sábado, 31 de março de 2012

A janela aberta




Janela Aberta e com Flores
(Um dia incomum na vida de um homem comum)

O que o afligia era ter deixado aberta a janela do barraco, por mais que a realidade o trouxesse ao momento presente, às angústias reais, o pensamento o levava de volta à preocupação com o esquecimento, na pressa, de ter deixado escancarada a janela...
Deixara ao raiar do dia o vilarejo, suportando a lotação superlotada do coletivo, trazendo amarrotada a carteira de trabalho vazia de registro, pois perdera a original no último tempo ruim que inundara a região e danificara os documentos, apertada no bolsinho da calça de brim índico nada além de moedas, suficientes para ir e vir...
Tempos difíceis na construção civil, vivendo de pequenos expedientes, levando trocos para casa, dividida com a amásia e a pequena filha. Não se incomodava com o fato de não ter nada para comer naquele dia, não era o único em que padecia os tormentos do compulsório jejum, precisava com urgência de uma vaga, algo certo, dinheiro pouco que fosse mais todo mês, não de bicos e biscates eventuais que traziam inseguranças e fome..
- Ô chapa, qual foi a bronca?
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg5XcTceK2pnogEAIUntyjawLTyDWeCKKEjryRSNFvUYy1mc_ObVC7hdSVqZDsXXIe4hIwlVyEprlpm9aG-ouTEZdh9-CR5QNWu5xPt9J0RUfIg3xDXqHoVlcsJuU5KQlzgg5yejvxm3Ug4/s1600/cadeias_materia.jpg (Parecia ouvir ao longe aquela voz estranha, mas era com ele e foi obrigado a voltar a si...)
- Curió, panaca, qual a tua bronca?
- Sei não... (queria urgentemente voltar ao seu mundinho onde a preocupação era a janela que deixara aberta, não que tivesse muita coisa a ser levada, mas, se chovesse, molharia a pouca mobília e a tv pequena comprada a prestações... a companheira saíra com a filha de colo para trabalhar em casa de família, era quarta-feira, ela passava roupas para uma senhora que deixava ela levar o bebê, pelo menos nas quartas elas teriam uma refeição completa...)
- Se fazendo de bobo, ou tirando uma como a minha pessoa, desgraçado fudido? ( A voz crescia ameaçadora...)
- Não senhor, não sei o que está dizendo...
- Quer dizer que está aqui de anjo, caiu do céu? (gargalhadas compartilhadas pelos outros três na cela fria.)...
(Sem saber o que responder, encolheu-se, afinal o que dizer, se, ao certo, nem mesmo ele tinha claro o que acontecera ?)
- Deixa o traste, mano, o bicho tá mijando de medo, um bosta!
(Risos) - Cuzão !!!... ( breve pausa)
(Parece que esqueceram de mim, melhor assim, não sei o que falar com esses caras, não costumo conversar com desconhecidos, estou esperando me chamarem, têm que me ouvir, eles vão me soltar, será que choveu e eu deixei aquela janela aberta...)
- Toma ! (Um deles estendeu um cigarro) fuma que é bom, relaxa, tu tá tremendo como vara verde, daqui a pouco tem um treco aqui e vai dar trabalho...
- Obrigado, não fumo...
- Não fuma, não bebe, será que mete? (Gargalhadas)...
(Quando será que vão me esquecer? Como demora para me chamarem, vão me ouvir e entenderem que houve um engano, não sou bandido, nunca fui...)
- Vamos te chamar de cuzão se não falar o teu nome, certo?
- Antonio Francisco da Silva, sim senhor.
(Gargalhadas) - Tu tá fudido, entrega rápido as coisas, quero ver a língua solta com os meganhas..
- Esses cuzões se borram e dão com a língua nos dentes, alcaguetes de merda! (Aproximando-se ameaçador) - figurinhas de merda como você não merecem viver, ouviu ? Quem não tem cu que viva na linha, desafios é para caras machos!
- O que tu fêz, cagão?
- Não sei ao certo...
- Jura? Não diga !!! Tá ficando engraçado, ajuda a passar o tempo, e olha que temos todo o tempo do mundo para ouvir a sua versão dos fatos... des-em-bu-cha !!!
- Moços, eu juro que não sei!
- Será que vai ter que tomar porradas para soltar a merda da língua?
-... Eu estava no ônibus, não tinha o dinheiro todo para a passagem... (Havia perdido uma moeda de R$  0,25 centavos e não se dera conta; tinha por hábito separar as moedas em dois montes, para ida e a volta, perdera uma das moedas. Como estava já distante de sua origem tinha que continuar a viagem) e pedi ao cobrador para passar embaixo da catraca... Ele concordou que eu fizesse isso... Mas houve uma confusão, tiros, todos correram de dentro do ônibus e eu fiquei preso na catraca, no chão...  Ouvia gritos dos passageiros e janelas sendo quebradas, todos queriam sair, eu fiquei entalado, não entendi o que estava acontecendo.... depois  chegou a polícia, me tiraram de lá, me algemaram, pois haviam atirado no cobrador e no motorista, era um assalto...  Os dois estavam debruçados, um na direção e o outro sobre a caixa, ambos estavam perdendo sangue... Acho que me confundiram com um dos assaltantes e estou aqui...
Eles vão ver que houve um engano, sou um trabalhador, desempregado mas trabalhador, entendem?... Preciso voltar para casa antes que chova, a última chuva inundou tudo e perdemos todas as nossas coisas, estamos dormindo no chão... Eu deixei a janela aberta...
(Silêncio)... Cara, tô acreditando na sua narrativa, tu se fudeu de verde e amarelo, os dois, motorista e cobrador abotoaram os paletós, o povo se escafedeu do local, quem vai testemunhar a seu favor?...  Pobre é assim, cagado de arara!...
(Alheio, como se falasse para si próprio se consolando) Alguém que estava lá me viu e sabe que não atirei em ninguém, nem sei como se faz...  A janela ficou aberta...
- A casa tá caindo em sua cabeça, curió de merda, e você pensando nesta porra de janela aberta?!
... Se chover inunda, o barranco fica nos fundos e a água desce, por que eu esqueci aquela janela aberta, meu Deus?...
- Caralho, o cara tá delirando ? 
(Preso 4) ...Deixa ele em paz, o cara ta pirando, é o principal suspeito de um latrocínio e ainda se preocupa com uma janela que ficou aberta, deve ser fome... escuta, quando tempo faz que tu não come ?
- (Antônio) ...Tô acostumado a ficar sem comer, nem sempre dá para a comida não, principalmente quando não tem nem bico para fazer...vim atrás de uma vaga em uma construtora, faço qualquer coisa como ajudante de pedreiro...
(Preso 1) – Toma um naco de pão, fudido, quase te arrebento de porradas, mas não é da nossa turma não, teu terreno é outro, cara...
(Antônio aceita) – Obrigado, moço, fiquei tão apavorado que deixei a minha marmita lá no ônibus... Um arrozinho com ovo e um pouco de farinha, mas que dá pra quebrar o galho...  A minha companheira hoje trabalha em casa de uma senhora, que deixa ela levar a menina, então comem bem, almoço e janta. 
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKVoOiGXOsSfubRjjvyzLvX2V4-J_qPcbt_U3OZ-3o7JqxBxQIyWw7QDSbwmZyGJnsiQxuTpOU8NPXEzzj0DAi5bafKrB-HcwIaUoSCIQnzhsPYfc4sUX50O_astSaBtomuk9yn57tY7M/s1600/cadeia+%25281%2529.jpg (MUITAS HORA DEPOIS, com o escrivão)
- Seus pertences, algumas moedas, a identidade e uma carteira profissional em branco como documentos ?
- Sim, senhor...
- Trabalha em quê?
- Serviços gerais, na construção civil, ajudante de pedreiro...
- Nome da empresa?
- Faz tempo, não lembro não, fui contratado por empreiteira
- Nenhum registro?
- Tinha, mas a água estragou tudo com a inundação... Tirei uma profissional nova....Olha, senhor, deixei a janela do meu barraco aberta...
- O que é que tem?
- Vai chover e vai inundar de novo e acabar com o pouco que a gente tem, na pressa de sair de madrugada deixei a janela escancarada, a noite foi muito quente, barraco de madeira, deixei a janela aberta para ventilar e esqueci...
- Ninguém em casa 
- Só a noitinha, minha companheira e minha flha voltam do trabalho, até lá a janela...
(Mostrando impaciência) - Já sei, está aberta !
- Sim senhor e pode inundar o barraco...
- O que o senhor acha que eu posso fazer? 
- Deixar eu ir até lá fechar a janela e depois eu volto...
- Não me venha com essa conversa, por acaso acha que estou brincando em serviço?
- Não senhor, mas se ver meu nome vai ver que não tenho nada com o ocorrido...
- Sabe quantos Antonios Franciscos das Silvas existem, meu chapa?
- Não, senhor !
- Deixa para lá...
- Os meus documentos, os números não são iguais aos outros...
- Não quer dizer muito, há muita falsificação, temos que conferir tudo, isso leva tempo.
- Será que chove antes ?
- .... ?
- A janela está aberta...
- (Exasperado) - Por agora é só, você volta depois.
- Guardas !
- Que bom, posso ir embora, a janela...
- Embora da minha sala e de volta para a cela. Até prova em contrário o senhor é suspeito de ter participado da morte de dois homens, é bom refrescar sua memória e colaborar com a investigação... o senhor foi o único detido em flagrante no local dos homicídios. Está claro que não fêz isso sozinho, é melhor dizer os nomes dos outros e agilizar os trabalhos.
Após o último motim de presos no ano passado, carceragem de Jequié conta apenas com um espaço para a manutenção dos detentosDE VOLTA À CELA...
- Olha quem voltou, o paraíba encrencado! 
- Parece que os "hômis" não acreditaram na tua inocência...
- (Vão ver que não sou culpado, espero que dê tempo de fechar a janela antes da chuva...)
- Filhos da puta, vão lhe dar um cansaço, isso se não lhe incriminarem para encerrar o caso...
- Me incriminar, como ?! Eu só estava no chão, embaixo da catraca, aquele lascado do cobrador, pobre como eu, escorrendo sangue...
- São escolhas, meu caro. Quis guardar a grana do patrão e levou balas, o outro, o motorista, quis se fazer de herói e hoje são os mais novos moradores do cemitério...
-(Benzendo-se) - São pais de famílias...  que será delas 
- (Silêncio)...- Prefiro que a minha desista de mim (Preso 1), não quero ver minhas filhas pequenas sendo apalpadas em revistas íntimas e minha companheira descuidada e maltratada para sustentar sozinha a ela e às filhas... Não gostaria que se envergonhassem de mim quando souberem, na escola, que o pai é um bandido... Na vida a gente faz escolhas, paga caro por elas, mas são escolhas, ninguém nos induz ao erro, caminhamos por ele. Tinha cansado da vida operária, salário merreca, uniforme, horários, carnês de prestações, vidinha medíocre...Certo dia resolvi que poderia ter sucesso mais fácil e me armei de um revólver e fiz um assalto, não parou ai, me acostumei a tomar do que a ganhar salário. Uma vez as coisas não foram como sempre, houve resistência, era eu ou ele.... Depois ficou comum acabar com a vida alheia, esqueci escrúpulos, adotei a marginalidade... Até executei por encomenda, ficava com a bronca para mim e silenciava, pois recebia para isso...
-( Preso 2) - Não aguentava a vida de caixa de supermercado, o dia todo suportando a clientela, consumo de um monte de futilidades, enquanto me sobrava uma cesta básica, muito dinheiro na mão entregando ao superior e eu colecionando moedas para comprar uma camisa nova e o sapato com buraco tapado por dentro por um papelão...  Dei adeus àquela vida e tomei outros rumos, mais intensos e vibrantes... Ninguém fica só nos entretantos, quem sai na chuva acaba se molhando todo...  Esqueci, ou me esqueceram, irmãos, desgostosos de minha virada, ainda bem que a mãe já é falecida e o meu pai velho demais para ter noção do que está acontecendo comigo... Cochilava nos bancos da escola noturna aprendendo como ser alguém na vida, não resisti e descambei de vez. Furtos, assaltos, estelionatos e homicídios...
- Porra, paraíba, você tinha que trazer esse papo de família... Todos temos e é nossa cruz na consciência... (Preso 3) Cedo percebi que o caminho era estreito penoso demais, olhava para os meus familiares, pessoas dignas honradas, envelhecendo dia a dia e vivendo com uns trocados, sonhando acordados, com um futuro incerto... Eera uma rotina de bater cartão e receber merrecas para mal sobreviver... Gostava de uma gata, menina honesta, parecia gostar de mim, planos para se ter um teto e criar nossos filhos, coisa bacana que todos os jovens que amam têm... Acontece que nunca fui muito de estudar, nem terminei o primeiro grau, promoção na empresa nem pensar... Ela gostava de estudar e seguiu em frente, foi saindo do meu mundo e vivendo em outro, até me trocar por um futuro mais promissor... Era muita merda junta, cara, muita humilhação para suportar, não pude vê-la com outro, fiz loucuras e acabei com os dois... Fugi e continuei na trilha dos desesperados, fugindo de minha vida estreita e me sujeitando a fazer cada vez mais asneiras para sobreviver, até cair de vez...
- Comigo foi diferente (Preso 4), meu meio não era pobre, tive possibilidades e estudos, me prostitui por vaidade, dai para o tráfico não foi difícil... Garoto bem apanhado, corpo malhado, percebi que era atrativo para mulheres ricas e de posses, adorava o bom viver, a boa comida e o regalo da boa vida, preguiçoso sem ter que saber o que é ganhar o pão de cada dia trabalhando, depois entrei em outro meio, a prostituição masculina, há coroas que pagam em ouro por sua companhia e seu sigilo...  Passar pó em altas rodas era o de menos, afinal, a alta sociedade adora exibir aos seus convidados a melhor farinha do mercado, toma lá-dá-cá... Para tudo há um tempo, para quem vende o próprio corpo, ele passa mais rápido... Não me acostumei com a ideia de ser trocado por rapazes mais jovens e mais viris, em desentendimento com um cliente cativo, o assassinei...  Aguardo nesta cela a minha sentença...
(O CARCEREIRO BATE NA BARRA DA CELA)
- Antônio Francisco da Silva ?
- Sou eu...
- O delegado quer  vê-lo....
- Vá, paraíba, fechar a sua janela, Cuidado para não fechar tuas portas na vida!!! (disse um deles)
- Até nunca, cabra inocente ! ( Falou outro)
- Até !...  (Sussurrou baixinho)
(Diante à mesa do delegado)
- Antônio Francisco da Silva?
-  Sim, doutor, sou eu...
 (Delegado) Você estava naquele coletivo da madrugada onde dois homens, o motorista e o cobrador, foram assassinados, não é? 
- Estava sim, senhor...
 (Delegado) – Encontrava-se preso na catraca, não é?
- Sim senhor...
- Por que não fugiu com o povo?
- Pedi ao cobrador para me deixar passar, vi que havia esquecido uma moeda e o dinheiro não dava para a passagem... Depois começou uma confusão, os tiros, a correria, fiquei entalado sem ter condições de me levantar...
(Delegado, abrindo uma gaveta) – Isso lhe pertence?
- Sim senhor, é a minha marmita, escrevi o nome no fundo dela porque na obra às vezes não tem armário para guardar e evita que um peão coma a comida do outro...
 (Delegado) – Pois você deve muito a esta marmita, seu atestado de idoneidade...  Provou que estava a trabalho. 
... Com a prisão de 2 assassinos e a morte de 1 deles, ficou comprovado que não há nada que o comprometa nesse caso... O senhor está livre, pode pegar as suas coisas...
(Antônio) – Doutor delegado, poderia me fazer um empréstimo?
(Delegado) – Empréstimo ?
(Antônio) – Sim senhor, para completar a condução de volta, faltam R$ 0,25 centavos...
(Tirando uma moeda) – Pode ficar com esta... Vá em paz !
(Antônio) -  Doutor ?
(Delegado) – Mais algum pedido ?
(Antônio) – Seu troco, o senhor me deu R$ 0,50 e eu preciso só de R$ 0,25
(Chegando no barraco)
(Antônio, extasiado) – Deus meu, ainda bem que a chuva não chegou antes de mim e posso fechar a janela que deixei aberta, obrigado Meu Pai Amado...
(Lliga a pequena TV de 14 polegadas, abre a marmita e começa a comer assistindo o noticiário).
Presos 2 assaltantes e morto um deles que resistiu à prisão pelo assalto ao ônibus da linha 333 onde morreram o motorista e o cobrador na madrugada de hoje...

 

* Ilustrações: Mel Oliveira Alecrim, poetisa/Contista/ Blog do Lima Coelho- contos, poesias, crônicas e artigos- São Luiz/Ma. 
* CONTO ESCOLHIDO PARA PUBLICAÇÃO NA SELETIVA: 1ª.  ANTOLOGIA DE CONTOS PREMIADOS, EDIÇÃO 2009, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES -CBJE- SELEÇÃO PARA OBRAS DE AUTORES EM LÍNGUA PORTUGUESA.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

terça-feira, 27 de março de 2012

A N T Í D O T O S



Retenho as lágrimas
Não acrescentando com elas
O caudal das extensas mágoas
A transbordar o fel das mazelas


No açude represado
Tinjo em vivas cores 
Dissabor amargurado
No belo douro as dores


Da vida bastam as tristezas
Angústias das incertezas
Alento na natureza,verdores


Lábaro das ladainhas
Queixumes e choramingas
Na fé luzes e esplendores

quinta-feira, 22 de março de 2012

ELEGIA AO DEFUNTO ANÔNIMO ( CONTO )



Lá estava estendido, parecendo bicho acuado, um riso profundo, um vago no olhar, uma história vulgar, como tantas.



Ferida feia, monte inerte, um contratempo ao trânsito caótico, esparramado na via pública como em um abraço no chão de betume, redenção de um ébrio em fim de uma noitada intensa.... O piche preto, face a face, um beijo no asfalto. Peito desfraldado, imberbes cabelos, alourados sujos, filetes rubros empastados... Um sonho estranho, uma fita de cinema ou crônica policial. 


Das atenções alvo comentado, enfim por uma vez notado, percebido, no incômodo que seu corpo dilacerado, exposto, visível, deplorável, apresentava aos olhos de todos... para alguns condolências, noutros repugnâncias, mas, para o certo ou errado, tinham que vê-lo , não havia como escapar, estava denunciado como um morto anônimo, mais um, a ser retirado do caminho. Mas estava na passagem, reclamando providências, existindo por fim na inexistência, era alguém que pedia, em reclamos mudos, socorro.


Incomodava, era um semelhante, quisessem ou não, também um mortal.


Curiosos na anatomia do corpo decrépito, a veia saltada no pescoço – será que gritara ao morrer ?


Turba mansa aturdida, seguindo passiva, imersa em si, evasiva, nada mais era que um contratempo, incidente de percurso, já acostumados.
No curso da massa caminham, seguem unidos, desconhecidos, em suas rotas , distraídos. Onde a morte de um mendigo, não era fato anormal, mas algo corriqueiro, banal.


Metidos, enfiados em si mesmos, sufocados na pressa de chegar a algum lugar de nome lar, onde frente à televisão vão cochilar e acreditar, esquecer se esquecendo. Postergando anseios para depois, adiando a vida para um amanhã talvez. Fazendo contas, projetando planos, dilatando sonhos. Arquitetando no hoje um futuro além, em diálogos sussurrados, comendo fatos, boatos em arrotos. Falas mal digeridas, desatentas, confundidos em alienados apetites.


Como toda rotina, despertam amanhã, reiniciam a marcha – morto, qual morto ? O de ontem, ah, já sei !


Reiniciam a caminhada, ilhados em si, solitários na multidão,apressados, compassados, compenetrados, atolados nos coletivos, aturdidos em seus caminhos e destinos


Na sua solidão de cadáver, reconheceu o cuidado de um transeunte, por compaixão ou para encobrir aquele escândalo, abriu um jornal e o cobriu, sentia-se reverenciado naquele dúbio gesto, para tirá-lo das retinas enjoadas ou preservá-lo na sua intimidade...


Tantos olhares atraiam a sua andrajosa figura semi nua, ofuscada até então, tantos comentários, inquirições sobre os fatos que culminaram com aquela tragédia, nunca fora o centro de atenção alguma, nem mesmo de si tomava ciência, a vida era como se apresentava, uma busca insana para abrigar-se em algum vão de marquise,fugindo da chuva ou do frio, um pão seco que fosse para acalmar o estômago, nada além...


Ah, se soubesse, sonhasse viver, que tantas pessoas, transeuntes e motoristas, parariam para vê-lo, desejaria ter vivido mais, talvez como alguém menos insignificante...da vida não um trânsfugas à deriva de si mesmo, imerso na insanidade de seus dias, na falta de objetivos e de esperanças... Sem um teto e entes queridos, na fartura de suas carências.


Talvez viver como vivem tantos, os tidos como normais, sendo alguém na multidão, ter sido mais que uma sombra, a estender as mãos imundas para colher esmolas, dadas não pela caridade espelhada na solidariedade humana, mas para se desvencilhar de sua figura repulsiva. Tantas vezes o poupavam de pedir, atiravam as moedas temendo que se aproximasse, não precisava pedir, dispensavam ouvi-lo...as moedas caiam pelas calçadas, e as recolhia, até que somadas representasse algum valor para se comer algo. Que alguém, por caridade, pudesse comprar para ele, pois não o deixavam entrar em lugar algum, pelas rotas vestes e odores que exalava. Então, mesmo com o dinheiro para pagar era expulso, como um animal empesteado, um ser desprezível e abandonado.


Ah, talvez o mundo não lhe fosse assim tão indiferente, tampouco causasse repulsas como imaginava...se tivesse imaginado que olhariam para ele, teria tentado viver mais, não sendo apenas um mero número, um a mais, que era...


*publicado em livro na Antologia Seleta de Contos, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, julho de 2012.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

* Publicado no Blog do Lima Coelho - Contos, Crônicas, Poesias e Artigos Literários, SÃO LUIZ-MA, (6milhões de acessos na internet).

quarta-feira, 21 de março de 2012



LUZ & ESPERANÇA

Tímida madrugada incipiente
Na vastidão da noite escura
Lenitivos ao apelo clemente
Do padecente aflito na agrura

Reverberos de esperanças surgindo
Vencendo a angústia, libertando,
Réstias salvadoras, luzindo,
Socorro de bênçãos acalentando

Marejado corpo, suores noturnos,
Desassossegos martírios soturnos,
Na claridade a paz sorrindo

Extenuado e vencido
No torpor esquecido
Das horas insones, dormindo...

*Selecionada para figurar na 88° Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição março de 2012.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

quinta-feira, 15 de março de 2012

SAUDADES ALÉM...





Inúteis buscas, esperanças,
Gélida pedra da sepultura
Cinzas apenas, lembranças,
Minguados restos da criatura

Um punhado saudoso
Vestígios de uma existência
Existiu, não dilui-se, vaporoso
Não sumiu de todo na essência

Naquele marco, frio, resumido
Guarda no carinho, sofrido,
Aquecido na ilusão da querência

Antes fosse uma imagem
Visível, palpável, na roupagem,
Amenizando a dor da ausência...


*Selecionada para publicação no livro Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos n° 89, edit. CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição Abril de 2012
 Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

domingo, 11 de março de 2012

VÃS INSPIRAÇÕES

Devaneios rascunhados
Vacilantes traços complexos
Esboços de planos rabiscados
Um barco à deriva, sem nexos


Imagens aleatórias
Frenesis  oníricos
Simulacros de estórias
Momentos líricos


Instantes entediantes
Opacas vidas dissonantes
De vazios panegíricos


Trivial das rotinas
Lentidões vespertinas
Mudos gritos cíclicos...

sexta-feira, 9 de março de 2012

A BUSCA.








fruto verde propenso
farfalhar das folhas
ventanias efêmeras

barco à deriva
deixando-me levar
inconstantes marés

dias há de sol e luz
noutros tempo escuro
e eu ainda me procuro

aonde estarei eu
aonde me oculto
talvez encontre

alhures becos ruas
companhia qualquer
apenas um menino

com a vida aturdido
roda-viva descoberto
diante de mim desnudo

não há fuga permanente
o procurado é somente
alguém em busca de si...





(09/04/2008)


* Selecionada para figurar na Antologia Brasilidades, em homenagem à poetisa Cecília Meirelles, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição Março de 2012.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

sábado, 3 de março de 2012

NO ESPELHO

Olho te com receios
À imagem que apareça
Iludindo-me  em anseios
Negando que me reconheça

Figuras-te nestes momentos

Com o aguilhão da realidade
Dedo em riste, sem argumentos,
Mostra os fatos, pessoalidade

Neste oval registro rente

Que desancas impiedoso
Traz-me frente a frente


A mim  refletes, escandaloso,
Sem véus de alegorias, silente,
No que vejo, me reconheço, choroso...

quinta-feira, 1 de março de 2012

VISÕES DE MIM MESMO


O corpo se alimenta
Algumas vezes por dia,
O asseio e penteio,
O apresento ao meu meio...



Mas o meu espírito,
Irriquieto, atrevido,
Inquisidor e destemido,
Não se contenta com pouco...



Põe-me louco, desvairado,
Quem me vê
Na matéria,
(o outro é invisível)


Acha-me doido
Inconveniente
Misantropo
Negativo, deprimido



E, ao mirar-me no espelho,
Imagem desgastada se me apresenta
Me arrasta em suas marcas
Dolorosas cicatrizes, signos dos tempos



Nada lembra o ente invisível
Este, menino,  sonhador,
Faz pilhérias, me instiga, me remoça,
Jovialmente eterno a rir-se de minhas desgraças...
A minha matéria se alimenta algumas vezes por dia, mas meu espírito, sedento, não se contenta com tão pouco, tem sede de saber, se questionar, angustiar, a divagar, a buscar insanamente a busca de porquês...