas
Nutridas lutas em alegorias

Por que  relegar a fantasiosos
Os que teimam enxergar luzes,
Estrelas em noites escuras ?...

* SELECIONADO PARA FIGURAR NA 80° ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS, CBJE, RIO DE JANEIRO / RJ, JULHO 2011.

domingo, 19 de junho de 2011

O ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS ( conto )

A maneira de enfrentar as crises, impedindo que ela se enveredasse por labirintos pessoais inescrutáveis, tal qual uma âncora, mantendo-a fixada em uma referência, o velho álbum de fotografias a retinha em suas divagações. Bastava  deslizar suas  mãos naquele repositório de memórias  a levá-la em viagens pretéritas, manifestando em seu semblante suas emoções trazidas em cada imagem detalhando um tempo passado, sua história.
 A doença avançara drasticamente, cada vez mais a levando para dentro de si mesma, no isolamento impenetrável a terceiros. Encolhia-se em seu mutismo, sem permitir acessos a outros. O mal de Azheimer manifesto, a princípio pela apatia diagnosticada como depressão, tendo origem na morte do filho de forma inesperada. O choque fora fatal ao seu psiquismo, fragilizada para enfrentar a tragédia, refugiava-se em seu interior.
Brotadas águas do íntimo, mágoas levadas em enxurradas, superadas, esquecidas, ou guardadas na alma. O brilho nas retinas denunciando sensações trazidas ao avistar cada fotografia, demonstrações passageiras, amenas ou intensas, em gestos faciais, incontidas lágrimas escorrendo, molhando, denotando alegrias e tristezas. Único contato com a realidade que, feito ostra, ocultava a pérola racional, mantendo poucas relações com a atualidade dos fatos, quase imperceptíveis.
As páginas do velho álbum tinham a magia de trazê-la, por instantes mágicos, a manifestar-se, por vezes trocando palavras com algum interlocutor, nem sempre presente. Via-se menina, sorridente, feliz, cantarolando cantigas, sorrisos esperançosos a iluminá-la, aparentando sanidade, não fora o tempo vivenciado em outras épocas. Não raro, parecia entreter-se em diálogos com falecidos mostrados naquela seleção de saudosos. Raras oportunidades em que se dirigia a quem estivesse próximo, narrando suas memórias, embevecida, como se voltasse de uma viagem interior secreta e partilhasse seus conflitos.
Aos poucos  os parentes perceberam que aquilo a renascia, fazia-lhe bem, melhor que vê-la, apática, quase vegetativa, distante de qualquer participação. Aconselhados pela terapeuta  que participassem  de suas alucinações, fazendo-a menos só em seus labirintos difusos, trocando a atualidade com o passado.
As cãs dos cabelos manifestando-se prematuramente,  o olhar ora longínquo e distante, por vezes revelando apreensões, necessidades de retornar às fantasias, como refúgio de não enfrentar a realidade. Pouco se deduzia, ao leigo, o que se passava naquela mente dividida entre as duas estações da existência, o passado e o presente.
Como se ela desdobrada, em torvelinhos, registrasse momentos anteriores, transportando-a a outros cenários, amenizando as chagas, limpando o verniz do passado, ressurgindo sentimentos represados.  Vivos no pretérito ajudando- a a não soçobrar de vez, acalentando razões para sobreviver e não se distanciar na perda total da razão.
Desmemorizadas lembranças revividas, como um outro universo, sem a dor da ausência a impedindo de enfrentar seu aguilhão de desconsolos.
Ao vê-la, sopitavam os devaneios, onde criamos asas, voando além dos limites, em cenários utópicos, matizes em cores vivas diferindo da ocre paisagem.  Nestas portas imaginárias, acalentando um porvir ajudando a vivenciar as rotinas alimentadas de esperanças, como crianças à espera do natal.  Ilusões dadivosas, colheitas de sonhos, muletas na travessia, luzes nas trevas dos dias. Companhia e alento aos sós, flores nos caminhos íngremes, noites em temporais suavizados, vulcão interior, incandescente e hostil apascentado na tolerância e a mansuetude da paz. Antídotos gestados pelo próprio organismo para se salvaguardar das intempéries devastadoras. Crianças ocultas em seus refúgios, fugindo de seus perseguidores de pernas de pau, no reino da fantasia.
Assim, adentrando o insondável, permitindo-se hipóteses, talvez inverossímeis para quem  não vivenciasse os fatos, mas necessárias para se entender um Ser prestes a sumir no varredouro da ilusão, perdendo conexões com a realidade. Talvez apenas restasse o corpo, pois a mente, aonde andaria ? 
Naquele solo árido, fantasias eram flores nos caminhos, margeados de espinhos, nutrindo a terra seca de fertilizantes naturais e coloridos. Na tela escassa de luz, desenhavam-se alegorias de vivas cores, incendiando de fervor e de vida o que aparentemente nada existia. Lágrimas substituídas pelos risos, permutas de dores por alegrias.
Como se fora a vida minguar de repente, sem ideais a perseguir, flutuando à deriva, feito um barco, tramas sem enredos em fatos inconcretos. Aquilo registrava a certeza de que se respirar é preciso, sonhar, por vezes, é imprescindível. Nem mesmo a bela paisagem, amena, serena, colocada à janela, a trazia de volta, bafejada as faces em aromas de flores, como um beijo, acompanhada no vento brando nas cortinas.
Figura muda, dissociada de seu momento, ausente. Os ares primaveris rescendidos na brisa morna, vestígios de alguém ou de outras épocas, respirados brandamente, exalados. Página a página, vagarosamente, repetidas inúmeras vezes, em cada receptáculo onde via- se um desfilar de ausentes presentes em seu mundo pessoal e enigmático. Fluídas lembranças, traços indefinidos como pintura abstrata, nostalgias impregnadas na vivacidade dos olhares repentinos e fugazes.
Suas expressões, contudo, pareciam mergulhar em um mundo auspicioso aos seus anseios, pois a revitalizavam, os olhos transmitiam euforias inefáveis e não compartilhadas. Voava livre, desimpedida de amarras, no céu das suas fantasias, em sorrisos maravilhados. Uma menina revivendo tempos felizes e remotos, ou a lucidez de um espírito antevendo o paraíso ? Tudo cogitações impotentes de quem a observava, tentando traduzir o que sentia com suas próprias deduções desprovidas de qualquer fundamento lógico. Como, enfim, aferir o encanto com a medida da sensatez ? Onde as soluções medicamentosas, paliativas, pareciam infrutíferas, tudo parecia válido, compreensível, assimilável.
Aquele conjunto de velhas fotografias amareladas era o seu referencial, mantendo-a vinculada a alguma noção de tempo e espaço. Sem ele, por certo,  a mente liberta vagaria em ignotas paragens, apenas a matéria plausível, envelhecendo, com pálidos registros das suas solitárias viagens desconhecidas...


SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CONTOS DE INVERNO, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, JULHO 2011.   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

AVENTURA NOTURNA (conto)





Raramente freqüentava qualquer bar, ainda mais sozinho. Mas a noite estava convidativa, fustigando a solidão para longe, convidando os sós para a festa. Suave noite de verão, bares abarrotados de notívagos a se refrescarem nos seus risos soltos animados pelos teores alcoólicos de sucessivos copos.
A mesa não era a melhor colocada, mas dizem que quem chega atrasado não pode pegar a janelinha no trem... Sentou-se e esperou pelo garçom trazendo um chope de gola larga, sorveu o líquido com a sede de um perdido no deserto, seria o primeiro de uma série. Olhares vasculham o ambiente, perscrutando os espaços, levando a mente a devaneios distantes, além da fixa visão. Como se reconhecendo a área, palmilhando o terreno em que se situava, sentindo o clima. Além dos alaridos dos convivas, entusiasmados em seus grupos, nada a identificar que soasse estranho, tudo perfeitamente reconhecível na alacridade daqueles momentos. Não era lugar requintado, apenas para encontros em turmas, para conversas descontraídas e namoros. O som, pelo menos, não irritava os tímpanos, soava brando, na voz de uma jovem com seu violão em acordes melodiosos. Tudo tranqüilo, ensejando que na companhia de uns goles encontraria um regalo em seu íntimo, imperturbável em seus solilóquios. Ali ficaria em seu mundinho respirando em haustos o sabor da tranqüilidade, não fosse a fisiológica necessidade de urinar, pois tudo que entra tem que sair, e, na contabilidade, tinha mais entradas que saídas, estava cheio.
Ocorre que a demanda por uma mesinha ficava acirrada, qualquer descuido poderia perder o trono, como em baile da vassoura que levam a sua dama e tomam a sua vez, deixando-o na tarefa de buscar nova companhia, no caso de um lugar privativo. E olhava para os lados como quem se vê cercado de ladrões, prontos a darem-lhe o golpe e o deixarem em pé, no desconforto. Mas bexiga contrafeita, cheia como balão de gás, incomodava outro tanto, reclamando alívio. Pensou em deixar algum objeto sobre a mesa, mas qual ? Era calor não levara blusa, nem guarda-chuva pois não tinha chuvas, a carteira – pensamento alucinado, nem pensar, por razões óbvias, seria um donativo. E agora, Mané ? as pernas já se encontravam como a querer reter o perigo de iminente inundação nas calças, que fazer ? Pensou em recorrer ao garçom, já suando nas têmporas, mas o via atazanado com a azáfama de tantos pedidos, equilibrista de bandeja repleta de copos e pratos, e desistia. Poderia, num extremo de generosidade, convidar alguém sozinho para partilhar a outra cadeira, na verdade a única sobrevivente, pois, além da sua, foram delicadamente requisitando as demais, mas o preço de perder a privacidade, exatamente o que buscava, o impedia do convite. Não se tratava de caridade, nem pensar, mas sim de alguém que garantisse a sua própria vaga ameaçada, pensou consigo mesmo: vão se os anéis ficam os dedos...
E assim, resoluto, fez sinal a um homem que bebia apoiado no balcão, sinal convidativo, com a cabeça, querendo ser sutil. O homem olhava para ele e não entendia a sua generosa intenção, com a insistência respondeu à distância, também em acenos, o que parecia ser não gostar de homens, era hétero, mostrava a aliança no dedo... que pavor, quisera fazer uma gentileza e foi tomado à conta de um perdido na noite à procura de um parceiro ? Corou-se de vergonha, pensou até em tirar satisfação, o que poderia ser perigoso, deixando vaga a cadeira. Que se danasse aquele ingrato ! Ainda se fosse um garboso garoto, mas um homem de meia idade... peraí, “garboso garoto”, se estranhava, seria o efeito da oitava rodada de bebidas ? Nem pensar ! Jamais poderia passar-lhe pela cabeça tal deslise, ia se benzendo para afastar inoportunos pensamentos, mas disfarçou. Benzer-se em mesa de bar ? Nem macumbeiro ! Aproveitou a mão já alta sobre a testa para enxugar o suor, porejando, exigindo providências imediatas, recado das partes baixas de seu corpo, tomado de arrepios intermitentes.
Em último caso, iria ao banheiro e perderia a vaga, o que não dava mais é postergar a medida. Se perdesse o posto, discretamente pagaria a conta e tomaria outro rumo, afinal eram ainda duas da madruga e a noite é uma criança, tomaria outros rumos... Até se admirava por tanta determinação, visto que costumeiramente não saía só, era uma novidade, totalmente ousada, que parecia tê-lo conquistado por adrenalina jamais experimentada.
Quando fazia menção para afastar a cadeira, com o intuito de levantar-se, alguém o interpelou delicadamente...

- Posso me sentar, você está só ?

Era uma mulher, nem feia nem bela, igual à maioria, nada que a salientasse, na verdade primava pela sua privacidade, pois a fulana poderia alugar seus ouvidos para assuntos alheios, desabafos e coisas que não o interessavam, mas era também uma alternativa, teria o lugar reservado, além do que, o cara do balcão veria que ele não é um gay em busca de aventuras... somando à contingência de ter que se dirigir ao banheiro com imprescindível necessidade, concordou.

- Sim, estou só, pode se sentar e ficar à vontade, se me permite, vou ao toalete, retorno logo ( espero !)...

- (com voz melíflua) posso pedir uma bebida para a mesa enquanto você se ausenta ?

(levanta a mão para o garçom, autorizando em gestos para servi-la)

- Pode sim, com licença...

Cambaleando no sinuoso trajeto entre as mesas, dava-se conta de sua embriaguês inabitual, constrangendo ocupantes de mesas vizinhas, com um pedido melindrado e envergonhado de desculpas pelos encontrões no caminho, a parecer interminável..

Pensou em perguntar aonde ficava o banheiro masculino, quando presenciou extensa fila, que julgava ser do caixa, mas era exatamente o que temia...

- Ô gordo ! Olha a fila !

( além de ser chamado de gordo, o que detestava, a espera lembrava filas de atendimento na saúde pública, calamitosa !)

Parecia que todos resolveram se esvaziar ao mesmo tempo, porejava a testa em suores frios, fazendo-o passar um guardanapo nas têmporas para conter a sudorese incômoda.
Tentava fugir dali, em pensamentos, esquecendo-se por instantes da premência de desaguar...a mente tudo controla, raciocinava apaziguando o desconforto.

- Ô gordo , a fila anda...

( desta vez não se sentiu ofendido, era o aviso de que chegava, finalmente, a sua vez)

Aquele ambiente simpático, com música ao vivo, iluminação planejada, era o contraste com a visão do banheiro masculino: espaço coletivo para a urina e biombos com portas desajeitadas para as outras necessidades. Papel higiênico servindo de toalha, espalhando fiapos pelo chão, já umedecido pelos afoitos nos respingos de suas armas.
Deixara naquele local nauseante boa parte do que consumira, saía, por fim, aliviado.

Caminho de volta, a procura da mesa que partilhava com uma providencial desconhecida. Esperava que ela não fosse uma chata, a usá-lo como ombro amigo para suas desditas, tudo menos ser um psicólogo na madrugada...

Ao avistá-la, assustou-se. A mesa que tinha antes um copo de chope, apresentava-se sortida com cálices de diversas cores. Como ela poderia ter consumido tanta bebida em tão pouco tempo ? ( nem tão pouco assim, olhava o relógio, ficara retido entre ida, espera , uso do sanitário, mais de uma hora e meia) Ainda assim era muita coisa para uma pessoa só.

- Oi, demorei ?

- Tudo bem, imagino a fila do banheiro... ( falou sem muito interesse)

- Imensa fila ! ( olhando os copos, cinco taças) – Você aprecia muito vinhos ?

- Pois é, vinhos, licores e whiskes .

( espanta-se ao vê-la levantar a mão para o garçom)

- Ainda vai beber mais ?!

- Ora, por que não, a noite é convidativa, tenho sede..

- Eu só tomo chope... mas acho que exagerei, mal consegui chegar até o banheiro...

- (rindo discretamente) – Eu vi a dificuldade... Não quer experimentar um pouco do vinho da casa, é divino !

- (fazendo que não com a cabeça) – Peço mais um chope, vou bebendo aos poucos...

- Olha, assim que o garçom chegar será a minha vez de ir ao toalete, ok ?

- Claro...

Depois de bebericar mais uma taça, levantou-se com desenvoltura, nem parecia uma dama que tinha bebido tanto. Envergonhou-se de sua fraqueza com os chopes no hilário trajeto que fizera até o banheiro.

Olhou o relógio e surpreendera-se com o adiantado das horas, quinze para as quatro da madrugada. Esperaria ela chegar, acertariam a conta e iria para casa, estava satisfeito com sua primeira aventura individual.

Pediu mais um chope, mas já não demonstrava tanto sabor, perdera o paladar, bebia para entreter-se, deixar passar o tempo.

E os ponteiros do relógio já assinalavam quatro e meia, e nada da mulher retornar à mesa, estranhou a demora. Verificou que ela levara seus pertences, uma blusa leve e a sua bolsa.
Achou por bem que fechassem a conta, acertaria seus chopes, ela que pagasse seus drinques quando chegasse...não havia mais o risco de perder o lugar, pois o local já não estava repleto como antes...

( Ao garçom) – Por favor, feche a conta, veja quanto chopes eu tomei...

- Chopes e vários drinques, senhor, estou certo ? Não é esta a mesa 14 ? (falou olhando um marcador existente)

- Sim, os chopes são meus, os drinques daquela mulher que sentou-se aqui...

- Mas ela, ao sair, disse-me que o senhor acertaria tudo....

- Sair ?! Ela não foi ao toalete feminino ?

- Foi este o recado que deixou na recepção, aliás, tenho um bilhete para o senhor...

(lendo desconsolado para si mesmo):

“obrigado por tudo, você foi especial. Não me chateou com suas prováveis amarguras, deixou-me só para pensar nos meus problemas e também me proporcionou um lugar discreto, longe de intrusos que não podem ver uma mulher sozinha, foi um cavalheiro.
Obrigado pela gentileza das bebidas,

Beijos !!!


(TEXTO SELECIONADO PARA A ANTOLOGIA DE CONTOS DA MADRUGADA, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, MAIO DE 2010)
   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

A JANELA ABERTA ( TEXTO P/TEATRO - 1 ATO EM 5 CENAS)



(LUZES DE SIRENES POLICIAIS E DE AMBULÂNCIA

VOZ EM OFF:    Atenção há dois feridos graves no interior do ônibus, parece que um meliante ainda está dentro do veículo, ficou preso na catraca em atitude suspeita , os demais evadiram-se do local...

(BARULHO DE UMA CELA SENDO ABERTA)

- Fique ai, que é o seu lugar !!!    ( empurrando o homem para dentro)

( encolhido, como se estivesse alheio ao que acontece) – Que será isso ? Meu Deus, deixei a janela aberta, se chover de novo, perdemos tudo como antes, por que fui esquecer de fechar a
janela ?

(olha ressabiado pelo local e senta-se, tímido, com as pernas cruzadas no peito, a cabeça baixa, como se falasse sozinho:

- Maria saiu cedo, levou a Aninha, hoje é dia de passar a roupa na casa da dona Matilde, pelo menos terão uma refeição completa, vai chegar tarde, tenho que voltar antes    da chuva, a janela ficou aberta...

- ( preso 1 se aproxima) – Ô chapa, qual foi a bronca ?

(silêncio)

- Curió, panaca, qual a tua bronca ?

-Sei não... ( respondeu assustado)

( Com voz ameaçadora)- Se fazendo de bobo, ou tirando uma com a minha pessoa, desgraçado fudido ? 

- Não senhor, não sei o que está dizendo...

-Quer dizer que está aqui de anjo, caiu do céu ? ( gargalhadas compartilhadas pelos outros 3 na cela)

( tremendo, sem saber o que responder)

- ( preso 2) – Deixa o traste, mano, o bicho ta mijando de medo...um bosta !

(risos) ( preso 1) -    Cuzão !    Bunda mole, viado !

- Toma ! ( preso 3 estende um cigarro) – fuma, que bom, relaxa, tu tá tremendo como vara verde, daqui a pouco tem um treco aqui e vai dar trabalho...e olha que eles não tão nem ai com a gente...

- Obrigado, moço, não fumo...
(preso 1) – Não fuma, não bebe, será que mete ? ( gargalhadas)

(ameaçador) – Tu quer falar o teu nome ou vamos te chamar de cuzão mesmo ?

-Antonio Francisco da Silva...

(gargalhadas) – Tu tá fudido, entrega rápido as coisas, quero ver a língua solta com os meganhas... Eles nem vão ter trabalho contigo, um merda ambulante...
Esses cuzões se borram e dão com a língua nos dentes, alcagüetes de merda ! ( levanta a mão como se fosse agredir)

( Preso 2 ) - Relaxa, Mano, o cara ta apavorado, não vê ?

(Preso 1, insistente, pega o homem que está sentado e o levanta devagar) – Tem que me dizer, o que tu fez, cagão ?    Aqui não caem anjos, só gente escolada, do crime, tá sabendo ? Então vai dizendo logo tua bronca, que tô perdendo a cabeça...

(Antonio) - Não sei ao certo... por favor, estou falando a verdade, me trouxeram para cá, pensei que me tiraram do ônibus para me socorrer mas me botaram na viatura, ninguém quis saber o que tinha para dizer...

- (Preso 1, sarcástico) – Jura, Não diga ! Ta ficando engraçado, ajuda a passar o tempo, e olha que temos todo o tempo do mundo para ouvir a tua versão dos fatos....des-em-bu-cha !!!

- Moços, eu juro que não sei ! 

( Preso 1) – Será que vai ter que tomar porradas para soltar a merda da língua ?

(vacilante) : - Eu estava no ônibus, não tinha o dinheiro todo para a passagem, acho que deixei uma moeda em casa, na pressa, além da janela que deixei aberta, sai sem o dinheiro todo da condução...mas o ônibus estava cheio e já ia longe de casa, então falei com o cobrador e ele concordou em me deixar passar por baixo da catraca... mas , quando tentava passar, houve uma confusão, tiros, todos correram de dentro do ônibus e eu fiquei preso na catraca, no chão...
Ouvia gritos e janelas sendo quebradas, todos queriam sair, eu fiquei preso na catraca, não entendi o que estava acontecendo... 
Depois chegou a polícia, me tiraram de lá, pensei que iam me socorrer, mas me algemaram...haviam atirado no cobrador e no motorista, foi um assalto... Os dois estavam    debruçados, um na direção e o outro sobre a caixa, sangue escorrendo...
Acho que me confundiram com um dos assaltantes e estou aqui... eles vão ver que houve um engano, sou um trabalhador, desempregado mas trabalhador, entendem ?
...preciso voltar para casa antes que chova, a última chuva inundou tudo e perdemos todas as nossas coisas, estamos dormindo no chão...eu deixei a janela aberta...

(silêncio quebrado pelo preso 2) – Cara, tô acreditando na tua narrativa, tu se fudeu de verde e amarelo, os dois, motorista e cobrador abotoaram os paletós, o povo se escafedeu do local, quem vai testemunhar a teu favor ?

(preso 3) ...pobre é assim, cagado de arara, sai para buscar um trampo e arranja encrenca mesmo sem querer...

(Antonio, alheio como se falasse para si mesmo): - Alguém que estava lá me viu e sabe que não atirei em ninguém, nem sei como se atira...ainda por cima a janela ficou aberta...
´
( Preso 1) – a casa tá caindo em tua cabeça, curió de merda, e você    pensando nesta porra de janela aberta?!...

( Antonio) ...se chover inunda, o barranco fica nos fundos e a água desce, por que esqueci aquela janela aberta, meu Deus ?!

( Preso 4)...deixa ele em paz, o cara ta pirando, é o principal suspeito de um latrocínio e ainda se preocupa com uma janela que ficou aberta, deve ser fome... escuta, quando tempo faz que tu não come ?

- (Antonio) ...tô acostumado a ficar sem comer, nem sempre dá para a comida não, principalmente quando não tem nem bico para fazer...vim atrás de uma vaga em uma construtora, faço qualquer coisa como ajudante de pedreiro...
( Preso 1) – Toma um naco de pão, fudido, quase te arrebento de porradas, mas não é da nossa turma não, teu terreno é outro, cara...

( Antonio aceita) – Obrigado, moço, fiquei tão apavorado que deixei a minha marmita lá no ônibus...um arrozinho com ovo e um pouco de farinha mas que dá pra quebrar o galho... a minha companheira hoje trabalha em casa de uma senhora,que deixa ela levar a menina, então comem bem, almoço e janta 

(preso 2) – tu sabe ler ?

(Antonio) Pouco mas sei...

(preso 4) – Te cuida, não vá botando sua assinatura em qualquer papel que te botarem na frente, pode estar assinando bronca grossa, aí, tu que entrou de gaiato nessa história,acaba fichado como criminoso...

(Antonio) – Por Deus, moço, sou honesto...

(preso 2) – Tá se vendo que sim, cara, mas as evidências... torça para que achem mais alguém que participou desse assalto e o cara tenha coração para não te fuder junto, senão...

(preso 3, conciliador) – Este mundo nosso não te serve, não sobreviveria a isso, cara... se pedirem para assinar tente ler o papel, se não entender peça explicações, sem tiverem um pouco de paciência te darão um pouco de atenção, do contrário... para eles todos os que caem aqui são bandidos...

( guarda bate na grade) – Quem é Antonio Francisco da Silva ?

( LUZ CAI)

CENA -2

(Sentado frente ao escrivão que bate a máquina)

- Seus pertences, algumas moedas, a identidade e uma carteira profissional em branco como documentos ?

- Sim, senhor...

- Trabalha ?

- Sim, senhor, no momento estou desempregado, mas...

- E quando trabalha faz o que ?

- Serviços gerais na construção civil, ajudante de pedreiro...

- Nome da empresa ?

- Faz tempo, não lembro não, fui contratado por empreiteira...

- Nenhum registro ? ( folheando a carteira de trabalho)

- Tinha, mas a água estragou tudo com a inundação...tirei uma profissional nova...olha, senhor, deixei a janela do meu barraco aberta...

- Que é que tem ?

- Vai chover e inundar de novo e acabar com o pouco que a gente tem...na pressa de sair de madrugada deixei a janela escancarada, a noite foi muito quente, barraco de madeira, deixei a janela aberta para ventilar e esqueci...

- Ninguém em casa ?

- Só a noitinha, minha companheira e minha filha voltam do trabalho, até lá a janela...

- ( mostrando impaciência) – Já sei, está aberta !

- Sim, Senhor, e pode inundar o barraco...

- O que você acha que eu posso fazer ?

- Deixar eu ir até lá fechar a janela, te juro que depois eu volto...

- Não me venha com essa conversa, pensa que está falando com algum idiota ? Ou acha que estou brincando em serviço ? Você está em uma delegacia, sob ordem de autoridade policial !

- Senhor, se ver meus documentos, vai ver que não tenho nada com o ocorrido...

- Sabe quantos Antonios Franciscos das Silvas existem em relatórios policiais ?

- Não senhor...

- Deixa para lá !

- Os meus documentos, os números não são iguais aos outros...

- Não quer dizer muito, há muita falsificação, temos que conferir tudo, isso leva tempo... além do que a questão não é apenas de conferir documentos mas de se apurar responsabilidades no caso...

- Será que chove antes ?

- (pausa em que o escrivão olha para Antonio, como não acreditando)

- ...a janela está aberta...

(exasperado) – Por ora é só, você volta depois, Guarda !

- Que bom, então posso ir embora, a janela...

- Embora da minha sala e de volta para a cela. Até prova em contrário você é suspeito de ter participado da morte de dois homens... é bom refrescar sua memória e colaborar com a investigação...você foi o único detido em flagrante no local dos homicídios. Está claro que não fez isso sozinho, é melhor dizer o nome dos outros e agilizar os trabalhos, para o seu próprio bem.

( o guarda retira Antonio)

- (Escrivão) – Cada nóia que me aparece...a Janela Aberta !!!

( CAI A LUZ)

( cena 3 ) Barulho de cela sendo aberta, Antonio entrando.

( Preso 1)...Olha quem tá de volta, o paraíba encrencado, pareceu que os “hômis” não acreditaram na tua inocência...estou certo, companheiro ?

- (Antonio) – É questão de tempo, vão ver que eu não tenho nada com esses crimes, sou homem de bem, trabalhador...só espero que dê tempo de fechar    a janela antes da chuva...

-(preso 3) – Filhos da puta, vão te dar um cansaço, isso se não te incriminarem para encerrar o caso... fazem isso para darem uma satisfação pública, foda-se se é inocente ou não, assim é que as coisas acontecem...

(Antonio, assustado) – Me incriminar como ?! Eu só estava no chão, embaixo da catraca, aquele lascado do cobrador, pobre como eu, escorrendo sangue...

-(preso 3) – São escolhas, meu caro curió. Quis guardar a grana do patrão e levou balas, o outro, o motorista, quis se fazer de herói e hoje são os mais novos presuntos no cemitério...

( Antonio, benzendo-se) – Deus meu, que mundo...pobres homens trabalhadores que lutavam para ganhar o pão com dignidade, o que serão de suas famílias ?

(pausa, os presos se olham constrangidos)

(Preso 1) – Prefiro que a minha família desista de mim, me esqueça... não quero ver minhas filhas pequenas sendo apalpadas em revistas me visitando e minha companheira descuidada e maltratada para sustentar sozinha ela e as filhas...me esqueçam, melhor acharem que eu morri do que saberem e sentirem vergonha de um pai bandido, elas nada tem a ver com minhas escolhas... Na vida tudo tem um preço, paga-se caro por más escolhas, ninguém nos induz ao erro, caminhamos por ele. Tinha cansado da vida operária, salário merreca, uniforme, horários, carnês de prestações, vidinha medíocre, coisas contadinhas, mês após mês, ano após ano... Certo dia resolvi que poderia ter sucesso mais fácil e me armei de um revólver e fiz um assalto, não parou ai, me acostumei a tomar do que trabalhar por um salário. Uma vez as coisas não foram como sempre, houve resistência, era eu ou ele... depois ficou comum acabar com a vida alheia, esqueci escrúpulos, adotei a marginalidade...até executei por encomenda, ficava com a bronca para mim e silenciava pois recebia para isso... 

(Preso 2) – Quanto a mim já não agüentava a vida de caixa de supermercado, o dia todo suportando a clientela,consumo de um monte de futilidades, enquanto me sobrava uma cesta básica, muito dinheiro na mão entregando ao superior e eu colecionando moedas para comprar uma camisa nova e o sapato com buraco tapado por dentro por um papelão...dei adeus àquela vida e tomei outros rumos, mais intensos e vibrantes...ninguém fica só nos entretantos, quem sai na chuva acaba se molhando todo...esqueci, ou me esqueceram, irmãos, desgostosos de minha virada, ainda bem que a mãe já é falecida e o meu pai velho demais para ter noção do que está acontecendo comigo... cochilava nos bancos da escola noturna depois de um dia exaustivo de trabalho, aprendendo como ser alguém na vida...não resisti e descambei de vez. Furtos, assaltos, estelionatos e homicídios...

( Preso 3) – Porra, Paraíba, você tinha que trazer esse papo de família...todos temos e é nossa cruz na consciência... 
Cedo percebi que o caminho era estreito, penoso demais, olhava para os meus familiares, pessoas dignas, honradas, envelhecendo dia a dia e vivendo com uns trocados, sonhando acordados, com um futuro incerto...
Era uma rotina de bater cartão e receber merrecas para mal sobreviver...
Gostava de uma gata, menina honesta, responsa, parecia gostar de mim, planos para se ter um teto e criar nossos filhos,coisa bacana que todos os jovens que amam têm...
Acontece que nunca fui muito de estudar, nem terminei o primeiro grau, promoção na empresa nem pensar...ela gostava de estudar e seguiu em frente, foi saindo do meu mundo e vivendo em outro, até me trocar por um futuro mais promissor... Era muita merda junta, cara, muita humilhação para suportar, não pude vê-la feliz com outro, fiz loucuras e acabei com os dois... fugi e continuei na trilha dos desesperados, fugindo de minha vida estreita e me sujeitando a fazer cada vez mais asneiras para sobreviver, até cair de vez...

(Preso 4) ...Comigo foi diferente, meu meio não era pobre, tive possibilidades e estudo, me prostitui por vaidade, daí para o tráfico não foi difícil...garoto bem apanhado, bonito, corpo malhado, percebi que era atrativo para mulheres ricas e carentes de conforto íntimo conjugal, generosas com seus afetos contratados. Sempre adorei o bom viver, a boa comida e o regalo da boa vida, preguiçoso sem ter que saber o que é ganhar o pão de cada dia trabalhando...depois entrei em outro meio, a prostituição masculina, bem paga pelos meus serviços e sigilos, há coroas que pagam em ouro por sua companhia e seu segredo...passar pó em altas rodas era o de menos, afinal a alta sociedade adora exibir aos seus convidados, o charme de anfitriões, a exibição da melhor farinha do mercado, grana grossa, toma-lá-dá-cá... Para tudo há um tempo, para quem vende o próprio corpo, ele passa mais rápido...não me acostumei com a idéia de ser trocado por rapazes mais jovens e viris...em desentendimento com um dos meus clientes cativos, o assassinei...aguardo nesta cela a minha sentença.

( o carcereiro bate na barra da cela)    - Quem é Antonio Francisco da Silva ?

- Sou eu !

O delegado quer vê-lo...

(Preso 3) – Vai, Paraíba, fechar a tua janela, cuidado para não fechar suas portas na vida !

(Preso 2) – Até nunca mais, cabra inocente !

( Preso 4) – Que este dia diferente ao seu meio tenha serventia para tu valorizar tua vida difícil mas digna...

( Preso 1 ) – Vá na paz de quem merece !

(Antonio) – Adeus !

(CAI A LUZ)

( CENA 4 – diante à mesa do delegado)

- Antonio Francisco da Silva ?

Sim, doutor, sou eu...

(Delegado) Você estava naquele coletivo da madrugada onde dois homens, o motorista e o cobrador, foram assassinados, não é ?

- Estava sim, senhor...

(delegado) – Encontrava-se preso na catraca,não é ?

- Sim senhor...

- Por que não fugiu com o povo ?

- Pedi ao cobrador para me deixar passar, vi que havia esquecido uma moeda e o dinheiro não dava para a passagem...depois começou uma confusão, os tiros, a correria, fiquei entalado sem ter condições de me levantar...

(delegado, abrindo uma gaveta) – Isso lhe pertence ?

- Sim senhor, é a minha marmita, escrevi o nome no fundo dela porque na obra às vezes não tinha armário para guardar e evitava que um peão comesse a comida do outro...

(delegado) – Pois você deve muito a esta marmita, seu atestado de idoneidade... provou que estava a trabalho.

... com a prisão de 2 assassinos e a morte de 1 deles, ficou comprovado que não há nada que o comprometa nesse caso... o senhor está livre, pode pegar as suas coisas...

(Antonio) – Doutor delegado, poderia me fazer um empréstimo ?

(delegado) – Empréstimo ?

(Antonio) – Sim senhor, para completar a condução de volta, faltam R$ 0,25 centavos...

(tirando uma moeda) – Pode ficar com esta...vá em paz !

( Antonio) -    Doutor ?

(Delegado) – Mais algum pedido ?

(Antonio) – Seu troco, o senhor me deu R$ 0,50 e eu preciso só de R$ 0,25

( CAI A LUZ) ( cena 5, no barraco)

( Antonio, extasiado) – Deus meu, ainda bem que a chuva não chegou antes de mim e posso fechar a janela que deixei aberta, obrigado Meu Pai Amado...

( liga a pequena TV de 14 polegadas, abre a marmita e começa a comer assistindo o noticiário);

Presos 2 assaltantes e morto um deles que resistiu à prisão pelo assalto ao ônibus da linha 333 onde morreram o motorista e o cobrador na madrugada de hoje...

                                                         FIM 

* Este texto está registrando na Biblioteca Nacional de direitos autorais, registro sob n° 494.5467, livro 935, folha 144. Publicação ou encenação somente com expressa autorização do autor.

* TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA 1° ANTOLOGIA DE CONTOS PREMIADOS, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO, OUTUBRO/2009