sábado, 17 de maio de 2014


*Publicado em livro na ANTOLOGIA CONTOS DE AMOR & DESAMOR, lançamento junho/2014, editora CBJE-Rio de Janeiro-RJ.



D E S E N C O N T R O S


O que o levava a apresentar-se naquele consultório, adentrar aquela sala em luz baixa, deitar-se naquele divã e rememorar a um estranho, homem sisudo e de poucas palavras, fatos que o marcaram em sua trajetória, numa viagem ao pretérito, como se desenrolasse em filme suas reminiscências ?
Chegar até ali não fora fácil, teve que vencer resistências pessoais e íntimas, sempre se considerou uma pessoa equilibrada, ciosa de si, e com uma auto-estima elevada, portanto imune àquilo que julgava destinado aos fracos de ânimo. Ainda se perguntava sobre as razões que o levava a parecer falar sozinho, não fora a presença daquele analista, quase nunca o interrompendo, ainda assim de forma monossilábica, como uma breve pausa. Parecia atento à sua narrativa a tomar algumas anotações em uma caderneta. Sentia-se um rato em um laboratório de pesquisas. Aquilo era desconfortável, pagar para ser exposto, revendo lembranças, retornando fatos aparentemente triviais e irrelevantes.
Sujeitara-se a isso movido por dores morais que jamais imaginou sentir. .Seu castelo esboroou com a decisão terminativa do relacionamento conjugal. Posição unilateral, implacável, a seu ver injustificável. Parecia incrédulo às advertências e lágrimas, vistas amiúdes, no semblante daquela que amava, e a quem se consorciara em um casamento memorável. Os pedidos dela pareciam irreais, desnecessários. Percebera-se sem chão, egoísta, ao não dar atenções aos reclamos de distanciamento implorados por ela, alegando sentir-se só com a convivência com ele, sempre atarefado e alheio ao mundo dela, confundida como um objeto da vistosa residência, sentindo-se uma inútil.

 Cedo ela manifestou que gostaria de atuar na sua área, trabalhar e continuar seus estudos em pós-graduação, mestrado, talvez um concurso para o ministério público ou a magistratura. Chegou a aventar a possibilidade de atuar na sua formação, advogando. Foram manifestações colocadas logo no início do casamento,
sendo, todavia, convencida pelas contemporizações do marido, até desistir de expor seus pontos de vista, parecendo concordar com ele. Fora vencida no silêncio, o assunto perdera a vitalidade, parecendo arquivado.
Imaginava fazê-la feliz, a poupando de uma iniciante carreira de advogada, com todos os óbices que qualquer carreira inicial apresenta. Afinal, tinha uma situação financeira excelente, o que ganhava dava muito além do necessário para ambos, não tinha porque incomodar-se com nada relativo à sobrevivência. Todas as suas vontades poderiam ser supridas, nunca foi de regatear nas despesas. Tiveram uma tórrida paixão nos tempos de universidade, herdara como filho único a empresa da família, já constituída e próspera. Mas a percebia infeliz. Imaginava que tendo tudo o que precisasse, pela origem dela, família classe média, e de ter lutado com as dificuldades inerentes, a confortasse não precisando mais incomodar-se com as comezinhas necessidades.

 Vencida em suas argumentações,já se apagavam os brilhos daqueles olhos que tanto admirava, o sorriso era raro, não espontâneo, quase mendigado.
Presentes, viagens, o que ela quisesse, estava disposto a tudo para alegrá-la, como era ela antes. Não haveria porque ela se incomodar com trabalhos fora, não necessitavam disso, eram suficientemente abastados.
Ela o olhava tristonha, como se fizesse um apelo, mas silenciava, era uma mágoa que se instalava naquele rosto jovial e belo. Principiava-se a ruptura da lealdade e do respeito, conspurcado por ele contra ela, na melhor das intenções. Ele parecia não ver um palmo adiante do nariz, talvez por ter sido filho único achasse que o mundo girava em torno de si mesmo, suas realizações não poderiam ser as delas, não era uma questão de dinheiro. Mas ele, possivelmente, não se conhecia.
Os dias pareciam tediosos, a buscava, e a encontrava insatisfeita, melíflua, distante. Geralmente introspectiva, ausente, como uma sombra a percorrer a casa. Se não falasse com ela, provavelmente, não obteria qualquer reação.
No início, havia a recepção na sua chegada, o via com alívio, como se estivesse entediada de ficar apenas na companhia da empregada, então curtiam aqueles momentos a dois, ela o ouvia sobre o seu dia e seus afazeres, parecia entreter-se com seus comentários.
Com o tempo, até mesmo aqueles momentos rareavam, parecia estar só em casa, falando alto com a intenção de ser ouvido por ela, até surpreender-se ao vê-la aturdida na leitura de um livro, ou fazendo algo sozinha,e alheia. Aos poucos, sua presença parecia indiferente.
Mudara hábitos, saía mais cedo dos compromissos, tentando suprir a ausência de que ela sempre reclamava, pretendendo surpreendê-la, estar mais próximo. Com os olhos da esperança pensava enxergar pequenos avanços, a estimulava nas conversas, buscava, obsequioso, um sorriso, obtendo, quase sempre, um riso, breve e apagado.
Chegara a imaginar que estivesse com algum problema de saúde, embora fisicamente não demonstrasse qualquer desconforto. Talvez deprimida, sugeriu-lhe que convidasse uma das primas para visitá-la, ou mesmo fosse fazer uma viagem para visitar a família, moradores em uma pequena cidade interiorana. Parecia animada quando esta possibilidade era sugerida, porém não tomava a iniciativa de viajar, e o assunto ficava no esquecimento.
Algo a incomodava, sabia-o bem. Nada tinha da estudante animada que conhecera em um ardoroso namoro, em que pareciam viver um para o outro. Animada, tinha projetos e sonhos, assuntos que a movimentavam, e o encantavam.
Espaçavam as saídas noturnas do casal, não que ele não insistisse, mas ela parecida desestimulada de sair de casa. Como ,dizia ele, se você queixa-se de tédio, mas nega-se a se divertir ? Vá entender as mulheres, repetia em voz baixa de si para si.
Ocorria que nas saídas, apenas ele tinha seus assuntos a falar, ela apenas uma paciente ouvinte. Tinha ele a narrativa de um dia de trabalho, de suas realizações, da sua rotina cheia de acontecimentos úteis, quanto a ela, sentia-se amortecida, sem nada a acrescentar de si.

 Teria ele errado em alguma coisa? A princípio ela se aborrecia pelos costumeiros atrasos e reuniões, típicos de sua atividade de empresário. Extenuava-se a explicar motivos pelos acontecimentos, pacientemente parecia entendê-lo e ouvi-lo. Acabavam juntos, compartilhando momentos íntimos e aconchegantes.
Todavia, no decorrer dos tempos, nem mesmo reclamava mais dos inconvenientes imprevistos que a deixava solitária. Parecia não mais importar-se com aquilo.
Aos poucos, estavam sob o mesmo teto, juntos e distantes.
Certo dia, não a encontrou em casa, não tinha o hábito de sair sozinha, não sem antes avisá-lo, razões tinha, então, para preocupar-se.
Sobre a mesinha de centro, com um cinzeiro de cristal sobre um papel, uma carta, na verdade uma narrativa, como um conto...
Falava de um pássaro feliz com sua vida, de cantar e de voar, para onde bem quisesse, sendo os dias, uma verdadeira emoção, livre, realizado com a sua vida e sua liberdade. Certo dia fora aprisionado em uma gaiola finíssima, elegante e bela, grande e confortável, mas restrita na sua dimensão, farta de ração de boa qualidade, protegido das intempéries climáticas e dos predadores, uma segurança fausta, não mais haveria de buscar o seu próprio sustento, arriscando-se em terrenos ermos, imune aos perigos. Então ele minguou, não cantava, não brincava, e sua rotina de prisioneiro o asfixiava...
“Hoje, meu querido, o pássaro abriu sua prisão, renegou a vida segura e alçou voo”..
Abateu-se sobre ele a tristeza, parecia sentir-se culpado por não conseguir viver bem com seu grande amor.
Na separação, ela fez questão de não querer nada do patrimônio, dispensava a pensão e qualquer direito.
Tempos depois a encontrou, por acaso, ao passar por uma rua, no centro da cidade a esperar um ônibus, com pastas nos braços, levando processos. Estacionou o carro mais a frente e voltou até onde ela estava.
Cumprimentaram-se, falaram amenidades, como quem receassem tocar nos assuntos do passado, pareciam velhos amigos que casualmente se encontravam. Ele tinha prevenção em falar qualquer coisa, administrava as palavras, não queria perdê-la de vista para sempre... Ofereceu uma carona, como ameaçasse chuva, o coletivo estava atrasado, acabou aceitando.


A levou até um bairro distante, parando frente a uma casinha simples. Os olhos dela estavam radiantes, vivos, como quando a conheceu. Conteve-se para não abraçá-la, sentia que ela ainda era o amor de sua vida. Não entendia por que tudo dera errado.
Parecia que ela entendia seu olhar, suas dúvidas...
Deu-lhe um beijo fraterno em seu rosto, aconselhando-o a buscar se conhecer.


 Ele finalmente descobria porque estava deitado naquele divã falando de si e tentando se entender melhor...

* Ilustrações da escritora / poetisa Mel do Blog do Lima Coelho - Contos, Poesias, Artigos e Crônicas - São Luiz / MA.




A DÚVIDA DE UM SEGREDO

  Lá vinha o Valdevino, coxo, arrastando sua perna esquerda, como se puxasse um fardo, atormentado em claudicantes passos. Com o tempo acostumara-se com a deformidade, não congênita, adquirida por uma fatalidade, da qual pagaria para sofrer uma amnésia e esquecê-la para sempre.
 Com o andar manco já se habituara, afinal a capacidade humana em se adaptar às situações é surpreendente. Parecia que sempre teve aquela anomalia, não se pejava de seu andar irregular, embora se sentisse cansado. Seu caminhar  lento, carregando sua cruz, não visível, mas presente em todos os momentos, remoendo as lembranças, pesadelos pessoais à luz do dia.

 Antes fosse uma cicatriz, possível de ser camuflada em qualquer parte do corpo, onde as vestes  cobrissem e não despertassem atenções.  Talvez até convivesse melhor com aquilo, afinal, pensava, não há quem não tenha suas marcas, ocultas ou aparentes, a cruciarem os seus dias.

 Assim que a tragédia ocorreu em seu torrão natal, voltando à vida normal, pediu transferência de local de trabalho, mudou de  cidade, e foi embora. Então, apenas os parentes, que vinham de vez em quando, já que ele evitava retornar, conheciam o real do acontecido. Guardavam silêncio para não melindrá-lo com recordações infelizes. Para os demais, fora vítima de um acidente de trânsito, não se recordava dos detalhes, pois apagara, só despertando com os primeiros socorros. Finalizava a prosa enxerida, mudava de estação, alterando as atenções. Inadvertidamente, somos atrevidos com as chagas alheias.
 Do que já vivemos, enterramos o que não interessa, mas as marcas, naquele caso, eram muito evidentes, físicas, visíveis. Como a relembrá-lo permanentemente, não lhe dando tréguas.

 Preferia não rever os que conhecera de infância e adolescência, de tudo sabiam, o enojava imaginar a lembrança involuntária que todos teriam ao vê-lo. Sua atitude passada, torpe e injustificável, o envergonhava. A ele bastava a inclemência de ser o seu próprio juiz.
 Era  trauma íntimo, onde a outros figuraria como relés curiosidade, levando-se em conta de que os dramas alheios, geralmente causam comentários maledicentes, julgamentos levianos.
 Contudo, driblando as adversidades dos olhares atrevidos, ao ficar à sós as cenas retornavam como num filme repetido inúmeras vezes. Evitava assistir na televisão cenas de amor, a remetê-lo em saudades e mágoas de pura descrença, ou pior, que focalizassem brigas e tiros. Experimentava suores a empapá-lo inteiro. O trauma era latente.

 Rapaz criado em pequena cidade, cedo começara a namorar a então noiva, e tudo parecia perfeito. Concursado em serviço público, tinha estabilidade no emprego. Era só questão de alguns acertos financeiros para poderem se casar, como pretendiam. Conheciam-se desde crianças, eram feitos um para o outro, no dizer de todos, inclusive no entender dele próprio.
 Não percebera nenhuma mudança de comportamento nela, parecia feliz com o casamento próximo, o relacionamento corria normal. A noiva, para concluir um curso, viajava todas as noites para uma cidade próxima, maior e com melhores recursos. Alguns jovens da localidade faziam o mesmo percurso, buscando a conclusão de seus estudos.
 Alegando que as aulas as vezes se estendiam até tarde, na outra cidade, ficava em casa de uma colega,  retornando cedo, no dia seguinte. Isso ocorria em dois dias da semana, habituara-se com isso.

 Amâncio era um dos amigos mais próximos, conheciam-se desde a infância, entre eles não havia segredos. Ele próprio empreendia viagens para fins de estudos noturnos. E dele veio uma suspeita que mudaria o rumo de sua vida...
 Com muito jeito, escolhendo as palavras visando amenizar a notícia, contou-lhe que a sua noiva era vista com freqüência com um dos professores, e que seria interessante que ele, vez ou outra, a acompanhasse, pretextando qualquer coisa.
Na verdade, queria que ele mesmo visse, não gostava daquela posição de delator, mas, também, não admitiria a possibilidade de vê-lo no papel de enganado. Poderia ser ou não, melhor que ele averiguasse. Achou por bem que o próprio tirasse suas conclusões, fazendo seu juízo. Achava que agindo assim estava sendo correto com a amizade de tantos anos. Levantada a questão, lavava as suas mãos.

 A princípio sentiu-se incomodado com a insinuação no ar, ofendera-se calado pela honra da amada colocada sob suspeitas. Não poderia dar ouvidos à maldade alheia, mesmo que viesse de alguém de confiança como Amâncio. Engoliu a seco, disfarçou para não aparentar melindres. Plantada estava, contudo, a desconfiança.
 Não confirmou com o amigo que seguiria seu conselho, aliás, tentou aparentar tranqüilidade, em respeito à noiva e a si mesmo. Mas eclodia em seu íntimo, como um vulcão adormecido, em lavas incandescentes, o veneno inoculado nas próprias veias.
 A partir de então,  já não era o mesmo, pacato e bem humorado como todos o conheciam. Mantinha-se silencioso, como encolhido em si mesmo. A custo mantinha sua postura frente à noiva, tentando aparentar naturalidade. A olhava atento nos olhos, a conhecia e não lhe percebia dissimulação. Suas noites, todavia, não eram mais de sono solto, confortante. Angustiava-se amiúde com a possibilidade de ser traído.
 Resolveu que a seguiria. Iria sozinho, nem mesmo o amigo confidente tomaria conhecimento. Precisava ver com os próprios olhos, porém não queria colocar a lealdade da futura esposa em dúvida para ninguém. Acontecesse o que fosse não era dado a escândalos.

Nos dias em que ela pernoitava na outra cidade, ele a seguiu. Manteve-se à distância, nos arredores da escola, observando o movimento dos estudantes, entrando e saindo. Ao término das aulas a viu em companhia do tal professor, conversavam normalmente, não demonstrando maiores intimidades, apenas seguiam na mesma direção, a do carro dele, pois ela não dirigia.
 Ao vê-la entrar no veículo, como se fizesse com habitualidade, impacientou-se, controlando-se para não se declarar aos dois. Voltaria em outras oportunidades, precisava ter mais elementos para não ser leviano e precipitado. Afinal, não contava que ela aceitasse carona com ninguém, principalmente com um homem, e àquelas horas.

 Seu estado psíquico era de um desvairado, não atinava com seus botões. Ora  a entendia, tudo tratava-se de um cordialidade, apenas um obséquio de alguém favorecendo a outra pessoa, para, no mesmo instante, entrar em verdadeira confusão mental, imaginando o pior. A traição, então, se delineava medonha aos seus olhos.
 Várias foram as incursões dele, sorrateiramente, a vigiar o par. De pessoa afável e cortês, transfigurou-se açoitado pelas dúvidas, ao ponto de adquirir uma arma de fogo, comprada de um estranho.

 Das noites insones que passava a se angustiar com suas apreensões, começou a esboçar uma vindita, exigiria de ambos satisfações, sob a mira do revólver, fazendo ver que ele não era o ingênuo que poderia aparentar.
Amargurado pelas desconfianças, inábil com a arma, postou-se frente à frente com o casal, surgindo inesperado das sombras, em atitude de desespero e ameaçador.
 Da noiva, surpresa e assustada, negando qualquer envolvimento, rogando bom senso, ouviu-se um grito e um desmaio.
 Apenas um disparo foi ouvido, contra a própria perna. Inexperiente com o artefato mortífero, atrapalhou-se com o grito de espanto da moça, tempo que teve o professor, em defesa, atracado com ele para desarmá-lo, ferindo-se com a própria arma.
 Foi socorrido pelo suposto amante, que o deixou em um pronto socorro para as medidas de urgência no sangramento. Alegou que o encontrara no caminho, perdendo sangue.
 Não registrou a ocorrência, seria uma confissão, tentativa de homicídio, além de temer falatórios e não ter porte de arma. No íntimo agradecia não ter acertado ninguém, além de si mesmo.

 Nunca mais procurou por ela, tampouco soube se realmente eram amantes. As palavras dela clamando inocência não surtiram efeito. As evidências, em sua alucinação, falavam mais alto. Preferia acreditar que agira em desatino pela traição, antes instigado pela mente insana, que por provas conclusivas.
  Mudou-se da cidade, envergonhado com sua sina, herdando a indesejável deformidade física.

 A crença de que fora traído, de si para si, atenuava o ato tresloucado, não o justificava. A hipótese da inocência dela agigantava seu desatino, doía-lhe muito mais, a teria perdido inutilmente.  Mas, no íntimo, a dúvida persistia incômoda.

 Era visto caminhando lento, com seu segredo, sua dúvida, e a perna arrastada, imerso em seu  inferno pessoal...

* Publicado em livro na ANTOLOGIA SELEÇÃO DE CONTOS PREMIADOS, EDITORA CBJE - RIO DE JANEIRO-RJ, março de 2014.