sexta-feira, 1 de novembro de 2013




INCONFIDÊNCIAS DE  WALKÍRIA



Da janela de madeira, no encosto protegendo os braços por um pequeno travesseiro, ali passava todo o tempo de que dispunha, única mulher em casa, cuidava de manter a limpeza e demais afazeres, sobrando-lhe horas para devaneios e distrações. Vivia imersa em suas recordações, alternando épocas, viajando nas lembranças, interligando o passado e o presente.
No desenrodilhar de suas divagações saudosas, via-se jovem e enamorada do primeiro homem, questionava-se consigo mesma, ralhando se não fora exigente demais. Acabou por fazê-lo desistir devido ao gênio intransigente e autoritário. Não era de dar mão à palmatória, pessoa convicta e de opinião, não dada a meios termos. Desiludira o pretendente por picuinhas, embora sentisse a falta que ele deixou. Esta era a versão corrente, opiniões do velho pai e dos manos, que ela, por conveniência, adotara para si mesma. Os fatos, porém, eram outros, insuspeitos. Apesar dos hábitos conservadores de sua juventude, partiu dela a vontade de entregar-se ao jovem, no fundo achava um absurdo ter que ser desposada para só depois desfrutarem um do outro. Havia tantas exigências antes do casório, além do que, se percebesse que não se davam bem na intimidade, estariam atados a vida toda por um compromisso oficial, além do religioso, valores considerados por todos. Pensava com seus botões, tantas relações falsas, mantidas por preceitos sociais e hipócritas, isso não queria para ela, nunca.
 Ria-se consigo mesma da cara de espanto dele, diante a sua proposta inusitada, ao propor-lhe que fossem às vias de fato, ou seja, que iniciassem a vida sexual mesmo antes dos entretantos exigidos pela sociedade, e dele ter uma condição financeira mínima para se casarem.. Será que ele pensou que ela não fosse uma mulher “direita”?,Imagine desejar sexo, principalmente partindo a iniciativa dela,.aquilo fugia a qualquer propósito de uma moça respeitável e virgem. Geralmente cabia ao homem ser mais ousado e até atrevido com a namorada, avançando sinais. Osnamoros costumavam ser vigiados pelos pais ou irmãos mais velhos. Sentia-se enfastiada de namorar em olhares, apenas com o entrelaçar das mãos, a imaginação corria solta, suspirando-se. Levá-lo para a cama, portanto, foi um plano mirabolante.
 Daquela mesma janela, que dava para o seu quarto, convenceu-o a transpô-la, a avançadas horas, para dentro da sua alcova, antecipando as esperadas núpcias. Meio sem jeito, pego de surpresa o pobre, vermelho de vergonha parecendo um tomate nas bochechas alvas. Na verdade fora intimado, não restava alternativas. Ou a desejava e provava, ou acabariam com o noivado ali mesmo. Recusar seria por a prova sua virilidade, além de perdê-la, sabia bem o gênio da pretendida. Quis argumentar de que poderiam falar deles, e que devia respeito ao pai dela, viúvo, e aos seus três irmãos, mas não houve jeito.
 Acertado os detalhes, ela deixou a ampla janela de madeira entreaberta, sem o trinco, e o esperou nua sob a camisola de algodão. Por precaução deixou um azeite sobre o criado mudo, para lubrificarem-se, se houvessenecessidade. Cobriu com um pano grande a cama, não queria deixar vestígios, caso sangrasse. Ela mesmo encarregava-se de lavar as roupas, portanto sem riscos de descobrirem.
 Todos os familiares se recolhiam cedo, depois de desligarem o velho rádio de pilhas na sala, onde, após a ave Maria, ouviam as notícias..O pai e irmãos tinham uma sanfona, onde se dedicavam em incansáveis notas, passando de mão em mão entre eles. Em pouco apenas o ressonar de pessoas dormindo, por vezes um ronco mais forte, mas todos entregues aos leitos, depois da labuta na lavoura pelo dia todo.
 Ao ver-se dentro do quarto, ainda assustado por transpor a janela de forma clandestina, como um ladrão na madrugada, ela lembrava-se risonha e divertida da expressão de espanto dele. Possivelmente também sua primeira experiência com uma mulher, pelo susto e despreparo que apresentava naquela situação.
Teve que ser dela novamente a iniciativa, diante ao inerte companheiro, sem saber como agir. O temor de ser descoberto tirava-lhe a excitação, sem saber o que dizer, estava mudo e apatetado. As conversas, poucas, deveriam ser sussurradas aos ouvidos para não atrair a atenção dos demais da casa, entregues ao sono pesado.
O que faltava a ele sobrava a ela, afoita e desejosa de ser possuída. Vendo-o atônito, despiu a camisola e o beijou no pescoço, ajudando-o a desvencilhar das vestes. Aquele homem troncudo e ingênuo, parecendo antes um menino assustado, tinha o corpo malhado pelo sol do campo das colheitas. O viço dos ombros largos, que o recostar de seus seios nas costas os intumesceram de desejo, erguendo-lhe os mamilos. Arfava só com o encontro de sua pele macia na dele, áspera e máscula. Seu dorso nu a instigava a quebrar o gelo que o constrangimento do incipiente jovem demonstrava. Por fim, seduzido e entregue, rompia os limites da timidez e a embalava nos braços, sequioso de seu corpo alvo e bem delineado. Vulcões em erupções, amaram-se freneticamente, quedando-se extenuados. De quantas milionésimas vezes aquele filme voltava a ser exibido em suas lembranças, a reavivando nas saudades, deixando-a excitada? Suspirava querendo reter no presente o passado distante.
 Contudo, a sua ousadia era demais para ele, assustado com a sua voluntaridade, mesmo tendo sido o primeiro, os vestígios rubros no pano não deixavam dúvidas, não suportou a avidez da companheira, sempre o desejando mais e mais. Em nada lembrava a terna namorada, discreta, que conhecia. Aparecia diante a ele como uma devassa, ainda bem que ela se manifestou antes do matrimônio, jamais teria paz com aquele demônio de saias como esposa, com aquela sanha indomável com certeza o trairia. Escafedeu-se da cidadela, após mais alguns encontros arrebatadores e furtivos, emagrecera a olhos vistos. Seu sumiço deu-se a conta de que estivesse enfermo e fora buscar recursos médicos em outra cidade. O pai e os irmãos, por respeito à abandonada, evitavam o assunto, preocupados com a má sorte da desafortunada familiar.
Ela ,na cara de santa, sabendo bem o porquê da ausência, fazia-se de muda, triste, viúva de homem vivo desaparecido. Razão de silenciosa e solidária consternação dos familiares. Quando as saudades batiam mais forte, vinham as lembranças daquelas noites clandestinas e sensuais, sua iniciação sexual tão desejada. Ele poderia ter sumido, mas duvidava que não se lembrasse dela e de seus encontros, estreantes ambos nos inconfessáveis prazeres.
O segundo a cair na teia da aranha, ou no quarto da desconsolada solitária, foi um vendedor ambulante, vindo de outras plagas. Achegou-se cavalheiro para apresentar suas bugigangas, foi fisgado. Estavam a sós em casa, os demais demandavam cedo para a roça, ela ficava para cuidar dos afazeres domésticos e da comida.
 O homem de fala rápida, matreiro expositor de seus produtos, a quem foi servido um cafezinho. Observando a vizinhança, atenta, foi  fechada a janela e o  trinco na porta. Ela bem sabia seduzir, deixando a mostra as pernas, de forma proposital. Ele, respeitoso, fingiu não perceber, continuando com sua prosa comercial, repetitiva e chata. Não havia tempo a perder, quando deu por si ela estava lhe roçando os seios desnudos, expondo seu sorriso provocante e convidativo, não dando azos a nenhuma dúvida de suas libidinosas intenções.
 Homem experiente, entendeu rápido o jogo da sedução, a pegando pelos cabelos e mordendo de leve seu pescoço... De leve, recomendou ela, sem deixar marcas...
 Nus como vieram ao mundo, saciaram-se um do outro. Extasiados naquela tarde solarenta e prazerosa. Dele não aceitou nada, nem uma lembrancinha. O que o intrigou, afinal, pensava, elas sempre cobravam alguma coisa, um enfeite para o cabelo ou outro mimo de pequena monta, dos quais seu mostruário era repleto. Ele que não imaginasse que ela fosse uma rameira, vendendo-se por quinquilharias, não disse mas deixou claro, demonstrando desinteresse por sua mercadoria. Dele desejou o calor e ardor de seu sexo, nada além disso.
 Ficaram de se ver outras vezes, sempre no máximo sigilo. Nem se preocupou com aliança no dedo do conversador, não era ciumenta, só o quis por momentos. Nunca mais se viram.
 Lembrava-se do romance com o dentista, espremidos no consultório, alvoroçados, ela e o doutor, parecendo consulta ginecológica e não dentária. Aquele tratamento rendeu muitas idas, parecia que estava com os dentes em cacarecos, com duas sessões semanais, durante algum tempo. Até que ele se rendeu, revelando que não poderiam continuar, baixando a guarda nos brios de macho e confessando-se exaurido, comprometendo sua vida conjugal já estremecida. 
 Outros se seguiram, de preferência casados. Assim não abriam o bico com receio de se comprometerem. Quanto a ela, o interesse era por instantes fugazes, não se prendia a ninguém. Gostava de tê-los quando quisesse, embora, assustados com sua volúpia, após poucos encontros se ausentavam. Alguns, respeitosos e temerosos, ao vê-la na janela, cumprimentavam-na retirando o chapéu, cortesia dispensada a respeitáveis senhoras e senhoritas. Respondia as vênias com irônico e insinuante sorriso.
 Tinha  a certeza de que os varões a temiam na intimidade, debandavam com receio de não darem conta de sua tara insaciável. Era melhor assim, detinha um trunfo contra boatos maledicentes, sabia os limites de cada um com  quem se deitava, tinham-os à mão, por temerem esse segredo. A convicção do receio deles com aquela arma implacável, assim, tacitamente entendidos, a veneravam como uma respeitável dama.. 
 Para os demais que passavam, obsequiosos, podia ler em suas fisionomias os seus pensamentos, imaginando-a uma pobre infeliz que ficara para titia, solteirona. Havia ainda as casadas, a passarem orgulhosas exibindo seus pares ( muitos deles bastante conhecidos na intimidade das quatros paredes de seu quarto) a ostentarem o matrimônio como troféus.
 Quanto a ela, ria consigo mesma, sentia-se livre para usufruir  de todos,sem compromissos com  nenhum..

PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA CONTOS DE OUTONO, EDITORA CBJE - RIO DE JANEIRO-RJ, JUNHO DE 2013.





      Selecionado para figurar na Antologia de Contos SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ, editora CBJE, novembro de 2013. Publicado na Antologia de Contos FEIRA DE GUADALAJARA, MÉXICO, em 2011.

O PRIMEIRO AMOR

Como tudo começou não lembrava, apenas tinha a impressão de ter galgado o céu das fantasias e o inferno das inquietações, trocando suas singelas certezas por cruciantes dúvidas, sua paz pelo tumulto íntimo. Como uma revolução interior, doendo, machucando, transformando sua visão de vida, usos e costumes.


Morador de cidade pequena, com uma única grande avenida, com pistas duplas, unindo os extremos da cidadela, onde todos os moradores se encontravam várias vezes no dia, na praça, igreja, escola, cinema, mercado..

Não se percebeu quando seus olhos começaram a ver além das inocências infantis, povoando seu mundinho de uma estrela, fada, ou algo assim, fantástico. Estava apaixonado, sensação nova, estranha, inédita àquele coração infanto juvenil, incipiente nas artes só reservada aos adultos.

 Fato é que já sentia emoções não tão inocentes assim, despertava para desejos inconfessáveis, a puberdade se prenunciava, nos pelos pubianos, acnes no rosto, curiosidades masculinas despertando no garoto, metamorfose operando entre duas estações da existência.

A razão de suas atenções repousava em uma garota, uma amiga. Bastava avistá-la à distância para ter tremores, aquela figura feminina trazia-lhe desconhecidas emoções. Começou a se observar melhor, a cuidar de si mesmo, passando algum tempo ao espelho, lamentando suas espinhas predominantes no rosto imberbe. Escovava com mais atenção os dentes, asseio nos cabelos, capricho no penteado. Percebia-se desengonçado, queria ter uma certa postura, elegância na aparência. Preocupações que despontavam, incômodas, tirando-lhe o sossego.

Justo ele que nunca se incomodara muito consigo mesmo. Bastava chegar da escola, colocar o calção de elásticos, desnudo o dorso, descalço, a curtir a sua liberdade e a brincar com os amigos, sem preocupações como se apresentava, ou como o viam. O mundo era mais fácil, bastava viver a vida. Porém aquelas inquietações exigiam demais dele, reclamavam cuidados, descobria a vaidade  Parecia pirraça, justo ele que fazia troça dos almofadinhas sempre bem vestidos, ele tão pouco se cuidava, chegava com os cadernos, comia alguma coisa e saia. Tudo isso antes, agora, começava a se notar, questionando-se, cobrando-se com a sua aparência.

O desespero o visitava ao vê-la em companhia de outro menino, como padecia, torturava-se,  apresentava-se ao mais impertinente dos sentimentos, os ciúmes. Ao estabelecer diálogos com a amiga, amada secreta, forçava para disfarçar seus ímpetos e intenções, contidos na timidez ruborizando as faces. Será que ela desconfiava, saberia nestes momentos o mal que lhe fazia ?  Longe, queria vê-la, mas perto não sabia como agir. Diante a ela, a si se esquecia, esmerando em cortesias, fazendo de tudo para agradá-la, solícito e vassalo diante a sua rainha .Que suplício o martirizava, arrancou-lhe a inocência e a paz, a maldizia por isso, amando-a, numa confusão de sentimentos, atrapalhando-se.

 Vontade tinha de esquecê-la e retornar à  liberdade de seus calções de elásticos, das tardes inteiras para se distrair, caçando, nadando no pequeno rio, jogando bola. Lamentava restringir-se abandonando o seu viver pacato, moleque, descontraído, do andar destratado e cômodo. Contudo, algo sinalizava de que já não era o mesmo, aquelas infantis atividades pareciam coisas do passado.

Aquela pequena e querida criatura não desconfiava de suas dores, recalcando anônimo sentimento. Sentiria ela seus embaraços, na timidez muda, inconfessa angústia no peito a transbordar de fervor ?.  Queria fugir e ficar ao mesmo tempo, ali estar não estando.  Não sabia onde colocar as mãos, mal sustinha -se  nas pernas, o sorriso amarelo nos lábios e o olhar flamejante, pronto a denunciá-lo, contido em disfarçadas atitudes atrapalhadas.

 Não sabia no que ia dar aquela comoção experimentada, sofria como jamais pensara ser possível. Dor presente na alma, não diagnosticada no corpo, arrepios e tremores, suspiros inopinados, suores nas têmporas, parecia possuído por outro ser a importuná-lo. Se aquilo fosse o amor, antes não tê-lo conhecido, jamais.

Os seus olhos a perseguiam em todos os lugares. Na missa de domingo, no recreio da escola, no cinema, sentado em poltrona próxima sem coragem de se manifestar. Aquilo tudo chegava às raias da loucura. Certa feita, na procissão, onde todos tomavam parte, seja acompanhando o séquito religioso ou assistindo nas calçadas, ao vê-la, distraído, os olhos fixos, carregando uma vela acesa, quase ateou fogo no véu de uma filha de Maria, que ia a frente.

No anseio de encontrá-la, aprontava-se, mantendo lustrado o único par de sapatos, para o simples deleite de admirá-la, amando-a em silêncio.
Como aquilo era sofrido, tornava-se taciturno, arredio aos amigos, sem coragem de confessar o que sentia, até, talvez, por não saber exatamente o que acontecia consigo.

 Um dia mudou-se da cidade, acompanhando a família. A imagem da amada o perseguiu em saudades. Com o tempo, tantas convivências com o sexo oposto, lembranças boas e más, aprendizados, aventuras louváveis ou amargas, experiências, mas sempre retornando à lembrança aquele amor menino, tão meigo e tão dolorido...

sábado, 28 de setembro de 2013


ÁGUAS E MÁGOAS ( CONTO )





Suas lágrimas mesclavam-se com o suor. Onde as mãos fortes torciam as peças, confundindo-se com os respingos da água da torneira aberta do tanque. Assim ninguém percebia, reminiscências que pareciam acompanhá-la naquele trabalho cotidiano, lavar e estender as roupas nos varais.

Na pressão exercida naquelas vestes alheias, forma de arrecadar o sustento dos 5 filhos, parecia desafogo imprimido com força, sustendo gritos e dispersando tristezas. Ao término, exaurida, já não pensava nos problemas, apenas no descanso da lida, a recomeçar no dia seguinte.

Condenada pela morte do companheiro, cumpria pena e trabalhava no cárcere como lavadeira, uma liberalidade da diretoria do presídio e forma encontrada para remeter alguma importância aos filhos, espalhados em casas de amigos e parentes, após a tragédia.

Cansara-se de ser constantemente espancada, apanhando como um Ser sem vontade própria, ao sabor dos humores etílicos daquele homem rude e imprevisível. Agüentar os sopapos desferidos até que suportava, mas que não tocasse nos pequenos e indefesos, isso não permitia. Virava uma fera em defesa dos filhotes. Crescia em sua fúria leonina, inimaginável na postura frágil e acanhada.

Que Deus a perdoasse pelo desatino, mas não via outra forma de dar cabo àquela situação. Era a miséria e o sofrimento dos gritos e agressões costumeiras. As crianças encolhiam-se aterradas com as investidas daquele homem furibundo, incapaz de atos de delicadeza, exceto nos momentos em que a procurava como fêmea, satisfazendo seus desejos carnais, feito animal instintivo, não humano. Raros instantes em que parecia lhe dar importância, em que a desejava pelo seu corpo não entendendo  sua alma.  A culpava por tudo que a vida madrasta lhe impunha, os reveses da sua trajetória, os percalços dos caminhos errantes, do serviço duro, inconstante. Dos bicos eventuais para ganhar o pão, despendido pelo caminho entre goles, de boteco em boteco. Ela e os filhos com os trapos e trastes mudando de endereço de tempo em tempo, despejados por falta de pagamentos, errando de barraco em barraco, feitos nômades.

Jamais fora capaz de supor que um dia cometeria um crime, ceifando a vida de um semelhante. Por mais difícil que fosse a convivência, matar nunca esteve em seus planos, porém, em defesa de si mesma e dos filhos, agiu determinada, superando a diferença de forças entre um homem avantajado e forte para uma mulher franzina e de estatura mediana. Depois do terror imposto a todos no lar, vociferou até quedar-se desfalecido na embriaguez, estava chumbado naquele corpo encharcado de cachaça. O rosto marcado de hematomas a fez decidir-se pela libertação.  Nunca mais aquelas mãos se levantariam para agredi-la, sem clemências, o que a aliviava a consciência, apesar de sentir-se impura diante às leis divinas. Persignava-se nestes instantes a lembrá-la a desobediência máxima dos Mandamentos.

O julgamento voltava em suas reflexões. A figura daquele homem de palavreado pomposo, em sua capa preta, pedindo contra ela a condenação máxima, distante de suas razões e sentimentos, vendo-a, injustamente, como uma selvagem a aproveitar-se da condição alcoólica do companheiro para tirar-lhe a vida... Parecia falar de uma outra pessoa, calculista, má, abjeta, premeditada, mesquinha, assassina determinada e cruel; não dela, tão insegura, tímida, trabalhadora e recatada.  Quis gritar, mas foi retida, ainda mais uma vez calada, não bastasse as palavras  eternamente engolidas, o choro sufocado, as angústias reprimidas. Até para chorar abria a torneira, com a água caindo, suas mágoas ficavam despercebidas. A mão cautelosa do advogado de defesa a segurou, retida em sua indignação, sem forças para rebater as acusações injuriosas, carregadas de inverdades. Não, aquele homem de palavreado sofisticado não poderia sequer supor o que fosse a opressão de uma vida amarga como a dela, senão  não a execraria diante a todos aos que cabiam dar o veredicto sobre aquele crime. Sabia-se culpada, não procurou fugir de suas responsabilidades, porém jamais premeditou o assassinato, agiu por impulso, autodefesa, a sua própria e principalmente de seus filhos ameaçados. O que diria aquele acusador, caso estivesse sendo julgado o morto, no papel de assassino ? Sim, pois numa daquelas surras sofridas poderia ela ser a vítima, assassinada, ou pior, algum de seus filhos, na gana de um pai desnaturado e embriagado. 

Reteve o grito, o choro, a mágoa, como sempre. Parecia uma represa prestes a romper o dique, mas, deteve-se, talvez não por si mesma e sim pelos pequenos que dela necessitavam. Era um vulcão prestes a implodir em lavas incandescentes e fumegantes, arrasando tudo o que viesse pela frente.

A força imprimida na roupa retorcida aplacava a fúria, percebia-se enforcando aquele homem de fala difícil, de olhar frio e decidido, a acusando das maiores baixezas, fazendo-a se sentir pior do que a situação em si já a colocava... Tremia , talvez o matasse, se pudesse, naquele momento, isso a preocupava, ressentida e culpada pelos pensamentos irados.  Por que seria que a idéia de matar, antes tão distante, inimaginável, lhe ocorria nestes instantes de indignação, com freqüência ? Antes sacrificar um frango a constrangia, agora, em pensamentos, queria vingar-se do acusador.  Vago temor a visitava nas cogitações, talvez por já ter matado uma vez, meu Deus ! Sacudia a cabeça como querendo afugentar as más intenções, coisas abomináveis.


 Seus gestos foram contidos, mas o olhar ninguém pôde impedi-la, o fitou com firmeza, altiva, olhos nos olhos, entendesse ele o que lhe ia na alma, seu sofrer e seu ódio. Ele tinha a palavra, a lei, o estudo; ela a sua dignidade, sua vida humilde mas honrada.

Talvez sim, ela fosse capaz de novamente matar, a vida já lhe parecia uma carga penosa demais para carregar. O corpo do ex marido voltava em sua mente, engolfado em sangue, olhos vidrados, asfixiado até a convulsão, as mãos feito garras imprimindo a pressão impiedosa na garganta, consumindo suas resistências, enfraquecido pelos teores alcoólicos que impedia a reação. Era uma fera no ataque, não dando chances para a presa, alimentada pelo medo a fazê-la forte e ousada.  

Na aula de direito penal, o velho professor,  então  já um desembargador,  embalado nas lembranças, narrava esta história do início de sua carreira, atuando como promotor público de uma comarca pequena, relembrava que, se fosse hoje, não teria sido tão impiedoso com aquela pobre mulher...

  Os olhos raivosos dela não foram esquecidos, ainda os acompanhava.

Texto classificado para publicação em livro na ANTOLOGIA CENAS COTIDIANAS  da editora Beco dos Poetas e Escritores, outubro de 2011
Selecionado para publicação em livro na antologia de contos COMIGO NINGUÉM PODE, da editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE, Rio de Janeiro- RJ, lançamento novembro de 2013.

sábado, 17 de agosto de 2013

ATRASOS E DESPEDIDA


selecionado para figurar em livro na antologia Contos de Pescador e Outros Mentirosos, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, lançamento setembro de 2013.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora








 Ao percorrer as alamedas silenciosas, de mudas imagens sacras e cruzes, anjos de pedras, capelas e túmulos, na manhã fria, e de chuva fina intermitente, a mente embaralhando sensações, um nó na garganta de soluços aprisionados, e uma incômoda coriza necessitando o lenço, o guarda chuvas adornando a paisagem fúnebre. O pequeno séquito o seguia, na embalagem de madeira, solene de terno e gravata, como jamais o vira antes. Naquela marcha derradeira a primazia da atenção dos presentes, demonstrado no silêncio naqueles passos vagarosos, dando tempo para o carro transportá-lo, junto às coroas de despedidas. 
  
Colocado no túmulo, acimentado, finalizando a sua existência física. Um aperto no peito por não mais tê-lo a esperar-me, sempre impaciente pelos meus constantes atrasos, gesticulando nervoso mas sempre compassivo, como se estivesse com pressa, embora nada tivesse a fazer. Sua silhueta esquálida, protegido pelo sobretudo e o boné escondendo a vasta cabeleira alva, sua figura magra a inspirar cuidados, o seu inseparável maço de cigarros a nos obrigar a buscar a mesa fora do bar. Há tempos não bebia, apenas assistia o bebericar paciente da minha cerveja. A nossa conversa, invariável, era o mais surreal dos diálogos. Forçava-me para ouvi-lo, voz sumida, para dentro. Não raro desviava de minha atenção, como se visualizasse algo, ou alguém, invisível à minha percepção. Fazia pausas fortuitas, dividindo-se com o inusitado interlocutor imperceptível aos meus sentidos, sua expressão peculiar com os olhos ligeiramente estrábicos, como a querer ver-se liberto da companhia que só ele parecia enxergar. Falava, quando se era possível ouvi-lo mais nítido, de um passado cheio de peripécias e aventuras, como a narrar a história de outra pessoa, não a dele, tão pacata e previsível. O ouvia, mesmo desacreditando, como se ouvisse um tio ou um avô, ainda que a diferença de nossas idades fosse de apenas quinze anos. Queixava-se, amiúde, de minhas interrupções em suas narrativas, fazendo-se contrariado, virando os olhos, dando uma baforada mais forte. Alertava-o de não conseguir ouvi-lo, inútil querer separá-lo do tabagismo, de quem dizia que pararia tão logo quisesse, como a maioria o faz diante de seus vícios, isso após pigarrear nervosamente. Assim partilhávamos nossa solidão existencial a dois, ambos imersos em nossas próprias cogitações, paralelas, não coincidentes. Vivíamos em mundos distintos, sem saber como aquela amizade fora alimentada por tantos anos. Apesar disso alegrávamos  ao nos encontrar, ainda que nada de novo havíamos a comentar. O que comovia, e ao mesmo momento incomodava, era o seu entusiasmo em me apresentar a estranhos, aparentando prazer em ter alguém para isso, fosse para o dono do boteco, padaria, caixa de supermercado, casa lotérica, comumente fazendo de mim objeto de suas apresentações, então brigávamos. Por vezes parecia que estávamos de relações cortadas, porém nos esquecíamos disso, eu ou ele. Sua característica irascível era ser possessivo, julgava-se meu único amigo, não queria partilhar-me com mais ninguém. De mundos diversos, além de geração diferente, colecionei afetos e conhecidos oriundos de colegas de escolas, vizinhos e empregos. Ele não mencionava ninguém, a não a ser a companheira de mais de três décadas, de quem separa-se na adolescência e se encontraram muitos anos depois. A ela se referia com cuidados, preocupado com o horário de voltar para casa e com as compras sob sua responsabilidade, nutriam ambos uma dependência mútua. Sempre a achei tolerante demais com ele, tratando-o com mimos, feito uma criança. Era uma relação de parceria e cumplicidade, chamando-a, carinhosamente, de Nia. Fora casado e tivera filhos, nisso era reservado, evitava o assunto. Amara o casal de cães, mortos, com os quais compartilhavam a própria cama. Falava com especial ternura de como os encontrou ainda filhotes. Tenho dele um email onde reclamava de meu atraso no socorro à sua cachorra, interditado que fiquei no trânsito, como se pudesse salvá-la, mesmo a tendo socorrido em outras oportunidades. Não foi o meu único amigo, ainda que apenas eu estivesse no seu velório, além dos familiares da companheira.

Quando o colocaram no jazigo, despedi-me de meu controverso parceiro de encontros, no partilhamento de nossas vidas diferentes, e que, por alguma razão, nos encontrávamos para conversarmos de coisas diversas e distintas, num entrosamento incompreensível ao bom senso.
Voltei sob os passos entre as estátuas retratando saudades, já sentindo a falta dele a reclamar de meus costumeiros atrasos...

(em memória de Ailton Antonio Costa, * 17/04/1942  + 30/06/2013)

segunda-feira, 8 de julho de 2013

 

 

O EGRESSO (conto)

O  EGRESSO (conto)
O sol, no seu costumeiro esplendor, clareava paulatinamente a paisagem, num hálito morno e aconchegante naquele amanhecer de um céu sem nuvens, azul e belo. O olhos insones acompanhavam distraídos os pássaros em sua azáfama matinal, na alacridade de seus trinados, alvoroçados na copa de uma árvore, para além das muralhas vigiadas por sentinelas armados. Da cela, após mais uma noite mal dormida, sonolento, os pensamentos traziam imagens de um tempo transcorrido, marco divisor marcante de sua trajetória. Sua existência encontrava-se delimitada em dois espaços temporais, da infância aos 20 anos, e o malgrado e penoso período de ostracismo involuntário e trancafiado. Sua curta e comum narrativa a voltar-lhe em reminiscências. Embora viesse de origem humilde, gozava do apoio da família de pessoas idôneas, tal como ele o fora, até então. Lembrava-se de seus constantes azedumes e sentimentos de inferioridade expressos no dia a dia, aborrecido com a tarefa de operador de uma máquina registradora em um supermercado. Parecia-lhe ironia ter que codificar tantos itens supérfluos, iguarias jamais experimentadas por ele, enquanto o aguardava uma marmita a ser esquentada com o trivial e pobre cardápio cotidiano. Depois de ter que aguentar filas enormes atendendo pessoas esnobes a ignorá-lo como se fosse parte da registradora, por vezes sem sequer dirigir-lhe qualquer palavra ou atenção, no término do expediente esperava o coletivo cheio rumo à escola pública até as vinte e duas horas da noite, onde o cansaço fazia com que as vozes dos professores naquele curso supletivo ecoassem como sons estranhos e distantes, cochilando vencido pelo sono. Seu alento vinha da namorada, a incentivá-lo cheia de esperanças e de sonhos. Ana, entusiasta e esforçada, estava à frente nos estudos, aplicada, estudava com afinco, pretendia crescer na sua empresa, iniciante como recepcionista.  Vendo-a exultante, mentia aparentando interesse pelos estudos, quando na verdade aquilo era-lhe maçante, um sacrifício, não raro faltava pretextando descanso. No serviço não se conformava com os afazeres, sentia-se escravizado ao trabalho por depender economicamente dele. A possibilidade de concluir o intensivo para alunos adultos e retardatários parecia cada vez mais difícil, desinteressado empurrava com a barriga as lições, perdido em suas cogitações amargas e desconsoladas. Perdera o viço próprio da juventude, exaurido, sem objetivos a animá-lo. Inconformava-se com a situação, a própria e a dos seus. Julgava os país e irmãos ingênuos, crendo sempre que a as coisas fossem melhorar, quando tudo parecia-lhe ilusão, algo a se acreditar para dar sentido aos dias, nada mais.
A roda viva de levantar ao nascer do dia, arrumar-se, disputar espaço em condução lotada, correndo para não chegar atrasado, ansiando com a folga domingueira, não era o que desejava para si, queria mais, sem saber como. Vivendo aqueles conflitos íntimos, arrastava-se desanimado. Buscava nos doces olhos da amada momentos raros de paz e de carinho, ela sempre lembrando-lhe que deveria persistir, ser fiel às metas, superar os desafios, estudar para crescer profissionalmente. No mel do encanto daqueles momentos, o aguilhão da revolta pessoal o martirizando, incomodando. Dia de pagamento, feitas as contas, mal sobrava algum para o cinema em fim de semana. Via o sapato furado na sola, com o improviso de uma palmilha de papelão, molhando a meia em dias de chuva, aguardando o décimo terceiro salário para a compra de um novo.
A porta larga das facilidades o encontrou inebriado, sedento de mudar seu destino para o lado aparentemente mais fácil, buscar o que não tinha, à margem da lei. Via escoar a juventude e energia nos dias corriqueiros e sempre iguais, sem perspectivas. Não foi preciso muito para ser seduzido por um conhecido de infância e de brincadeiras, elemento de atitudes suspeitas e mal afamado pelos vizinhos. Bastou o aceno, estava pronto para o convite, conveniente, aliás. Admirava o outro ostentando boas roupas, grana para as baladas com as garotas, argumentos a convencê-lo a participar de pequenos ilícitos, no anonimato, rendendo mais que o parco salário mensal. Roteiro sem volta, cada vez crescendo na ganância, a ousadia derrogando os escrúpulos, vencendo resistências e o medo. Perdera o emprego, pela desídia, chegando atrasado, destratando colegas e superiores, esbanjando ironias e descaso com as tarefas designadas, sempre tidas como humilhantes. Para a namorada apresentava-se com pequenos presentes, trajes novos, alegando a promoção para encarregado do setor. Em uma das muitas façanhas clandestinas foi preso. Condenado a cumprir a pena de mais de seis anos de reclusão, tal a extensão da ficha policial, vinda à tona após a detenção, onde fora acusado de crimes de furtos, roubos e assaltos, reconhecido em acareações pelas vítimas. Dos seus entes familiares sentiu o peso dos olhares recriminatórios, o exílio a apartá-lo do pai, irmãos e da sociedade, restando o sofrer solitário da mãe, a única a visitá-lo no presídio.
Ana mal acreditava no que aconteceu, não era a pessoa que julgava conhecer e amar e com quem pensava em compartilhar o futuro juntos. Restaram-lhe aquelas últimas impressões a acusá-lo em sua consciência. A desilusão dela diante aos fatos, sua expressão de pânico e de descrédito. A distância e o mutismo sepultaram qualquer esperança em se reconciliarem. Em momentos aflitivos, solilóquios torturantes, cobrava dela compreensão, queria ter tido a oportunidade de atenuar suas faltas, justificar-se como a necessidade de melhorar a sua condição para serem felizes. Chegou a enviar cartas, sem respostas. Pensou em matá-la tão logo fosse posto em liberdade, isso na insanidade do paroxismo da revolta consigo mesmo, afinal não era assassino, e a perdoava. Sabia-se errado, fraco, covarde, arrependia-se, parecendo um pássaro estranho naquela gaiola humana, onde tinha que ostentar frieza e valentia para ser respeitado no antro dos companheiros de infortúnios. Se não tivesse sido impetuoso e orgulhoso, não teria fraquejado no caminho justo, se os estudos não o agradavam poderia ter conquistado uma profissão, mesmo modesta, como a maioria das pessoas. Naquele ambiente hostil, nos olhares daqueles enredos a serem desvendados, meninos crescidos e acuados, revoltados, feras demonstrando força como escudo para seus temores, ostentava a máscara de forte e corajoso. A lei reinante, implacável, a nenhum deles permitia lágrimas de fragilidades, choravam para dentro, ocultando suas dores e mágoas. No silêncio se subentendia a inexistência de manifestações da humanidade dos sentimentos, confundidos como fraquezas imperdoáveis. É a divisão da sociedade entre duas realidades, ali se encontravam os reclusos pela miséria moral, abrigados nos paredões dos imensos muros e gélidas celas, onde a sobrevivência dá-se mais por instinto que por opção de viver.
O seu histórico pessoal, como uma fita reprisada inúmeras vezes, justamente olhando a beleza daquela manhã, com a cantoria da passarada, o esperado dia da libertação chegara.
Logo mais estaria além das paredes restritivas do ir e vir, grades descerradas, portas abertas, ferrolhos liberados, uma ave a reaprender a voar, a traçar uma nova trajetória . Provavelmente o esperaria a resignada genitora no portão da saída a recepcioná-lo, a única e incansável a estender-lhe solidariedade incondicional. 
Abria-se a nova possibilidade do retorno aos próprios passos, sem vigias e tutelas, vivendo do outro lado da prisão, sentindo um frio a percorrer-lhe a espinha, a depender somente dele  reescrever a própria história... 
**Publicado em livro na Antologia  LIVRO DE OURO DO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ, lançamento agosto de 2013.   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora

sexta-feira, 19 de abril de 2013




 
 Ediloy Ferraro
São Paulo / SP

Empatias

Reter  com os olhos
Vendo além destes
Surpreende-me

Captando nas entrelinhas
Construindo uma imagem
Colecionando conclusões

Ocorre-me nestes momentos
Montando um difuso mosaico
Acima do visto, o imaginado

Assim a alma desnuda
Do interlocutor desavisado
Apresenta-se-me no ideário

Baú hermético, inescrutável
Impressões recolho
No silêncio censuro, ou aplaudo

Não sei ao certo
Se o percebido a mais
É real ou imaginário

Vasculhando absorto
Em alheios interiores
Refletindo-me neles

Não sei o que busco
Talvez a mim mesmo
No outro, me entendendo...


publicado na Antologia de Poesias 
VERSOS REPLETOS NA NOITE VAZIA, editora CBJE- 
Rio de Janeiro/RJ, abril de 2013.

quarta-feira, 13 de março de 2013




Selecionado para figurar em livro na antologia de contos Histórias, Causos e Lorotas que só o brasileiro sabe contar - editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, março de 2013.
 Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora




Ausências & Temores





Ao levantar-se refugou o afago da gata em seus pés, mostrando intolerância, a bichana saiu contrafeita num miado arisco. Ergueu os braços para se espreguiçar, estava moída, tivera uma noite aborrecida, pelo calor intenso e o tédio. Levantara várias vezes, buscando água gelada. Olhava para a folhinha na parede, era quarta-feira, havia 10 dias que o marido se ausentara, nunca ficara tanto tempo fora. Não estava se controlando, afinal, sem notícias, pois naquele ermo esquecido por Deus, nem o celular tinha sinal, virou apetrecho sem utilidade.

Casaram-se e resolveram morar ali. Apesar dos incômodos, seria, na pretensão deles, algo provisório, não precisariam pagar aluguel, visto que a humilde propriedade fora deixada pelos pais do marido.

Para tal, ela ficaria sem atividade profissional, visto que o local não oferecia empregos, além de serviços domésticos. Ele era representante comercial da empresa, vivia em viagens, geralmente se estendendo além  do prometido.

Aquilo a estava deixando intranqüila, sempre trabalhara fora, agora via-se obrigada a pequenas tarefas domésticas, entediando-se. A ausência do companheiro a fazia injuriada, chegando a pensar besteiras: Tenho sinceras dúvidas sobre as atividades dele nas cidades visitadas, homem é tudo igual, não podem ver rabo de saias...Não acredito que se abstenha de sexo por tantos dias.

gato_colombia (Fotógrafo Carlos Julio Martinez em Cali, na Colômbia)


Justamente por aquelas cismas que tantas vezes a visitava, que resolvera assistir uma sessão no terreiro, queria saber das andanças do marido em tão prolongadas ausências. Nunca tinha freqüentado tal ambiente. Motivada por uma prosa à toa com uma vizinha, freqüentadora habitual. Não confessara suas dúvidas com a moradora ao lado, era reservada, pois  roupa suja se lavava em casa. Iria como companhia, por pura curiosidade, sem entrar em detalhes.

- Pois tenho certeza que vai gostar, tem  “ entidades” fortes, ajudam a arrumar emprego, dão conselhos para os negócios e para a saúde, falava convicta a acompanhante.

Lá estava ela, sentada em um banco de madeira, surpresa com o ambiente, cheio de imagens. Naquela noite a “gira” seria da esquerda, os homens trajavam roupas escuras e vermelhas. As mulheres participantes também com indumentárias rubras e escuras, saias longas e enfeitadas, com colares, pulseiras e adereços nos cabelos, além da pintura acentuada nas faces.

Aberta a sessão, com os convidados em pé, passava o defumador esfumaçando o ar, envolviam-se naquela queima odorífica de ervas,    acompanhava silenciosa os movimentos dos presentes, a cantoria era geral. Os atabaques enchiam os ouvidos com a percussão ritmada.

Aos poucos, o grupo de médiuns que se encontrava no centro do terreiro, parecia entrar em transe, movendo-se ora para trás e para a frente, falando em voz estranha, dando risadas e cumprimentando-se entre si. As mulheres rodavam com suas saias armadas, piteiras nos lábios, olhando charmosas para o público masculino da assistência.

O atendimento era por fichas e hora de chegada, tinham que entrar descalças na área determinada, onde seria feita a consulta.  Nervosa, ela pensou em desistir, aquilo tudo era muito estranho. Depois tinha dúvidas do que fora buscar ali, nem como iniciar sua conversa com a “entidade”. Só não desistiu por que não queria voltar sozinha, sua casa distava várias quadras e a iluminação nas ruas era precária, a vizinha, já acostumada, não iria perder a entrevista por ela. Aquietou-se, constrangida, decidida a tomar apenas um passe para não passar despercebida.

Quando finalmente fora chamada pelo número da senha, viu-se cumprimentada por uma mulher, figura exótica, com risadas soltas, ostentando uma taça de champanhe, oferecendo a ela, que não sabia como agir.

- Então menina, em que minha força pode te ajudar ? 

Ante o mutismo da consultada, num riso escancarado, falou-lhe aos ouvidos: O pernas de calça anda aprontando, minha menina ?

Diante ao assombro dela, sem querer abrir-se com receio de ser ouvida por estranhos, fez sinal de que não tinha certeza...

Pois bem, coloque um marafo pro meu homem, ai deu o nome dele para a cambono ( pessoa que anota as orientações), uma rosa vermelha para mim ( deu o seu nome), e deixa com a gente... Se ele tiver mentindo, você fica sabendo logo. (Gargalhadas.) Senão, terá uma notícia que mudará para melhor a vida de vocês, tirando-lhe suas inquietações, aliviando seu coração.

Saiu dali mais grilada do que quando havia entrado. Não disseram nem que sim e nem que não, mas a pulga estava colocada atrás da orelha. Somando a angústia da solidão e a carência de carinho do companheiro ausente, parecia que tinham falado tudo o que ela já desconfiava. O que a abismava era como aquela mulher sabia de sua dúvida, se ela sequer abriu a boca? Ou será que tinha falado e nem se lembrava diante de tanto nervosismo?

Caminho de volta, a vizinha interessada em saber as impressões dela, perguntando, fazendo com que ela se esquivasse com evasivas.  Confidenciar-se com estranhos, nunca. Lugar pequeno, falta do que fazer, a língua corre solta. Não queria ser tida como a traída na boca de ninguém. Assuntos pessoais seriam resolvidos com reservas e dentro das paredes de sua casa, nenhum sinal para a platéia sequiosa por boatos difamatórios.

 
Apenas dois dias depois ele chegou. Falando muito, animado com suas notícias de vendas, sequer percebendo o desânimo da companheira, desconfiada e infeliz.

A pretexto de buscar suas roupas para lavar, procurou pelas  cuecas, tentando aspirar perfumes femininos nas camisas, cheirando-as, e alguma pista de eventual relacionamentos clandestinos do parceiro. Revirava as peças afoita, torcendo para não encontrar nada que depusesse contra ele. Precisava recuperar a sua paz íntima, abalada por tantas suspeitas.

Depois de banhar-se e comer alguma coisa, buscou por ela, enamorado e saudoso. A princípio pensou em negar-se a ele, e expor toda a sua angústia por esperá-lo por tantos dias,  porém, carente, achou que não estaria jogando com a melhor tática, dizem que quem não tem em casa busca em outros braços.

Nos momentos íntimos não conseguia perceber traição, pois demonstrava um “apetite” de esfomeado, a deixando feliz e saciada,  não sendo possível tanto ânimo caso ele estivesse com uma vida dupla.  Assim ele passava alguns dias com ela, até que retornava a pegar a estrada, deixando-a solitária.

Os dias corriam, períodos de esperas e de chegadas, noites inteiras imaginando como ele estaria, e, no inferno das incertezas, com quem  pudesse estar, virava-se incomodada no leito de casal Por tantas hesitações, via-se frente a frente com uma cartomante, precisava ter certeza, a dúvida a estava deixando maluca. No reservado da casa daquela mulher, moradora distante, sentia-se mais à vontade para se abrir. No terreiro, as consultas aconteciam sem privacidade, apesar do barulho existente e das conversas serem feitas “ao pé do ouvido”, além da presença de vários conhecidos, razão pela qual nunca mais retornou àquele local.

Diferentemente da consulta anterior, com a entidade, a consulente era simpática, extrovertida e a deixava confiante. Juntos tomaram  café com bolachas, antes de iniciar a leitura do baralho normal e  do tarô.

As cartas não denunciavam nenhuma traição do companheiro, pelo contrário afigurava-se homem trabalhador e entusiasmado com seu serviço e devotado esposo, porém algo surgia naquela leitura que intrigava aquela senhora. Parecia um bloqueio, um impedimento de enxergar mais claro. Acabou por confidenciar à consultada, que não sabia o que ocorria, mas pela primeira vez tinha a visão obscurecida. Algo não estava claro. Desculpava-se, não pretendendo sequer cobrá-la pelo atendimento que não achava a contento.

- Algo está impedindo que eu veja mais longe, por acaso você ficou pendente de fazer alguma coisa? Vejo com insistência uma figura feminina, desejando algo de você...

Parecia que acordava, ouvindo intimamente uma gargalhada, estremeceu-se, lembrando do que fora pedido pela Pomba Gira, uma garrafa de cachaça para o parceiro dela e uma rosa vermelha para ela.

- Então cumpra, falou a cartomante decidida. Depois retorne, as coisas ficarão mais claras.

As exigências foram cumpridas discretamente, e, aliviada, deixou de procurar dentes em cabeça de cavalo, esquecendo-se de tantas asneiras e desconfianças.

Após alguns dias, uma indisposição, um leve enjôo, uma tontura intermitente. A notícia não poderia ser melhor, estava feliz, percebendo-se grávida, a menstruação atrasada reforçava a sua intuição materna.

Alvoroçada com o imprevisto tão desejado, percebeu-se liberta de sua idéia fixa, tomada por outros afazeres  tinha algo mais sério com que se ocupar...

  

 
 



PUBLICADO NO BLOG DO LIMA COELHO(12/03/2013, - contos, crônicas, poesias e artigos literários e outros + de 7 milhões de acessos na internet) Ilustrações: Mel Alecrim, poetisa e contista. Publicado no Recanto das Letras e no Site de Poesias.