quarta-feira, 28 de julho de 2010

BRASIL UFANO

doença de baixa estima
tatuada, carimbada,
na identidade nativa

terra de proscritos
aventureiros fugitivos
indios e negros escravizados

nossos antepassados
vulneráveis passados
toscos empobrecidos

na Terra do Cruzeiro
aportaram seus sonhos
Nação mestiça desenhada

vestígios hereditários
impregnados nas índoles
de um povo submisso

detentores de riquezas
maravilhas cobiçadas
ufanismo em escarnios

pobre Brasil rico,
intenso, varonil,
com seus filhos servis... 

PACATO CIDADÃO

temor destes conflitos,
surdos mudos,
intramuros em mim mesmo

figura pacata, cordial,
assassino potencial,
em série assombrosa

mantendo oculto
estigmas e barbáries
só vistas em filmes

lobo voraz
pele de cordeiro
maremotos  íntimos

ah, que besta abrigo
em mim para sentir
o sangue das vítimas !

emoções fortes 
privilégios da ficção
insosso pacato cidadão... 

segunda-feira, 26 de julho de 2010

ÍNTIMAS INCURSÕES

de tal forma
escarafunchei o baú
a cada investida,
trazia à tona trechos,
retalhos, fragmentos
momentos do ontem antigo

de tal sorte
a formar um mosaico
desconexo, desconforme,
incongruente, de antanhos fugidios
como peças que não se encaixam

em contraste com a pressa
de quem anseia por algo impreciso 
o certo é que garimpava nos trastes
um enredo que se esvaia 

fluía, diáfano, sutil
indo pelas frestas
congestas de poeira
levando para além
o que buscava sem saber o quê...

FOLHA EM BRANCO

na folha imaculada
mensagens e grifos
tudo se cogita

um testamento
posses e coisas
ou breve recado

desenho colorido
jardins em flores
ou última morada

hino de louvor
grito de protesto
um alento suicida

a revelação de uma dor
crime inconfesso
ou tímidez de um amor

lacônico gemido cifrado
angústias de enjeitado
um brado por socorro

jaz sobre a mesa
o papel ainda virgem
à espera de um enredo

final feliz ou inusitado
esperado ou estupefato
talvez um nada narrado ...


...o papel tudo aceita, viagens em alegorias, verdades e fantasias...

(06/08/2009)
* Selecionada para figurar na Antologia 100 Poetas Brasileiros Contemporâneos, edit CBJE, Rio de Janeiro, edição Julho/2010.

FURTIVAS PERCEPÇÕES

sons trazendo emoções,
encontradas, relembradas,
guardadas no imo d´alma

num momento, repente,
alheia, ausente, despropositada,
eis que reacende, intensa

leva a mente, trai os olhos
nublados d´água,
dique extravasado, viagens

e outros cenários íntimos
se descortinam, avivam,
alheando olhares, distanciando...


*selecionada para figurar na 68° Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, edit CBJE, Rio de Janeiro, edição Julho/2010.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

VIDAS EMPENHORADAS (CONTO)




Dos passos dados os mais longos foram no sentido da entrada ao balcão


Informado pelo atendente, deixou seu nome e sentou-se em uma poltrona, ao fundo da sala, onde também outros aguardavam a sua vez de serem atendidos.


Nas mãos trêmulas o estojo precioso, arquivo de recordações, de inestimável valor sentimental.Tinha uma decoração de simples ornado, apertava docemente a pequena caixa, como se a acariciasse, feito um parente que vai viajar e que, antecipadamente, já sentisse a ausência.

Revia-se enamorado trocando alianças naquele inolvidável dia em que os marcaram para sempre, ali estava o par de anéis esponsalícios ,retirado com cuidado do dedo da amada, pretextando recomendações médicas.Fitando o par de alianças rememorava como estavam felizes naquela data em que o mundo parecia feito exclusivamente para eles.


A mente viajava em espirais que o fazia reaver os passos que o guiaram até ali. Os olhos nublavam.


- É grave, doutor ?


- É sempre preocupante, mas se consegue tratamento.


Casado há exatos 50 anos, a companheira passou a manifestar sintomas, caroço no seio, tumor maligno, encarecia ser extirpado o quanto antes, ablação urgente.. A internação seria imediata, pelo sistema público de saúde, mas haveria outras despesas, as viagens da pequena cidade até a capital e a hospedagem,.


Olharam-se amuados e cúmplices, as mãos enrugadas apertadas como se pedindo socorro um ao outro. Tantas expressões nos olhares que sabiam se comunicar sem pronunciar palavras. A idéia de se separarem doía mais que a cirurgia inevitável. Ela ficara internada, ele viu-se só a ter que tomar as decisões.


Casal idoso, sem filhos. A velha casa, herança dos pais dele, era o teto que os acolhia e viviam como pássaros felizes naquele ninho. A aposentadoria de ambos, dois salários mínimos, dava para as despesas mais imediatas, jamais para aquela inusitada situação..

Na caixa acalentada nas mãos, trazia lembranças que se reportavam às histórias daquelas vidas, de suas mocidades, namoro e, por fim, o longevo casamento. Eram como os retratos na parede da sala, deles e dos antepassados. Cada conquista uma lembrança através de um mimo, um par de brincos, um anel, as alianças benzidas na capela pelo pároco, um pingente deixado no leito de morte pela saudosa mãe, ali estavam suas vidas, suas memórias. Havia o terço em pedrinhas semipreciosas com o crucifixo em ouro dezoito, um broche com pequenos estilhaços de rubi, e até um dente de ouro, que já tinha sido moda em outros tempos, preservado como relíquia.


Aguardava o atendimento, opresso pela inevitável separação. Nem supunha o valor que lhe pagariam por aquelas preciosidades de uma vida inteira, retalhos de épocas, tempos felizes... Mas se aquilo poderia significar a recuperação da saúde da companheira, então tudo faria sentido... vão se os anéis, ficam os dedos, esboçou um sorriso amarelo ao lembrar-se do ditado popular. Percebera que deixara de sorrir desde que o infausto os visitou. Sentiu um certo alívio com aquele gesto imprevisto, um riso, que jamais se permitiu desde então.

- Hildebrando Marques - anunciou o atendente.


- Sou eu, levantou-se vagarosamente, apertando entre as mãos o pequeno baú.


O homem, gentil mas econômico nas palavras,meio calvo, utilizando-se de uma lente grossa, fazia silêncio e olhava detidamente cada peça, segura por uma pinça, como se vasculhasse detalhes...


- São originais... falou em sussurro o vendedor ansioso, sentado em uma cadeira junto à mesa do avaliador. Parecia defender seus pertences da aparente desconfiança daquele estranho e quieto observador.


Com um aceno de cabeça, imerso em suas pesquisas, parecia concordar com a inusitada manifestação do velho.


- São originais sim, senhor, mas de pouco valor. Exceto o broche e as alianças, as demais peças não representam muito...


- Não ? Susteve a respiração como se estivesse ofendido...São nossas riquezas.


- Entendo, senhor, têm o seu valor sentimental. O que quis dizer é que não são metais nobres, de valor pecuniário relevantes, compreende ?


Um suor frio brotava da testa do ancião, um medo de que suas esperanças fossem infundadas.


- Isso quer dizer o quê, meu senhor ?


- Lamento, mas apenas o broche e o par de alianças possuem algum interesse para a penhora. O broche por estar intacto e ter um desenho raro, as alianças por serem de ouro 18, e também por estarem conservadas, apesar dos anos.

Acompanhou em silêncio a separação das peças colocadas cada qual em envelopes pardos, registrados com etiquetas manuscritas pelo avaliador.


Autômato a vagar até o guichê. Voltava com a pequena caixa, desprovida do broche e das alianças, com uma quantia, muito aquém do que necessitava.


Dos passos dados os mais resolutos e rápidos foram no sentido da saída.


Sua figura arcada deixou a loja e foi desaparecendo no meio da multidão...


Junto ao corpo, como acalentando um ente querido, protegendo-o, levava a sua caixinha preciosa, materializavam momentos únicos, ricos em lembranças, uma verdadeira fortuna pessoal, que importava aos demais ?


Era a maior riqueza para eles.








TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE CONTOS IMITAÇÃO DA VIDA, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO, EDIÇÃO JULHO/2010.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

PASSOS RELEMBRADOS

ainda ontem


vaguei por estas calçadas
ensimesmado, desatento

trazia nos sonhos, alentos,
saturados na juventude
e na mente esquadrinhava

textos, pensamentos,
vidas às personagens irreais
arrimos nas solitárias rotinas

a viver dias maçantes
a quem, não alado,
só sonhava voar...

NUANCES EXISTENCIAIS

pêndulo oscilante
 frenesi  apatia,
sanidade insana,
tristezas euforias

tênues véus
a louvação
ode à vida
e amarguras

céu  precipício
tão próximos
luzes  trevas
paraíso abismo...



sexta-feira, 16 de julho de 2010

VIVÊNCIAS

sua face um mapa
traçando caminhos
lembrando histórias

seus cabelos alvos
dispersos, desatentos
soltos no vento

nas rugas os olhos
intensos, atrevidos,
ricos de descobertas

a pujança viril
distante
de quem dela se fartou

nos deleites da mocidade
a intepridez indômita
seus ganhos e perdas

tudo assentia, mudo,
sereno, reflexivo,
sábio de vida vivida

sem admoestações
recriminações
conselhos

cada qual aprendiz
nas caminhadas próprias
sonhos e desenganos...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O SOL NA JANELA

debalde os raios intensos
esmaecem já seus ardores
tisnado em nuvens densas

na opulência de seu reinado
cinzas ficam seus véus áureos
encolhe-se na timidez

e, pusilânime, reflete
caindo, vencido, exangue
a majestade em seu ocaso

divide o horizonte
com o tempo hostil
bátegas d'água não tardam

recolhe seu esplendor
volta ao seu silêncio
triste dia sem calor...

segunda-feira, 12 de julho de 2010

CRIADOR / CRIATURA

com afinco esmerado
esculpia a autoimagem
na visão de si se detinha

pintado de majestoso
nele se mirava
a si admirando

do cascalho
a pedra bruta
luzia aos poucos

beleza e perfeição
de um ente ideal
estranho se lhe ficava

ele com suas feridas,
contraste da arte esculpida,
o imperfeito mortal ...

terça-feira, 6 de julho de 2010

ABSTENÇÃO

que se me faça
os acontecidos
me distancio,

nas correntezas
das asperezas
me policio

não remo contra
nem mãos em pregos
solto minhas rédeas

se dizem sim
não é ruim
melhor assim

não desconverso
nem tergiverso
refugio em mim...

A DISSERTAÇÃO E A POESIA

calei-me, condoído,
nada fazia sentido,
sentir era o de menos

apura-se a razão,
só a ela reverências
o mais, fraquezas

olhares enviezados
ausências momentâneas
considerações estranhas

furtivas percepções
narrativas em versos
discursos patéticos

na dissertação
era o real nu e cru
o mais, incômodos...