domingo, 17 de maio de 2015



 Meu 70º conto publicado em livro em antologia, editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE - Rio de Janeiro - RJ

Bucólicas desditas


4 

Casa grande rodeada de uma varanda imensa, alvas e amplas sacadas, modorrentas rotinas para o menino citadino aquilo era a asfixia. O sol batia forte no solo, o silêncio daquele sítio afastado, apenas, ao longe, vindo da porteira de entrada, o barulho de velhas jardineiras, ônibus com laterais abertas, levantando espessas cortinas empoeiradas, em horários demarcados, passando e levando os agricultores, quase empilhados. Noutras situações se observava comboios de gados, cães adestrados acompanhavam os cavaleiros empunhando berrantes de sons alternados e ecoantes, a perderem-se de vista na poeira com as suas manadas. Às vezes, acompanhando a avó, eterno cicerone dela, viajavam cheios de sacolas, rumo à cidade. Como se arrastavam aqueles períodos, saindo de sua pequena localidade, rumava nas férias para a casa dos avós, um centro grande, até então o maior que conhecera. Bem preferia acompanhá-la na cidade grande, movimentada, cheias de lojas e novidades, ainda que plantado no salão de belezas, apesar do incômodo da espera, um estranho no ninho naquele universo feminino, de cheiros fortes de laquês, tintas e esmaltes, onde se detinha, paciente, nas revistinhas em quadrinhos. A avó, mulher moderna e vaidosa, empastada nos cabelos com cremes, esticadas as mãos com a manicure e pedicure. Tudo parecia melhor do que, angustiado, ser levado para a fazenda de uma tia, assim fugia de um pequeno lugar para refugiar-se, compulsoriamente, em algo ainda menor, bucólico e sem atrativos. Já menino experimentava a noção de fastio e melancolia, sem saber de seus nomes, mas curtindo os sintomas.


 Não havia outras crianças de sua idade para se entreter, apenas as primas, mais novas, com as quais tinha que conviver, inventar brincadeiras, passar o interminável tempo. Não se tinha notícias de televisão no campo, por vezes os ruídos de um velho rádio de pilhas, até mesmo a energia elétrica inexistia. Terríveis eram as noites, escuras, cheias de imaginosos fantasmas, onde se dormia com as lamparinas de querosene, ou de lampiões, e as sombras das pessoas, agigantadas nas paredes, davam um ar sinistro e apavorante. Bruxuleantes figuras que se alongavam e sumiam, até que fosse apagado o pavio da luminosidade precária, o barulho cessava e apenas sussurros ouviam-se, além dos sons da noite, na algaravia de pássaros noturnos, grilos e cigarras, até que o cansaço sossegasse os medos. O sono conspirava contra, tardando a chegar. O tormento da necessidade de urinar e o receio de enfrentar a escuridão até o sanitário, amanhecendo molhado e vexado. No dia seguinte as narinas apresentavam fuligens do ar viciado, respirado do querosene que abastecia aqueles recipientes a alimentar as chamas e dar a limitada claridade.


 Um coqueiral extenso e baixo fazia a divisa entre a entrada e a casa, enfileirados, parecendo uma fortaleza, ali se entretinha, achando ninhos de filhotes de pardais, com seus ovos agasalhados entre as folhagens em tenros e arredondados círculos de ramos entrelaçados confeccionados com habilidade pelos pássaros. Pequenas cestas naturais acolhiam a família, sempre sujeita aos predadores. Aos olhos infantis ofereciam enternecimento e curiosidades. Por vezes a ninhada, ainda depenada, abriam seus bicos clementes, eram feios, desajeitados, mas, ainda assim, admirados.


 Passar aquelas férias enclausurado na visão de pastagens e de matas era tedioso para alguém que aspirava pelo movimento frenético de carros, sons e buzinas, era um castigo. Bastava lembrar a cidadela onde residia, sempre monótona, por vezes entusiasmada com algum circo mambembe ou de touradas que a visitava, além de alguns filmes exibidos no cinema local. Fora isso, o consumar dos dias, fastidiosos e iguais. 
Na lembrança ficou uma situação que fugia à normalidade rotineira naquela vida de fazenda, uma peste que vitimou a criação de aves. Curiosamente foram morrendo, uma após a outra, galinhas, perus, gansos e patos, encontrados mortos espalhados no quintal. Nunca soube o que acometera aqueles animais, gerando assombro aos adultos a fitarem aquela mortandade e prejuízo. 
Havia a alegria dos sorvetes de groselha feitos na geladeira tocada a combustível, além de bolos e pães feitos em casa, tudo saboroso. À noitinha vinham os camaradas, nomes com que eram conhecidos os empregados roceiros, chegavam extenuados e sujos, vindos a cavalo ou no velho caminhão, trazendo fardos de amendoim ou algodão, dependendo da safra. Ficavam na varanda até despedirem-se e irem para suas casas. Alguns moravam próximo aos currais, em acomodações humildes.



 No domingo iriam ao vilarejo próximo, momento de distração. Estrearia um presente, uma calça nova, bonita. A vila era a única possibilidade de diversão não a melhor, a possível. Antes de saírem, resolveram, o tio e as primas, e ele os acompanhando, irem até o curral. Vendo o pai levantando a filhinha para o dorso de um bezerro, tentou o mesmo em outro animal, voluntariamente e só. Desacostumado da lida com aquilo, bastou um refugo brusco para que o incipiente montador fosse arremessado ao solo, junto aos estercos, enlameando-se com a vestimenta nova. Incontidos risos das jovens priminhas, reprimendas da avó, necessitando de outras vestes limpas, além de um banho rápido, sob as censuras dos que esperavam para o passeio.
Na vila, tocada por um transformador de energia em pálidas lâmpadas amareladas, ruas escuras e botecos mal iluminados,não havia nada de especial a ser visto, ficariam no bar, tomariam refrigerantes e sorvetes, a tia e avó conversariam com algumas senhoras amigas, enquanto o tio consumiria muitas cervejas. Sonolento, o garoto resolvera experimentar um gole restante em um copo, talvez para tentar entender como aquilo era tão apreciado pelo parente. Péssima impressão, o gosto amargo provocou-lhes ânsias. Hoje, ao lembrar, sorri de si para si, tendo essa bebida a sua preferência. 
Mas o alívio vinha quando era hora de ir embora, enfim voltar para a civilização. Ver gente diferente, algum movimento, carros e pressas, quem diria que um dia desejou tanto por isso! Descobria-se como alguém necessariamente urbano, de bucolismo só a paisagem retratada em fotografias e quadros, ou em metáforas poéticas.
 
fotos de varandas de casas simples pequenas de campo    Fotos de Varandas de Casas: Simples, Pequenas, de Campopublicado no Blog do Lima Coelho (25/09/2012)- Contos, crônicas, poesias e artigos literários,São Luiz/MA, com mais de seis milhões de acessos na internet. Ilustrações: Mel Alecrim, contista e poetisa.