sábado, 26 de julho de 2014



PUBLICADO NA ANTOLOGIA CONTOS LIVRES, Editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ

O SOL EM ZÊNITE




O homem adentrou o  recinto, ampla sala de recepção, aturdido, em passos vacilantes, indecisos. Conseguira uma cópia da chave com um funcionário, na noite anterior, que não tinha conhecimento de que não era mais um dos proprietários. Alegara esquecimento e que precisaria retirar alguns documentos naquele dia pela manhã, habilmente o aguardara quando se distanciava da empresa.
O olhar incrédulo para as novas instalações, provavelmente uma aquisição muito cara para quem estava  prestes a fechar as portas. As mãos crespas raspavam, amiúde, nervosamente, como um rito, o tecido da calça, aparentando limpar o suor dos dedos, visível pelas manchas aparentes na altura superior da peça, próxima aos bolsos. Trajava um terno de cor sóbria. Tinha os cabelos escorridos com uma teimosa mecha a cair pela testa, nos atos ágeis os gestos denunciavam a impaciência e uma ansiedade latentes.
No salão deserto, de várias saletas e divisões, os passos ganhavam ressonância perturbável ao visitante, o que o colocava em posição de cautela, andando em passos comedidos, não querendo se denunciar.
Os dedos amarelados pela nicotina correram  o peito e retiraram do bolso um maço de cigarros, metendo um deles, de forma automática, nos lábios, porém logo estraçalhado pelos pés, após a inútil busca por fogo.
Ninguém, além dele, parecia estar no imóvel. Procuraria, pois tinha uma nefasta certeza de que fora iludido, trapaceado em sua confiança, enganado pelos sócios.  Jamais poderia supor  aquela situação, a de ser posto para trás pelos dois, irmãos por consideração, amigos de escola e de formação. Estudantes de mesma turma, eram inseparáveis. Juntos se consorciaram para o empreendimento, agora via-se colocado   para fora, descartado como uma peça imprestável. Havia uma triangulação platônica naquela relação, ambos cobiçavam e julgavam amar a sócia, colega e amiga de ambos. Eram os três que sempre caminhavam, até então, lado a lado.
Há pouco tempo haviam concordado com a extinção da Empresa. Não estavam obtendo os resultados que esperavam, os recursos financeiros escasseavam, faltavam clientes. Tinham uma incorporadora imobiliária, porém a realidade não era alvissareira, portanto teriam que se desfazer da atividade comercial.  A ele coube uma pequena indenização por sua cota. Mas os outros não desistiram de continuar tentando, não cumpriram o combinado. Sentia-se excluído, posto a parte. Como puderam, em curto espaço, aumentar os negócios que pareciam fadados à falência?  A aquisição daquela sede era a prova de que havia algo de sujo naquela proposta de exclusão. Aquilo não parecia certo, por que ele  teve que aceitar a sua retirada se eles continuaram com o empreendimento? O fato concreto é que os contratos a serem efetivados, inexplicavelmente, foram cancelados, gerando uma insegurança nas finanças, ultimando a decisão de finalizarem a Empresa. A proposta pressupunha, d ividido em partes iguais entre os três, em seguida seria extinta a atividade. Bastou que ele concordasse, após se desligar, não só não ocorreu o fim, como os então negócios cancelados voltaram a ser implementados, promovendo uma súbita mudança de planos, com a prosperidade evidente da Incorporadora.  Julgava-se desonestamente excluído pelos demais participantes.
Idéias que o infernizavam, julgava-se duplamente traído, como sócio e amigo. Bastou aceitar a sua retirada que a empresa, aparentemente estagnada, ganhou agilidade, mostrava-se próspera. Sentia que os dois passaram a evitá-lo, coisa inimaginável em outros tempos, o que só aumentava a sua desconfiança  e certeza da traição.
 Ambos nutriam uma paixão comportada pela sócia, desde as épocas escolares, disputavam a simpatia da amiga. Aquilo chegava como um duplo golpe, perdera a participação societária e a percebia distante de si, aliás, mais próxima do rival e ex-sócio, a quem já não considerava  mais como o amigo de outrora.
À medida que a hora transcorria, como vitimado por sufocante calor, um lenço branco de motivos azuis ensopava-se limpando-lhe a fronte, sempre em atitudes cuidadas. O bolso do paletó estufava-se com o lenço ali enfiado em desalinho, com parte pendida para fora. A gravata arregaçada, adorno a incomodar o pescoço vermelho e a cair por entre os pelos entrevistos pela abertura de três botões abertos na camisa. A descompostura casava-se com as feições contraídas, os lábios cerrados traiam ligeiros repuxos na face lívida. Os olhos injetados de veias minúsculas e vermelhas, excêntricas às pupilas, na clara visão de noites insones. A barba aparada com desleixo, ferindo-se em alguns pontos da face, visíveis em manchas de sangue seco.
No silêncio imperturbável do ambiente, o sobressalto do visitante intruso com o toque pesado do velho relógio de parede, modelo clássico, anunciando em meio tom as onze primeiras horas daquele sábado de sol. O escritório não tinha expediente, propício a ele para se aventurar a remexer nas gavetas em buscas de documentos e comprovação do logro a que fora submetido. Passado o susto, como que movido pela urgência , os passos tornaram-se mais céleres, atrevidos, vasculhando atentamente os corredores, movido pela força brotada na ânsia da procura, como se fosse a razão única de sua existência.
Seus gestos cuidadosos, precavidos, cederam à insânia de percorrer confusamente os cômodos contíguos à sala de entrada, tornando-se uma patética figura numa arena, qual coelho utilizado para sorteio, onde se apostam em qual casa vai entrar o animal, uma vez solto ao centro.
O barulho de uma chave na maçaneta da porta de entrada fê-lo deter-se, num estalo se recompor, ocultando-se ao lado de uma estante.
Sons de vozes , com folguedos alegres, em atitudes sensuais, a porta se abre e se fecha rapidamente.  O casal se beija calorosamente, satisfeitos, parecem brindar a concretização de uma boa venda.
Despreocupados, comentam as novidades, sem suspeitarem de que não estavam a sós. Certos do anonimato, comemoram os êxitos dos empreendimentos realizados, além do descarte do sócio, um a menos na divisão dos resultados. Conceituavam-no como um ingênuo, e o mundo não perdoa os fracos, na conclusão dos convivas entretidos em um brinde. Para compensar, ambos julgavam que a lição seria proveitosa ao ex amigo, teria a serventia de experiência de vida.
Já, então, não restava mais nenhuma dúvida. Nem precisava de documentos comprobatórios da farsa, os próprios se denunciavam sem suspeitarem de sua presença. Restava a ele presenciar os dois entregues aos afagos e brincadeiras. Seus gestos são automáticos, como se executasse um plano já decidido, pensado, arquitetado em mil conjecturas. Bastava concluí-lo. Sorver o fel de tantas mágoas, vivenciar aquilo que torcia, no íntimo, para não ser verídico.
Nas mãos nervosas um cano curto de uma arma, tiros infalíveis, a mão direita apoiada na esquerda. O primeiro a cair foi o sócio, sem tempo para pronunciar palavra.
Atordoada pela surpresa, debalde tentou se defender acusando o outro que agonizava pela ideia infeliz.  Não teve muita chance de suplicar por misericórdia, a bala fora fatal,  à queima roupa. O atirador sentiu nas narinas a fragrância do perfume suave dela que tantas vezes o embevecera. O sangue tingia o vestido branco decotado.
A abóboda do recinto resplandeceu de luz, o sol subia em zênite, iluminando todo o interior, no momento em que o relógio, em suas badaladas sonoras, ultimava as doze horas.
O homem, ensopado em suor, entre fatigado e angustiado, apático, detona mais um projétil, contra a própria cabeça.
No chão, três corpos.  Excluído no sucesso, permaneceriam unidos na desgraça.


*ilustrações do blog do Lima Coelho - contos, crônicas, poesias e artigos - São Luiz/MA
* Publicado em livro na antologia CONTOS LIVRES, editora CBJE -Rio de Janeiro-RJ, agosto 2014

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