quinta-feira, 31 de maio de 2012

TARDE CINZA



A cinza tarde de agora
Transmutada em esperanças
Rememorando o sol de outrora


Basta de tristeza
Negaceando as andanças
Opaca de qualquer beleza


Em passos arredios, arrepios


Claridade ofuscada, lembranças...


segunda-feira, 28 de maio de 2012

PRELÚDIO DE UM ADEUS

De toda despedida
A ausência dela
A mais dolorida


A presença
Na distância
Tão sentida


E meus passos
Acostumados 
Ficarão  sós


 Imagem amada
Lembrança boa
Presente devolvido


Como é doído o desapego
Parte de mim se despedirá
Lembrando-me do seu olhar...






sábado, 26 de maio de 2012

TESTEMUNHAS DE NÓS MESMOS






Somos a somatória,
estilhaços de um vitral multi facetado
disformes, variados, descontínuos

São flashes, instantâneos imperceptíveis
Audíveis sons ininteligíveis, algaravias
desritmadas sem maestro

Poros e ventosas nos sentidos
apreendendo, assimilando, reunindo
impressões e sensações sem nos apercebermos

Ao todo vamos nos construindo
em opiniões, visões e sentimentos
atentos na aparente desatenção

Colhemos dos instantes, filtrando, recolhendo
nos arquivos da existência, construtores e testemunhas
agentes e pacientes de nós mesmos...


* publicado na 92° Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, julho de 2012.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A DESFORRA


  Ágeis como feras, produto da necessidade a astúcia. O velho tomba ao chão, cabeça temerosa deitada na calçada, medo de reagir, 65 anos, calvície acentuada, a lente esquerda do óculos, partida. Chapéu de feltro, à distância.


 Um monte inerte, inferior a uma criança, porque cônscio da fragilidade e do perigo, da impossibilidade de defesa. O corpo desajeitado não obedeceria uma reação repentina, com o coração sujeito a uma síncope abrupta. Não bastasse a posição deprimente, em decúbito ventral, feito um bêbedo qualquer, o incômodo de um filete rubro a escorrer pelas narinas, espalhando-se pela face toda, manchando a camisa azul-clara, impecavelmente limpa.
Aguardava em suspense o saque. Deveria ter umas poucas notas na carteira, uma foto da neta, o velho relógio de corrente. Nada restava a fazer além de quedar-se, feito fantoche, à vontade dos marginais, aguardando a decisão de seus algozes. Discutiam. Jovens, no máximo três, falando rápido, linguagem cifrada de gírias, não conseguia concatenar os fatos, a audição falhava. Ficou em crise, mergulhado num julgamento tolo de sua inutilidade, aspirando as imundícies da via pública.


 As imagens sucediam-se em sua mente, dando conta da situação. Dispensara o chofer e resolvera fazer um passeio sozinho, há tempos não se dava ao luxo de ficar consigo mesmo. Viera desprevenido de qualquer salvaguarda, afinal o parque sempre foi bem iluminado, não oferecia perigos. Mas, pensava agora, nenhum lugar, exceto nas muralhas da sua nobre residência, ou no carro blindado com motorista, era seguro. Era o tal submundo, aquele que sorvia entretido nos noticiários, pelas manhãs, no saboroso café, seja lendo as histórias policiais mais bizarras ou mesmo mudando com o controle remoto em busca de novos espetáculos na televisão... Aquela escória oferecia sempre espetáculos permanentes! Estranho como se divertia com os escabrosos relatos daquelas vidas tão distantes de seu mundo privado e acolhedor.
Mas agora ali estava deitado na via pública e cercado pelos marginais. Não era um relato acontecido com estranhos, ele estava no centro dos fatos... Arrepiou-se. Pensou rezar em pensamento e viu que não sabia uma oração em seu sentido total, sempre as repetira, enfadado, nas raras cerimônias religiosas. Antipatizava-se com o pároco, sempre recheando os sermões com as questões sociais, da distribuição de renda e da fraternidade...coisas de comuna disfarçado de padre ! Parecia a encarregada do setor de ferramentaria da fábrica, reivindicando pelo emprego de 90 operários a serem dispensados pelo desmonte do setor. A insistência foi tanta, alegações de que seriam famílias vitimadas pelo flagelo do desemprego e da argumentação de remanejar em outras secções, tal a petulância que a própria também acabou inserida no rol dos demitidos. Era o que faltava, aquela fulana tentar ensinar administração de custos na sua empresa! Questão social, sempre ela! Pois que dela cuide o governo, eleito pelos miseráveis, ao empresário bastava garantir os empregos e os impostos, que não eram poucos...


  Quis morrer, simplesmente. Pensou seriamente em uma atitude defensiva e se reteve assustado, procurando alternativas para manter-se vivo, tentando valorizar a própria existência, carcomida e insignificante.
Inerte, infeliz como um animal acuado, sentiu as mãos lhe apalpando o corpo, arregaçando bolsos, invadindo intimidades. Não reteve as lágrimas, mescladas à poeira e ao suor do rosto. A garganta ressequida, engolindo saliva grossa e vermelha, retendo, a custo, um pigarrear. Permanece impassível, paralisado pelo terror e pelo prudente instinto de sobrevivência.
Num ato conjunto o viraram de frente. Maior então a vergonha. Fitando-os, cara-a-cara, uns meninos ainda, donos de sua vida, responsáveis por sua sorte. Toda a existência fragmentada em minutos, a reflexão lúcida, o orgulho ferido. Um final só imaginado pelos deserdados de qualquer chance, como aqueles garotos, personagens párias da sociedade, vivos protagonistas dos hediondos dramas lidos nas manchetes do jornal matutino, leitura saboreada com o café da manhã, no aconchego do lar, imune às ameças do submundo, universo alheio e distante. Mundo proscrito de meliantes, prostitutas, em todos os níveis da escória social.
Repentinamente, invadido pelo pavor da morte, em tudo semelhante a de um suíno, ao pressentir a lâmina do canivete de um deles, teve um grito seco, suplicante, de piedade.
A sua desventura agigantou-se, sentiu-se pequeno. Implorou perdão, como se responsável por tudo aquilo. As faces mutiladas, infâncias abortadas, sonhos miseravelmente desfeitos. O opróbrio a envenenar-lhe a alma, a omissão a corroer-lhe as entranhas da consciência, a casta que em pensamento quis renegar, a vida fausta e cega...
Os rapazes riram do desgraçado, aturdido e envergonhado.
O líquido acre e fétido escorrendo pela face, ardendo nas escoriações: a urina das personagens das páginas policiais, pelo pagamento dos espetáculos saboreados nos cafés matinais...

 * TEXTO ESCOLHIDO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA " O MELHOR DO CONTO BRASILEIRO", EDIÇÃO MAIO/2010, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, CBJE-RIO DE JANEIRO, RJ.   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.


* ILUSTRAÇÕES: MEL ALECRIM, POETISA| CONTISTA - BLOG DO LIMA COELHO -POESIAS,CONTOS CRÔNICAS E ARTIGOS LITERÁRIOS - SÃO LUIZ - MA

 

sábado, 19 de maio de 2012


A MUDANÇA




Oficializaram o sim diante a uma plateia repleta, convivas em uma festa numa noite quente de dezembro. O pano descia, e a realidade começava. Foram anos de namoro, conheceram-se no verdor da juventude, colegas de mesma universidade, de cursos diferentes. Ela, uma menina inteligente, bonita, morena de estatura baixa, olhos encantadores. Ele uma incógnita a viver seus conflitos íntimos, a começar pela indecisão de saber o que seria quando crescesse, embora já crescidinho. Curtiam-se nas salas privativas da biblioteca, onde requesitavam uma sala para estudos, ambiente propício para o sexo sem terem que pagar um hotel, apesar dos incômodos do chão duro coberto por jornais. A rotina do prolongado namoro encarregou-se de fazer nítidas as diferenças de temperamentos. Ela, exigente, o queria sempre por perto, dentro dos horários. Ele, relapso quanto ao relógio, habitualmente atrasado. Aquela situação o estrangulava, tendo que inventar desculpas repetidas vezes. Viviam, assim, respirando o mesmo ar, restringindo-se de viverem plenamente. Os demais, só os colegas de serviço. Alguém tinha que pedir "um tempo", ter amigos, conversar outros assuntos. O pedido partiu dele, mal entendido, como se fosse um rompimento. Cedo percebera o erro. Ela sentiu-se mal naquela proposta, e reagiu. O mesmo não ocorreu com ele, para quem precisava, apenas, de reaver amizades, sem interesse em outra pessoa. O drama teria início ali, ou será que apenas antecipava um abismo maior entre eles, já existente, mas despercebido por ambos até então? 
Fotos de namorados apaixonados Quando deu por si, ela já tinha olhos para outro. Solta, arejou os pulmões e respirou outros ares. O que poderia ter sido uma situação normal para pessoas bem resolvidas, para ele não foi. Emagrecera a olhos vistos, perdera a paz interior. Tanto fez, que voltaram. Mas as feridas permaneceram, cicatrizes submersas, e presentes. A vida a dois arrastou-se, foi um inferno. Os ciúmes dele, rancoroso do passado, mal se sustinha a irromper nas discussões. E até na intimidade, a sombra do "outro" o incomodava.

Fotos de namorados apaixonados Vagava naquela retrospectiva amarga, enquanto metia as poucas vestes na mala, como um autômato sem direção, os pensamentos atropelados, um misto de derrota e de recomeço incerto, enfim, um ponto final em um enredo já esgotado, sem se importar com o que deixava, livros empoeirados em caixas e alguns na estante. Dele ficaria isso, os livros, provisoriamente, até que arrumasse um local para removê-los. Poderiam ficar em um canto, despercebidos, como sua ausência.
Combinaram assim, ele sairia sem a presença dela, levaria o suficiente para não ficar nu, o mais, móveis, ficariam intactos na casa... Evadiria sem vestígios, ou adeuses. Enterrava-se definitivamente o insepulto cadáver do falido casamento, do qual restaram um álbum de fotografias e uma fita de vídeo cassete na representação de um espetáculo feliz, recordações de um dia que procuraria esquecer.

Debalde a exaustão da convivência sem mais sentido, ainda existia um sentimento de falência no ar. Uma briga íntima no cair da razão, a ideia de que um relacionamento oficializado tinha que perpetuar, de ser para sempre, na tristeza e na alegria, tudo aquilo ainda ecoava nos valores herdados dos pais e avós. Mas nada daquilo servia naqueles momentos, onde a permanência naquela casa chegava ao término, findando qualquer possibilidade de reconciliação. Havia, ainda, que precisar alterar rumos, refazer os passos, recriar caminhos, fazer novas rotinas, reaprender a ser só, quer dizer a assumir realmente a sua solidão, não mais dividi-la com ninguém.
Mesmo com a dor nos acostumamos com ela, fazendo parte dos dias, postergando atitudes, evadindo-se de resoluções, protelando decisões. Porém aquela medida era extrema, definitiva. A mala feita não era apenas uma encenação temporária, como de tantas feitas, de reconciliações posteriores, então vivendo dias prazerosos de inúteis apostas em um futuro melhor. Como a vã possibilidade de reviver o que jaz enterrado, soterrado. Buscava-se o calor do corpo, no sexo, mas encontrava-se a sós ao buscar a alma.
Não foram felizes, iludiram-se. Aliás, não se conheciam, mesmo com anos de namoro e na condição de casados. Enganaram-se. Não havia exatamente culpados, apenas a noção exata de que eram estranhos um com o outro, como navegantes em uma mesma canoa, remando cada qual para um lado, rodopiando em círculos, não indo a lugar algum. Estiveram juntos, coabitando o mesmo teto, mas distantes em objetivos e cumplicidades. Eram alheios nos propósitos. Restava, contudo, uma incômoda sensação, de perda, ou medo do recomeço? Aquilo angustiava, o novo preocupava, exigia coragem de espanar poeiras de velhos conceitos e hábitos.




Sem despedidas, ensaios pronunciados inúmeras vezes, nem sempre em palavras articuladas, mas sentidas, presumidas, em gestos ou insinuações, como a areia caindo, lenta, na marcação de um tempo final. Antes que o ar já rarefeito da convivência desandasse pelo desrespeito, uma atitude, por sofrida que fosse, teria que romper os laços depauperados mas ainda existentes, por tradição ou vã esperança de entendimento. Aquilo, a permanência, doía , mexendo com a autoestima, aprofundando as feridas, arrastando-se interminável como uma sentença perpétua.
Como é difícil o desapego das coisas, mesmo nas condições mais adversas, temos o hábito de nos acomodarmos. O novo assusta, pelo inusitado, por exigir posturas e ações. Reaprender a andar em novos passos pode ser amargo e inseguro pela ousadia que nos cobra. Tudo que nos põe à prova, assusta, espanta velhas ideias sobre tudo e nos coloca em xeque, nos tira do aparente sossego de nossas acomodações, instiga a lutar por uma nova realidade.

 Aturdido nessas emoções desencontradas, cumprindo o combinado, a mala sem saudades, sem a presença na despedida, sem azedumes ou queixas, sem murmúrios, nada para segurar as lágrimas, nenhum sorriso que confortasse, nem arrimos para se apoiar, uma estrada nova a ser seguida, vencida, e só, finalmente, consigo mesmo...
Epílogo do esgotamento de um sonho mal vivido, a liberdade assustava ainda mais que as algemas da comodidade incômoda, por paradoxal que seja.
O táxi na porta, o destino e endereços incertos, uma nova empreitada, reivindicando forças que pareciam ausentes, apenas mais uma história mal vivida a ser recomeçada...



* iLUSTRAÇÕES: MEL ALECRIM, POETISA/CONTISTA, BLOG DO LIMA COELHO, SÃO LUIZ / MA - BLOG DO LIMA COELHO - POESIAS, CRÔNICAS, CONTOS E ARTIGOS.

terça-feira, 15 de maio de 2012

CAMINHANTES



Lições, experiências
Acertos e tropeços
Recuos, recomeços
Reflexos das vivências


Traçamos a trajetória
Revendo posições
Escrevendo a história

Maturando opiniões


Agentes e estudantes
Na estrada, caminhantes
Da mestra vida-escola

Passos no ontem trilhados
Nem sempre certezas no agora,

Nos óbices, aprendizados...



sexta-feira, 11 de maio de 2012


A  MEIA -VERDADE




...Que fazer, matá-lo, esganá-lo?...
Fora ele quem o indicou para a aposentadoria precoce, imagine morrer em vida aos 45 anos?
Restava ver os carros das alturas, já que as pessoas pareciam formigas vistas do alto do 23° andar do edifício, de uma varanda estreita do financiamento a perder de vista no sistema financeiro da habitação, felizmente já quitado, com a indenização pela dispensa. De quantas férias se privara para honrar aquele compromisso? Tantas vontades embotadas, o mar visto pela televisão e a brisa proporcionada por um ventilador nas quentes noites do verão...
Ingressara na empresa ainda jovem, subia as escadas a pé para fazer exercícios, cada degrau suado em conquistas e metas de crescentes desafios... Afinal, não entendia, por que ele ? Justo ele na lista de demitidos no corte de despesas.
Injustiça que indenização alguma seria capaz de pagar... Instado pelo amigo, com a indicação de um profissional da área trabalhista, conseguira um acordo ainda maior que o oferecido pela WA., mas não se tratava de brigar por direitos pecuniários, e, sim, da própria dignidade... Aquela empresa era parte sua, trabalhara como um jumento para alavancar posições no mercado, sofria com as oscilações negativas e comprazia-se com os louros das vitórias.... Não era um número, não poderia ser apenas isso...
- Afrânio, você prestou relevantes serviços a WA, entenda, a situação exige, a reengenharia chegou nas grandes corporações, a crescente mutação nas empresas, sua modernidade (...como se ele fosse peça descartável, antiquada)...
- Mas, Osvaldo...
- Você receberá uma indenização maior, como forma de compensação e reconhecimento...
- ... ( indenização maior, não é isso, quero permanecer nesta empresa, malditos !)
- A nossa amizade, Afrânio, nada tem a ver com a relação de colegas, continuaremos amigos, como sempre!
- ... Claro, Osvaldo, nada a ver...
- Não se esqueça, somos compadres!
(batizara a filha única do Osvaldo, juntamente com outra colega de serviço, a batizada era já uma adolescente).
Aquelas cenas, palavras vagas, ficavam na memória, reavivadas em todos os momentos daquela vida aposentada prematuramente... Jamais conseguira um outro emprego de forma permanente, a sociedade descarta pessoas depois dos 40 anos, independente de sua biografia, mesmo tendo prestado relevantes serviços à WA, fechara suas portas para qualquer entendimento de retorno e se sentia amarrado de pedir suas justas e boas referências, afinal entrara em litígio em defesa de seus interesses de trabalhador. Restavam os dias lentos, tediosos, vislumbrados daquela varanda nos altos do 23° andar... Tão perto das nuvens e dentro do seu inferno interior.
Acabara preterindo a vida social e até optado, às avessas, pelo celibato, pois negara-se ao convívio amoroso, tendo relações fortuitas e descompromissadas. Enfim, gastara muito de seu tempo no seu trabalho, onde, às vezes, permanecia muito além do funcionamento normal da empresa.
Com o tempo foi deixando seus ternos de lado, relaxando em ficar de bermudas, chinelos, barba por fazer, afinal, desistira de ouvir negativas às suas inúmeras tentativas de trabalho. Ganhara um pequeno gato e a ele se afeiçoara, depositando nele suas carências e solidão.
Filho único, os pais falecidos, vivia no seu ostracismo, almoçando de tempos em tempos com o ex-colega, o diretor que o demitiu, o Osvaldo, afinal era seu compadre!
Certo dia recebera uma ligação de Dalva, esposa de Osvaldo, parecendo preocupada:
- Desculpe incomodá-lo, Afrânio, mas será que poderíamos conversar, talvez almoçarmos juntos?
- Claro, Dalva, mas aconteceu alguma coisa com o Osvaldo ou a Delma?
- Não exatamente, Afrânio, melhor conversarmos pessoalmente... seria melhor nos vermos a sós, não queria que fosse em casa...
(constrangido)... Olha, aqui, como não recebo visitas há tempos, a casa tá relaxada, acho melhor nos vermos em um restaurante, seria bom sair um pouco de meu canto solitário...
- Ótimo!
(acertaram os detalhes e se encontraram)
- E então, Dalva, você parece preocupada demais...
- Não queria assustá-lo, Afrânio, mas você é a pessoa mais próxima do Osvaldo, por isso resolvi me confidenciar com você...
- Claro...
- Estou percebendo uma mudança de comportamento no Osvaldo nos últimos meses, como se ele andasse confinado em si mesmo, fala pouco e parece alheio dentro de casa. Tentei arrancar alguma coisa dele mas não  adiantou nada, ele não se abriu comigo... Por acaso você percebeu alguma coisa?
- Eu ?! Ora, a última vez que estive com ele foi na sua casa, naquele domingo de dezembro, e olha que já estamos em março...
- Pensei que vocês se encontrassem com mais frequência... (cismou consigo mesma, pois tinha certeza de que nas furtivas chegadas tarde de Osvaldo insinuava estarem juntos)
- Raramente saio, Dalva, não tenho amigos além de vocês, assim acabo ficando em casa, vejo filmes, leio, acesso a internet, essas coisas solitárias... Quase nunca falo com ele ao telefone, não gosto de atrapalhá-lo no serviço...
- Mas preciso de um favor seu, que ligue para ele e que tente convencê-lo a sair com você, talvez ele se abra e...
- Desculpe-me, Dalva, não trairia a confiança do Osvaldo caso saiba de algo que ele ache por bem não participá-la, não seria fácil para eu agir assim...
- (Desanimada) - Claro, olha só o que estou lhe pedindo, você que me desculpe pela idéia absurda, mas não sei como ajudá-lo em suas preocupações, isso me aniquila, entende?
- Talvez sejam coisas de negócios, transtornos passageiros que ele não queira partilhar contigo para não preocupá-la à toa, sabe como é dirigir uma seção de uma empresa como a WA, sempre tem problemas a incomodar seus encarregados... Talvez nada que você possa ajudar, entende?
- Ele nunca agiu assim, sempre se abriu comigo, fazia confidências mesmo sobre os problemas mais simples que tinha a resolver, lógico que falava por cima, como se desabafasse... Aquilo sempre o ajudava a relaxar depois da ducha e do aperitivo que gosta de tomar depois de um dia de trabalho.
-Nem sei o que lhe falar, Dalva. Acredito que sejam coisas passageiras, logo tudo ficará como antes, você verá...
( Depois daquele almoço passaram mais de dois meses sem que se falassem, até que ela ligou...)
- Afrânio, daria para nos encontrarmos, preciso muito falar com alguém...
- Certo, nos veremos no mesmo restaurante, pode ser?
 (Dalva era uma mulher de cerca de 45 anos, ainda bonita e bem tratada, pessoa delicada e afável, agora parecia abatida por preocupações)
- Afrânio, da última vez que te vi, não sabendo a quem recorrer, resolvi procurar os serviços de um profissional, na verdade de um detetive particular, veja isso ! ( tirou de uma sacola grande um envelope pardo e o colocou sobre a mesa instando para que ele o abrisse)... Quem poderia imaginar que os problemas do meu marido era com uma amante! (falou em tom de desabafo)
- (Abriu o envelope e se deparou com várias fotos do Osvaldo em companhia de uma mulher mais jovem, não sabia como encarar a Dalva, que parecia querer ouvir dele uma confirmação ao que estava vendo, como se a prova em si já não fosse o suficiente...)
- Você não sabia de nada, não é, Afrânio?...
- De nada... Não o vejo há meses ( falou absorto, tentando saber de onde conhecia aquela moça que parecia naquelas fotos em colóquios com o seu amigo)
- O que eu faço, Afrânio?!
-( Perguntar a ele que nunca tivera experiências de relacionamentos conjugais?) - Tenha calma em qualquer situação... ( Era o que lhe parecia sensato dizer naquele momento, amenidades...)
- Aonde será que eles se conheceram? Osvaldo sempre me pareceu um homem de vida doméstica, evitava reuniões sociais e adorava ficar em casa comigo e a filha... ( as lágrimas escorriam naquela face alva e lisa, só então se dera conta da beleza natural daquela mulher, de seu charme discreto... Meu Deus, o que estava fazendo? observando a beleza dela, da esposa de um amigo ? Na verdade Tivera vontade de abraçá-la junto ao peito e consolá-la, que sentimento era aquele que passava a perturbá-lo? )
...Em qualquer situação a calma é o mais prudente... ( falava aquilo para si ou para ela?)
- Já não sei o que fazer... Ele continua estranho, distante, parece que força um pouco para parecer mais natural, mas não consegue...
- ... ( Como ela é linda, meiga, diria que sensual em sua beleza natural..., Atordoava-se em cogitações admirando-a como nunca percebera antes) Dalva...( sem se conter segurava as mãos dela), Tente manter a calma, não sei ainda o que posso fazer para ajudar, mas não se precipite...
- O que mais tenho feito é manter a calma, até quando eu ainda não sei... Às vezes tenho vontade de jogar tudo na cara dele, mas temo pelo fim do nosso casamento, nós nos amávamos, entende, éramos felizes... ( Furtivas lágrimas inundavam os olhos tristes e belos e mais confusões traziam àquele homem que não sabia lidar com aquela situação, pois percebera-se totalmente apaixonado por ela e as afirmações de que amava o marido lhe causavam sentimentos estranhos e mesquinhos)
- Dalva, contenha-se, deixe-me pensar... vou refletir e ver o que posso fazer. Tudo isso é novo para mim, jamais poderia imaginar uma vida dupla do Osvaldo...
- Nem eu que vivo com ele...
- Me dê um tempo, vou ver o que posso fazer, tá certo ? Eu ligo para você...
 (sem querer parecia na tonalidade da voz um carinho que mal conseguia esconder)
(despediram-se afetuosos. Ela na esperança de que ele conseguiria trazer o marido de volta para casa e ele na esperança de vê-la novamente, o quanto antes...)
  - II -

Afrânio escolhera um dos seus ternos favoritos, uma bela gravata, esmerara-se frente ao espelho escanhoando a barba com esmero e prazer, algo novo lhe despertava o ânimo, como a erupção de extinto vulcão, mas ainda não sabia atinar o porquê daquela inusitada disposição. Sairia naquela noite, disposto a averiguar, pessoalmente, o que sucedia com o amigo...
Sabia a natureza conservadora de Osvaldo, haveria de estar no mesmo lugar, invariavelmente, bebericando e conversando no mesmo reservado bar-restaurante dançante, local luxuoso e privativo, de que participara nos tempos de happy-hours que se estendiam pelas madrugadas nas boas épocas de executivo da WA...
Há mais de seis anos não retornava àquele local, os funcionários já seriam outros, e os mais velhos não haveriam de reconhecê-lo... Ficaria distante, sem ser observado e observando os passos do amigo e sua acompanhante... Tinha certeza de que ela não lhe era estranha, faltava-lhe à memória focá-la de onde a conhecia...
Conversavam, mantendo uma discrição de amigos, não pareciam um casal de apaixonados, falavam e gesticulavam com moderação... Era tudo o que se podia verificar daquela distância, jantavam ao som de um fundo musical suave tirado em notas de piano... Apesar do clima, era prematuro afirmar que estavam em atitudes suspeitas, poderiam ser apenas amigos, por que não? As fotos do detetive mostravam os dois juntos naquele mesmo local, nada que aparentasse uma relação mais íntima, a dedução passional pela ótica da traição vista pela esposa estava incendiada pela desconfiança e despeito. Ele poderia ter alegado isso para amenizar a situação do amigo, mas calara-se impedido pelo sentimento que passava a nutrir por Dalva, acima de qualquer possibilidade de renúncia e desprendimento, ainda que por amizade.
(Mas a visão que se apresentava não o satisfazia, na verdade queria evidências da infidelidade, irrefutáveis argumentos para consolidar as suspeitas da esposa... Estranhava em si mesmo os pensamentos mesquinhos e egoístas, reconhecia-se apaixonado por Dalva, sendo que a confirmação do adultério ser-lhe-ia proveitoso... Surpreendia-se em si mesmo um traidor do próprio amigo, o único que restara, aquilo o incomodava, mas era a realidade que experimentava. Estava diante de uma situação limítrofe de escrúpulos.)
Permaneceria ali o tempo que fosse necessário, os seguiria se fosse preciso.
(A distância que parecia observar os dois como personagens de cinema mudo o incomodava, queria penetrar naquele colóquio, ter não apenas a visão mas também a audição do que conversavam, embora insistissem em se manterem distantes, sem qualquer suspeita de envolvimento romântico. Sabia que o amigo era um homem vivido, mas não o supunha tão seguro quando o assunto fosse sentimentos, ou será que não se tratava disso ? Não, não poderia ser outra coisa, afinal, o que um homem e uma mulher sensual e bela teriam a tratar a altas horas que não fosse um romance? Absorvia-se nestas cogitações quando a cena foi interrompida pela chegada de um homem de meia estatura, cabelos grisalhos, portando uma valise de trabalho e cumprimentando a ambos com desenvoltura de velhos conhecidos... Espere, atentou no olhar, parecia conhecer aquela figura, sim, o conheceu, esteve com ele por ocasião do processo que movera contra a empresa WA... Era o dr. Sandoval, especialista em assuntos trabalhistas, indicado por Oswaldo para advogar seus interesses profissionais. Então era apenas uma reunião de trabalho, em local mais descontraído... aquilo punha por terra suas suspeitas e afastava qualquer possibilidade de êxito com a Dalva, tudo se esclareceria como um engano. Ainda havia questões pendentes, pois o comportamento do Oswaldo vinha mudando, segundo a esposa descrevera, há meses, tinha atitudes atípicas ao seu habitual proceder, chegando a tardes horas nas terças e quintas-feiras, invariavelmente, além de se manter alheado quando na convivência doméstica, como se estivesse com problemas a resolver... Poderia ser que a presença do advogado naquele cenário fosse uma casualidade, por que não ? Entre o sim e o não, permaneceria atento, não custava mais nada acompanhar os dois, quer dizer, os três... O recém chegado pediu uma bebida e se envolveram em conversas inaudíveis à distância, Oswaldo abriu sua pasta e lhe entregou alguns envelopes grandes, devidamente recepcionados pelo advogado e imediatamente guardados em sua valise de couro marrom, tudo parecia em se resumir nisso, uma reunião de negócios tratados em local mais descontraído. A confirmação de que era isso ficou patente com a saída dos três do recinto. Os acompanhou de longe, cuidando para não ser notado pelos mesmos. Oswaldo pediu ao manobrista o seu carro e seguiu só. O homem de estatura mediana e cabelos grisalhos ficou com a bela e sensual acompanhante. Não havia dúvidas, Oswaldo era inocente do crime de adultério. Aquilo parecia para Afrânio não o deslinde de um feito, mas a ressaca amarga de uma derrota...
Despertou com o telefone, era Dalva cobrando informações. Bebericava sua voz como se estivesse com ela, parecia que perderia todas as suas chances se revelasse o que vira, mas não dizer era negar a verdade, queria ganhar tempo, talvez para não esmorecer de vez suas possibilidades, restava um meio termo, uma MEIA-VERDADE...
- Escute, Dalva, fique serena, eu os vi juntos ontem à noite, mas só isso, não pareciam envolvidos, saíram sozinhos do restaurante, é cedo para julgamentos... Se ele se ausenta até tarde nas terças e quintas-feiras, eu volto lá na quinta e os observarei novamente, combinado assim?
- Meu amigo querido, quanto incômodo estou lhe causando... Será que você, mesmo vendo alguma coisa, me contaria? Vocês homens são muito solidários, além de o Oswaldo ser seu amigo há anos...
(Aquelas últimas palavras embaralhavam a mente do Afrânio. Adorava a cumplicidade com o seu amor platônico, mas os deveres da amizade era valor que calava fundo aos seus princípios)
-.... Fique calma, Dalva, em qualquer situação é melhor a tranquilidade, para evitarmos julgamentos precipitados...
- Afrânio, aquela moça é tão bonita como na foto?... ( Traindo na fala os ciúmes e mágoas)
-.... ( Não tanto como você, meu amor, pretendia dizer) ... Ela é atraente sim, mas não se compara com a sua beleza, Dalva...
- Como você é cavalheiro, não conhecia este teu lado lisonjeiro, só assim para me aliviar um pouco desses sentimentos de ira e desconfianças, preciso desabafar, desculpe-me...
- Poderíamos nos ver, se você quer falar com alguém e confiar seus sentimentos... (Estranhou a si mesmo, em outra situação não se reconheceria tão ousado)
- Você adivinhou o meu desejo de ver alguém para partilhar algumas horas de convívio, ando estressada e não consigo pensar em nada que não seja o que estou vivendo de angústias e despeito...
( Se viram muitas vezes, até se acostumarem com isso...)
... Quando tudo isso acabar, quer dizer, resolver, com as pazes que espero que ocorra entre vocês, voltarei à minha rotina de solitário, sentirei saudades dos nossos encontros...
.... ( Olhando nos olhos dele) - Ora, Afrânio, a tua companhia foi se tornando tão presente em meus dias, que a idéia de não vê-lo me assusta...
- Logo você retornará sua vida, desperta desse pesadelo, então não vai querer me rever, afinal, que assunto teríamos, um homem solteiro e uma mulher casada?
... Você conseguiu substituir o meu vazio das tardes por alegres momentos na sua doce companhia, sentirei saudades... Você é uma pessoa especial, sabia?
(...Diga que sou um homem especial, imprescindível, insubstituível em sua vida !!!) ... O mesmo te digo, Dalva, nunca, nos últimos tempos, sai tanto de casa, me arrumei, mandei minhas roupas para a lavanderia, nunca senti tanto prazer nos meus dias...
... Você é sensível, poético, sabe ser uma companhia doce para qualquer mulher, nunca pensou em se casar?
... Nunca tive um relacionamento duradouro que consolidasse um sentimento mais forte, talvez nunca tenha me permitido a isso, por timidez ou comodismo, creio que seja de minha natureza mais reservada a busca, involuntária, da solidão...
   - III -

( Na verdade os fatos se precipitaram. Afrânio, por intuição, resolvera ir ao escritório do Dr. Sandoval, depois de achar em seus guardados o cartão de visitas do advogado que o ajudou na causa contra a WA, por indicação do Oswaldo, que, aliás, insistira muito para ajuizar a ação reclamatória contra a empresa, alegando direitos líquidos e certos que teria a receber como indenização. O curioso é que jamais pagara honorários ao advogado, que terminantemente se recusara a receber depois da vitoriosa causa. Dizia-se muito próximo ao Oswaldo e que acertaria eventuais despesas com ele. Jamais Oswaldo mencionara qualquer pagamento ao advogado e Afrânio teria levado em conta de ajuda do ex-colega e amigo.)
No escritório, para sua surpresa, foi atendido pela bela e sensual Sofia, aquela que sabia conhecer de algum lugar mas não se lembrava de onde e que vigiara, à distância, junto ao Oswaldo no restaurante. Tencionava matar a charada que o intrigava, arrumou alguns pretextos para procurar o advogado, algo como documentos a desentranhar do processo, que precisava da ajuda profissional a quem dera o mandato. Felizmente, alegando não dispor do telefone, chegou ao escritório assim que observou a ausência do dr. Sandoval, ficando mais tempo com a sua secretária executiva, tipo faz tudo, de exuberante beleza.
- Já nos conhecemos? perguntou cismando a secretária.
- Talvez sim, já fui atendido por este escritório antes...
- Pelo reclamante ou pela reclamada?
- Reclamante, contra a WA...
- É cíclico, sempre temos, periodicamente, clientes ex-funcionários, geralmente executivos que ingressam contra a WA...
- Cíclico? Não sabia...
- Toda a vez que a empresa remaneja seu quadro diretivo há dispensas, já estamos acostumados a atender seus ex-altos funcionários... São vultosas ações, temos um atendimento bem especializado nestes casos... O seu está em curso?
- Não, foi há mais de seis anos, resolveu-se logo, já nas primeiras audiências, um acordo razoável...
- (Agora tinha certeza, fora ela quem portara documentos enviados por Oswaldo, naquela época da ação movida contra a empresa, por isso tinha a vaga noção de conhecê-la sem saber de onde)
- Aceita um café, um suco, uma água?
- Por favor um copo d'água ao natural... Você trabalha há muito tempo aqui?
( Tinha certeza de que ela não o conhecia, afinal já havia mais de 6 anos e o encontro fora rápido e informal)
- Parece que sempre trabalhei aqui... (sorriu demonstrando dentes alvos e perfeitos, ao entregar o copo)
- O dr. Sandoval não se encontra? (estava buscando argumentos para sustentar a conversa, não sabia exatamente o que queria ali, não tinha elementos para continuar a investigação sobre o Oswaldo e precisava de fatos novos)
- Lamento, mas hoje ele não volta, tem duas audiências agendadas, sem previsão de retorno.
Posso ajudá-lo em alguma coisa? Tenho relativo conhecimento de assuntos jurídicos, na verdade me bacharelei e preferi ficar na assessoria do Dr. Sandoval, a quem reputo carinho de um pai...

  (Aquela espontânea revelação jogava as especulações de Afrânio na estaca zero... Ela não era amante do Sandoval, seria do Oswaldo?... )
- São documentos originais que ficaram apensos ao processo e que estão me fazendo falta...
- Vou anotar seus dados e me diga quais documentos? Como são ações resolvidas encontram-se no arquivo central do fórum e isso leva alguns dias entre a requisição e o envio para pesquisas...
- Olha, não tem muita importância, afinal tenho cópias autenticadas e por descuido, à época, enviei os originais, posso retornar outra hora mais apropriada... Como é mesmo seu nome?
- Sofia...
- Lindo nome, como a possuidora... (Vexou-se pela intimidade imprevista) desculpe a liberdade...
- Agradeço o elogio... Afrânio é um nome diferente, tem um certo charme, pouco usual, não é?
- Afrânio jr.,escolha paterna, meu xará... Até que horas o atendimento aqui?
- É relativo, às vezes, o expediente se prolonga pela noite adentro...
- Noite a dentro?
- Tem clientes que preferem discutir suas questões fora de seu expediente normal e ficamos à disposição para ouvi-los até em restaurantes e bares... Há funcionários que não podem abandonar seu expediente para tratar de seus assuntos particulares. Claro que isso apenas para ações especiais, como a de grandes empresas, a sua ex-empresa, por exemplo, a WA...
- Quem diria!
- Como disse, a WA está realizando uma reengenharia em seus quadros, sempre que isso ocorre têm admissões e consequentes demissões em seus cargos...
- Ora, mas se funcionários estão sendo demitidos, tempo é o que sobra para serem atendidos dentro do expediente normal...
- Nem sempre falamos com os demitidos, mas com quem os demite...
- ...?
- Temos contatos que nos mandam os futuros clientes, entendeu?
- Acho que sim... ( tentando demonstrar naturalidade e não despertar suspeitas, mas aquilo o intrigava demais, fora atrás de uma coisa e estava descobrindo uma outra bem pior...) - Você sai a que horas do escritório ? Se me permite...
- ( rindo)... Você, posso chamá-lo assim? não me parece tão velho... Fica vermelho quando se encabula, lembra meninos sapecas, sabe?
- ( Sem saber como sair da situação...) Acho que sou tímido, é isso... ( rindo também)
- Agora são 17;30, hoje tem rodízio do meu carro, terei que fazer cera até as 20 horas, talvez leia alguma coisa, o escritório fica às moscas, são poucos advogados e eles caem fora o quanto antes...
- Podemos então tomar um suco, uma bebida, na lanchonete lá em baixo, assim ajuda a passar as horas...
- Ótima idéia, convite aceito ! ( falou engavetando alguns papéis e fechando as persianas de sua sala, falando no interfone com outra seção, despediu-se do pessoal que permanecia no escritório)
- Vamos ! ( disse parecendo uma menina feliz )
Do colóquio com a secretária do dr. Sandoval, Afrânio começou uma outra busca, não mais da possível infidelidade conjugal do Oswaldo, mas da provável traição do amigo contra ele mesmo, o demitido da WA... Pescando informações, através da falação solta e alegre de Sofia, passou a montar um intrincado quebra-cabeças, que parecia assustá-lo e a fazer cada vez mais sentido. Afinal, por anos, se questionara da sua injustificada demissão. Era um alto-funcionário, da mesma estatura do Oswaldo na época, tinha currículo admirável, cursos de graduação e de extensão universitária, dominava os assuntos pertinentes a sua área, tinha produtividade com a sua equipe... O comunicado que recebera através do amigo, diretor adjunto, naquela oportunidade, o desmontou, foi o maior trauma que sofrera na vida. Relembrava a insistência do Oswaldo em ajudá-lo, por baixo dos panos, a colher provas para a sua ação reclamatória contra a empresa, os honorários advocatícios jamais cobrados, as testemunhas arranjadas dentre funcionários subalternos que sequer conhecia pessoalmente, o acordo razoável que obtivera, além de prêmios extras por reconhecimento, sempre reportava ao Oswaldo tais favores de irmão.
Mas, se assustava, aquilo tudo poderia ter sido uma armação contra ele, um corte súbito em uma provável ascensão ao cargo de diretor efetivo, afinal, logo após a sua demissão Oswaldo ascendera ao cargo cobiçado; havia apenas duas pessoas com gabarito para a vaga, ele e o amigo... E a empresa jamais convidaria de volta um ex-funcionário que demandasse contra ela na justiça, a história fazia sentido...

         - IV -

Assim, ao olhar cobiçado para Dalva, não mais se ressentia em ofender o amigo, mas um misto de desejo espúrio e de vingança... Precisava  prolongar seu convívio com a esposa em dúvida para ganhar tempo e ganhá-la totalmente, pois já sentia que ele não era indiferente a ela, questão de oportunidade e de um clima apropriado para as revelações que esperava ardentemente...
...Afrânio?! você, de repente ficou distante, como se eu não estivesse aqui... (Reclamou delicada a Dalva)... Está se sentindo bem?
- Raramente falo de mim (Buscando desculpar-se por ter-se perdido nas recordações recentes), acho que me abstrai demais... Desculpe-me se a preocupei, fique tranquila, estou bem...
- Estávamos conversando e você se distanciou, foi longe, não foi? ( rindo)
...( Preciso aparentar tranquilidade, não posso me trair agora...) Nem percebi que estava alheio,,,
- Será enfado pela companhia? Acho que já está na hora de eu ir... ( Olhando o pulso desatenta, como quem o faz por hábito para ver o relógio)
- É cedo, por favor, não vá ainda! ( A pegou pelas mãos, sem perceber a acarinhou docemente)
- Como você é terno, Afrânio, é carinhoso nas palavras e nos gestos... ( Observando as mãos dele sobre as dela)
- ( É agora ou nunca...) Dalva, não posso mais vê-la, não é justo com o meu amigo o carinho que lhe tenho e que mal posso esconder de mim mesmo...

- (Silêncio) - É justo o que ele está fazendo comigo? ( Murmurou ela, buscando razões para confessar seus sentimentos prestes a eclodir...)
- Não é, mas não justifica eu me aproveitar de uma situação para lhe revelar meus sentimentos...Você está carente, fragilizada com estes momentos pelo que está passando, seria leviano de minha parte te confessar...
- Continue, por favor, continue, necessito muito ouvir o que você está querendo me dizer...
- Te confessar que aprendi a amá-la, não como um amigo mas como um homem ama e deseja uma mulher...
- Esses momentos em que me deste os ombros para acolher minhas dores, consolidaram sentimentos que julguei exclusivos para aquele que elegi para esposo e que estavam trancafiados para outros olhos... Veja que peça a vida nos prega ! Quando nos achamos seguros de nós mesmos, certos de estarmos imunes a determinadas sensações, eis que a oportunidade se apresenta e nos põe desnuda em nossas fraquezas...
- Quer dizer que você também me quer?
- É verdade, por que fugir desta realidade? Carências, fragilidades? Não importa como queira chamar isso, importa o que sinto e o que desejo...
(O fato estava consumado, Afrânio a fitava nua ressonando suave entre os lençóis... era uma bela mulher. Tinha para si o objeto de seu revide, queria amá-la como no início, antes de se saber traído, depois misturou-se o mel do amor com o fel da vingança, já não conseguia discernir se ela era um troféu contra a sua solidão ou a espada que transpassaria o coração de quem o ceifou na promissora carreira que amava...
E da altura do 23° andar continuava a olhar perdido os arranha-céus e as pessoas, imerso em si e em seu inferno pessoal... Não se livrara de suas dores, pelo contrário, achava que tinha um amigo, restou um desafeto...
- Quer fazer, matá-lo, esganá-lo? ( Torturava-se sem obter respostas)


* ilustrações do Blog do Lima Coelho, pela contista/poetisa Mel Alecrim, publicado em 08 de maio de 2012 no blog citado.


*TEXTO SELECIONADO PELA EDITORA PENSATA, INTERCÂMBIOS CULTURAIS, PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA VINGANÇA,PRATO QUE SE COME FRIO ? COM PREVISÃO DE LANÇAMENTO TAMBÉM NA ESPANHA.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

NO TEMPO DAS FANTASIAS





Alheio e absorto nas indolências
Flutuando na brisa da aragem
Em sonhos, revendo molecagem
Viagem no tempo, revivescências


Imaginação em torvelinhos
Ocultos anseios meninos
Evolados nas malemolências
Volta aos anos das inocências

Onde tudo era fantasia
Desconhecida a melancolia
Contrariedades, impaciências

E os folguedos de um dia
Incansáveis, divertia e  sorria,
Hoje saudosas reminiscências...

*publicado na Antologia Poetas Brasileiros Contemporâneos n° 91, editora CBJE/Rio de Janeiro/RJ, edição junho 2012.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.



domingo, 6 de maio de 2012




CONTA  DE  CHEGADA

Não cultuo a tristeza,
Desdenhando a cortejo 
Ao invés, vejo beleza,
Na altivez, a cracejo

Vida, peleja diuturna,

Melhor sorvê-la,  fel que seja,
Que a morte sombria, taciturna,
A todos assusta e terror enseja

Embora etapa e não o fim

Será conta de chegada,
E o que será de mim ?


Se mal extremos não fiz
Pouco ou nada, todavia,
Na balança deixa-me feliz


Na hora da verdade
Alma dura, doentia,
Deus, tenha piedade !

sábado, 5 de maio de 2012

TRANSEUNTES DAS ILUSÕES

Tudo seja lançado
Universos infinitos
O sentir enamorado
Os anseios e gritos


Reverberando o real
Em frenesis da fantasia
Arrimos em luzes no ideal
Preenchendo a monotonia


Sapos enamorados da lua
Em devaneios a musa nua
Emoções aos pedaços


Viajantes dos espaços
Vivendo a verdade crua
Transeuntes poetas de mesma rua...