segunda-feira, 8 de julho de 2013

 

 

O EGRESSO (conto)

O  EGRESSO (conto)
O sol, no seu costumeiro esplendor, clareava paulatinamente a paisagem, num hálito morno e aconchegante naquele amanhecer de um céu sem nuvens, azul e belo. O olhos insones acompanhavam distraídos os pássaros em sua azáfama matinal, na alacridade de seus trinados, alvoroçados na copa de uma árvore, para além das muralhas vigiadas por sentinelas armados. Da cela, após mais uma noite mal dormida, sonolento, os pensamentos traziam imagens de um tempo transcorrido, marco divisor marcante de sua trajetória. Sua existência encontrava-se delimitada em dois espaços temporais, da infância aos 20 anos, e o malgrado e penoso período de ostracismo involuntário e trancafiado. Sua curta e comum narrativa a voltar-lhe em reminiscências. Embora viesse de origem humilde, gozava do apoio da família de pessoas idôneas, tal como ele o fora, até então. Lembrava-se de seus constantes azedumes e sentimentos de inferioridade expressos no dia a dia, aborrecido com a tarefa de operador de uma máquina registradora em um supermercado. Parecia-lhe ironia ter que codificar tantos itens supérfluos, iguarias jamais experimentadas por ele, enquanto o aguardava uma marmita a ser esquentada com o trivial e pobre cardápio cotidiano. Depois de ter que aguentar filas enormes atendendo pessoas esnobes a ignorá-lo como se fosse parte da registradora, por vezes sem sequer dirigir-lhe qualquer palavra ou atenção, no término do expediente esperava o coletivo cheio rumo à escola pública até as vinte e duas horas da noite, onde o cansaço fazia com que as vozes dos professores naquele curso supletivo ecoassem como sons estranhos e distantes, cochilando vencido pelo sono. Seu alento vinha da namorada, a incentivá-lo cheia de esperanças e de sonhos. Ana, entusiasta e esforçada, estava à frente nos estudos, aplicada, estudava com afinco, pretendia crescer na sua empresa, iniciante como recepcionista.  Vendo-a exultante, mentia aparentando interesse pelos estudos, quando na verdade aquilo era-lhe maçante, um sacrifício, não raro faltava pretextando descanso. No serviço não se conformava com os afazeres, sentia-se escravizado ao trabalho por depender economicamente dele. A possibilidade de concluir o intensivo para alunos adultos e retardatários parecia cada vez mais difícil, desinteressado empurrava com a barriga as lições, perdido em suas cogitações amargas e desconsoladas. Perdera o viço próprio da juventude, exaurido, sem objetivos a animá-lo. Inconformava-se com a situação, a própria e a dos seus. Julgava os país e irmãos ingênuos, crendo sempre que a as coisas fossem melhorar, quando tudo parecia-lhe ilusão, algo a se acreditar para dar sentido aos dias, nada mais.
A roda viva de levantar ao nascer do dia, arrumar-se, disputar espaço em condução lotada, correndo para não chegar atrasado, ansiando com a folga domingueira, não era o que desejava para si, queria mais, sem saber como. Vivendo aqueles conflitos íntimos, arrastava-se desanimado. Buscava nos doces olhos da amada momentos raros de paz e de carinho, ela sempre lembrando-lhe que deveria persistir, ser fiel às metas, superar os desafios, estudar para crescer profissionalmente. No mel do encanto daqueles momentos, o aguilhão da revolta pessoal o martirizando, incomodando. Dia de pagamento, feitas as contas, mal sobrava algum para o cinema em fim de semana. Via o sapato furado na sola, com o improviso de uma palmilha de papelão, molhando a meia em dias de chuva, aguardando o décimo terceiro salário para a compra de um novo.
A porta larga das facilidades o encontrou inebriado, sedento de mudar seu destino para o lado aparentemente mais fácil, buscar o que não tinha, à margem da lei. Via escoar a juventude e energia nos dias corriqueiros e sempre iguais, sem perspectivas. Não foi preciso muito para ser seduzido por um conhecido de infância e de brincadeiras, elemento de atitudes suspeitas e mal afamado pelos vizinhos. Bastou o aceno, estava pronto para o convite, conveniente, aliás. Admirava o outro ostentando boas roupas, grana para as baladas com as garotas, argumentos a convencê-lo a participar de pequenos ilícitos, no anonimato, rendendo mais que o parco salário mensal. Roteiro sem volta, cada vez crescendo na ganância, a ousadia derrogando os escrúpulos, vencendo resistências e o medo. Perdera o emprego, pela desídia, chegando atrasado, destratando colegas e superiores, esbanjando ironias e descaso com as tarefas designadas, sempre tidas como humilhantes. Para a namorada apresentava-se com pequenos presentes, trajes novos, alegando a promoção para encarregado do setor. Em uma das muitas façanhas clandestinas foi preso. Condenado a cumprir a pena de mais de seis anos de reclusão, tal a extensão da ficha policial, vinda à tona após a detenção, onde fora acusado de crimes de furtos, roubos e assaltos, reconhecido em acareações pelas vítimas. Dos seus entes familiares sentiu o peso dos olhares recriminatórios, o exílio a apartá-lo do pai, irmãos e da sociedade, restando o sofrer solitário da mãe, a única a visitá-lo no presídio.
Ana mal acreditava no que aconteceu, não era a pessoa que julgava conhecer e amar e com quem pensava em compartilhar o futuro juntos. Restaram-lhe aquelas últimas impressões a acusá-lo em sua consciência. A desilusão dela diante aos fatos, sua expressão de pânico e de descrédito. A distância e o mutismo sepultaram qualquer esperança em se reconciliarem. Em momentos aflitivos, solilóquios torturantes, cobrava dela compreensão, queria ter tido a oportunidade de atenuar suas faltas, justificar-se como a necessidade de melhorar a sua condição para serem felizes. Chegou a enviar cartas, sem respostas. Pensou em matá-la tão logo fosse posto em liberdade, isso na insanidade do paroxismo da revolta consigo mesmo, afinal não era assassino, e a perdoava. Sabia-se errado, fraco, covarde, arrependia-se, parecendo um pássaro estranho naquela gaiola humana, onde tinha que ostentar frieza e valentia para ser respeitado no antro dos companheiros de infortúnios. Se não tivesse sido impetuoso e orgulhoso, não teria fraquejado no caminho justo, se os estudos não o agradavam poderia ter conquistado uma profissão, mesmo modesta, como a maioria das pessoas. Naquele ambiente hostil, nos olhares daqueles enredos a serem desvendados, meninos crescidos e acuados, revoltados, feras demonstrando força como escudo para seus temores, ostentava a máscara de forte e corajoso. A lei reinante, implacável, a nenhum deles permitia lágrimas de fragilidades, choravam para dentro, ocultando suas dores e mágoas. No silêncio se subentendia a inexistência de manifestações da humanidade dos sentimentos, confundidos como fraquezas imperdoáveis. É a divisão da sociedade entre duas realidades, ali se encontravam os reclusos pela miséria moral, abrigados nos paredões dos imensos muros e gélidas celas, onde a sobrevivência dá-se mais por instinto que por opção de viver.
O seu histórico pessoal, como uma fita reprisada inúmeras vezes, justamente olhando a beleza daquela manhã, com a cantoria da passarada, o esperado dia da libertação chegara.
Logo mais estaria além das paredes restritivas do ir e vir, grades descerradas, portas abertas, ferrolhos liberados, uma ave a reaprender a voar, a traçar uma nova trajetória . Provavelmente o esperaria a resignada genitora no portão da saída a recepcioná-lo, a única e incansável a estender-lhe solidariedade incondicional. 
Abria-se a nova possibilidade do retorno aos próprios passos, sem vigias e tutelas, vivendo do outro lado da prisão, sentindo um frio a percorrer-lhe a espinha, a depender somente dele  reescrever a própria história... 
**Publicado em livro na Antologia  LIVRO DE OURO DO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ, lançamento agosto de 2013.   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora