sábado, 19 de dezembro de 2015






77ª participação de antologias de contos (diversas editoras), a maioria pela CBJE-
Rio de Janeiro- RJ - lançamento fevereiro de 2016.


TUDO É CARNAVAL...

Devaneios sugeridos, ao som de uma música, tomando cervejas, mastigando amendoins. A noite solta, ambiente agitado, os olhos ao derredor colhendo, atrevido, cenas a compor um cenário. Detalhes se avolumando nos refolhos da mente, como protagonistas, superlativando miudezas. No  sufoco do mormaço, mesa repleta de garrafas, ócio curtido em divagações. 

Malícias sensuais nas ancas morenas, roliças, matreiras, das sambistas na malemolência dos passos, ritmados...
 Alheio, deserto, perdido, sortido como bala em baleiro colorido. Alternando goles, salivando sementes, as devorando ávido, voraz, insaciável, como se tivesse degustando um manjar dos deuses, absorto em suas elucubrações. Sensação multiforme, distante, inconstante, insana, incendiado e acalmado nos 4% etílico dos 600 ml de cada garrafa.

 .Ria-se consigo mesmo de suas conclusões metafóricas, ilhado em sua solidão no meio de toda aquela gente agitada. A mente em rodopios, curtindo de forma diferente aquela situação, como se visitasse a si mesmo  em sentimentos. Achava-se, entre um gole e outro, compenetrado e alheio, ou talvez vendo com os olhos da alma. Parecia que todos cobravam sorrisos, como máscaras, carantonhas risonhas tão aceitas no trivial das formalidades, afinal, tudo era festa. 

Se não fosse chamar a atenção, e a iluminação ajudasse, pediria um papel para rascunhar suas impressões, os sentidos voam de ambientes em momentos, despertados por sensações e motivos...um cheiro no ar, uma palavra, instantes remontam a outros na memória destravada. Pronto, sentia-se ausente, embora sentado ali, no rebuliço dos foliões, vagando em reminiscências, indiferente à algaravia da paisagem. Inspiração, inoportuna visita, expressando distância a alguém que o olhasse, ensimesmado, em íntimos mergulhos, embrenhado em suas cogitações. Levado de inopino a outras imagens, corpo fixo, a alma sumindo... 

O sentir de agora, doía no corpo, magoando a alma. Por onde andará a mente, liberta das contingências, na intimidade de cada um ? Quem garantiria de que muitos não estariam distantes, embora aparentemente presentes naqueles momentos?. Besteira,  atalhava consigo mesmo, isso era coisa de maluco como ele, a tentar enxergar tudo por outros prismas, enevoados e enigmáticos. Antes produto de suas retinas atrevidas, enxerido nas vidas de entes semelhantes, sempre buscando algo além da aparência visível a todos. Exercícios feitos da janela , visualizando figuras, descortinando suas reações nas suas lidas cotidianas a ocupá-las. Nas calçadas, passos rápidos, cada qual enfurnado em si, vidas que se encontram, rentes, indiferentes, histórias diversas, sempre perdidos nas pressas. Formigas em formigueiro, viventes no mesmo solo, viajantes no mesmo tempo, solitários nas mesmas companhias, transeuntes de momentos. Em cada cabeça, universos condensados, identidades transcendentes, contemporâneos na jornada, estranhos conhecidos...

Assim, dando asas aos pensamentos, tirava suas conclusões, inescrutáveis a terceiros: " bailamos com nossas imagens, arsenal de disfarces e ritos, assim nos apresentamos. Celebramos as cerimônias, em mesuras programadas, em risos previsíveis. E diante a nós, à sós, maquiagem retirada, cara limpa, lavada, sem fugas, artifícios, ausentes de neons e frenesis artificiais, somente o íntimo...desnudo, implacável, ainda assim podemos fugir, nos anestesiar, rir, dançar, cantar, acreditar na fugaz alegria, e embriagados ressonarmos, como crianças crescidas. Porém, se insistirmos, arriscarmos nas dores das incursões íntimas, nos conheceremos tal como somos, nos apresentaremos a nós mesmos"... 

Detida a atenção sobre um casal que tentava uns passos, inapropriados ao clima carnavalesco, pois pareciam dançar um tango... boteco atulhado, freqüentadores já embalados nos teores alcoólicos, volteios na contra dança, um mulato e sua parceira, ensaiando em trejeitos bizarros, o som aumentando, incomodando, casal em performances ousadas, naquela maravilhada plateia, extasiada pelo álcool e a música.

 Trôpegos dançarinos, luz amarelada, fosca, ar nauseante de fumaça... na noite deslizante, tépida e tranqüila, a mente acompanha. De repente, descortina-se na imaginação outro inusitado cenário, em amplo salão , orquestra e pares engalanados, suaves adornos em seresta, seleções melodiosas, acordes de fina festa, aromas de jardins em primavera... Peça que nos prega as viagens doidivanas da mente, encanto dissolvido, desentendimentos, paz interrompida. Botequim sufocante, antro oculto na praça, só mesmo mais uma cerveja gelada a compensar o incômodo, nada que perturbasse as averiguações daquela personagem atenta e discreta em seu universo pessoal.

 Incendiando as ruas adjacentes um tropel de alegre arruaça, bloco de inveterados foliões, fantasiados e coloridos, desfilando  nas suas alegorias, convidando a todos aos frenesis eufóricos das marchinhas...
 
 Na silenciosa análise daquele observador singular, parecendo a tudo assistir interessado, suas observações, se pronunciadas, não fariam sentido àquele deslumbrado público "...No cordão do desespero, enfileram-se atormentados, choram, riem-se de suas desditas. No bloco dos felizes ou ingênuos, navegantes em mares plácidos, crenças cegas e filosofias leves. De entremeio, entre os dois grupos, os anestesiados pela euforia e os dementados pela realidade, oscilante, entre eles, em busca por tênue lucidez, seguem os analíticos, inebriados nas fantasias dos eufóricos e identificados nas angústias dos sofridos"...

Levantava-se, já trôpego, o filósofo solitário, ruminando suas teorias, levando consigo suas impressões, como um cronista da vida, ganhando as calçadas...

sexta-feira, 20 de novembro de 2015


76º texto publicado em livro de antologia de contos, novembro de 2015, editora CBJE-Rio de Janeiro-RJ.

Choro na viola



 

No espaço do bar, entoando a viola, tirava acordes, transpirando suas nostalgias em poemas líricos de própria lavra, sinceros e belos. Saudosas canções, jamais alegres, embora lindas, falando de um amor passado, asas das saudades... O ritmo do instrumento parecia lágrimas sentidas acompanhando a voz afinada e tristonha do violeiro. O lirismo compungido fazia do ambiente algo íntimista, atraindo a atenção dos frequentadores. Seriam lágrimas transmutadas em cantos, ou prantos disfarçados em sons?
No embalar de suas entonações, imagens casadas com a natureza bucólica, reminiscências de sua origem rural, enfeitando um cenário onde debulhava suas saudades em trinados melodiosos e nostálgicos. Vagava muito além daquele ambiente, viajante introspectivo em seu universo pessoal, restava ali sua presença física, seu rosto denotando suas emoções, seu cantar inspirado, feito um canário em uma gaiola, onde não se sabe se canta ou chora suas desditas de prisioneiro.
Apenas a viola como companheira, atraindo a atenção dos presentes, envolvidos na aura melancólica do intérprete carismático, de afinada voz melodiosa. Em sua prosa lírica, confrangendo emotivos da assistência, onde as falas se comunicavam com muitos, visto a infância comum de alhures lugares, pontuadas em lembranças de simples vidas campestres.

O artista vivifica momentos, extasia a plateia em qualquer palco que se apresente. Seja em qual instrumento for, no toque de um piano, no dedilhar das cordas da viola cancioneira, ou ainda de uma gaita a bailar nos lábios. Mesmo no pandeiro rasteiro na harmonia da percussão de uma bateria de escola de samba, feito em canções, lamentos e louvores se mesclam inspirados, trazendo o choro feito arte, invadindo corações e incendiando e reverberando luzes. Ainda que tristes, soturnas, as notas extraídas. emoções evoladas, libertas amarras em sonoras expressões. Lágrimas e lástimas, em poesias ritmadas, libelos das dores em libertação.
Ali estava o poeta e sua viola, abraçado a ela como se fosse a amada distante, revivida em sua poesia e sons lamuriosos, consumido de saudades. Histórias de vidas, relembradas, amores deixados no tempo em amargas despedidas. Enlaça seu instrumento, extensão de sua voz e dor, cúmplice, nas incursões sofridas da memória. Brando choro sonoro em notas musicais, mágoas cantadas, dedilhadas, ecoando, pranteando e encantando.
Em cada face dos presentes, embalados na melodia, como se o sentir de agora doesse nas almas revivificando momentos, o fenecer das alvoradas e entristecer dos ocasos, pintados em rubros arrebóis. Cada Ser um universo, arquivo inescrutável de suas intimidades. Na muda leitura que cada nota inspira, tocando corações. O que nos une, na sincronia humana, são as emoções, manifestas em sorrisos e até em lágrimas de alegrias e de dor.
O gosto, aromas e sabores, sentimentos pelas flores, encantos dos pássaros, fases do dia, esquadrinhado em horas, rotinas. Furtivas sensações, pinturas de um quadro, detalhes de uma escultura... Paixões revolvidas, em canções ouvidas, curtidas e sofridas. Tantos sentimentos se misturam, meiguice de crianças, nuvens em desenhos, gostosas gargalhadas, perfumes, queixumes e humores...
Águas correntes, límpidas, cristalinas, nascidas nas retinas de almas sensíveis, passíveis de emoções. Escorre nas faces, nublando sorrisos, deixando cicatrizes. Alegria de chegadas e amargas despedidas. Ânimos de euforias, pesares e agonias, levando, deixando, sinais na vida, sulcos em leitos secos dos rios.

Olhares alheados, enviesados sentidos, ociosos momentos. Bolhas de sabão em vagos pensamentos, nau sem rumo, sensações oscilantes, sentimentos refutando tormentos. O que se buscava, cada qual, era o enternecimento em suas próprias viagens íntimas, saboreando lembranças, descortinando vidas. Aparente indolência calma, inspirados nas canções. Desafios às emoções, um adeus abraço, distâncias presentes, a imagem de quem vai, ausência doída que fica, lembranças queridas.
Como regente de uma orquestra, dando as ordens com a batuta, no interior de cada ente, suas verdades em silêncio, como barcos singrando extenso mar, com matizes próprios, escritas com os dias de cada vida. Estradas, partidas, despedidas,sumindo, consumindo.
Estrela guia, ou sugestão apenas, evolava no ar aqueles acordes, despertando sensações, sentimentos. Oníricos instantes, devaneios e magias, girando as mentes distantes naquela canção, percebida de forma sutil e diferente em cada qual.
Carícias, aragens finas, beijo leve, um sopro ou uma brisa perfumada, suave música convidando aos sonhos, ninando felizes crianças embaladas na ternura. Evasiva canção, solidão muda, curtida, versos doloridos, pungentes. Alardeia lamentos, saudades, passado, entretendo pesares presentes, levando nas dores cantadas, como as águas correntes que buscam o mar, amainando o sofrer...
Dedilhadas notas leves, sonhos doces em emoções, enlevos para Seres carentes, inspirações, sons, acordes na viola, brota nasce, uma canção. Trazendo suave, à flor da pele, trinados maviosos, sons harmoniosos, asas para sonhar... Um mundo inteiro, cheio de deleites, luzes interiores, tristezas, mágoas, desencantos e cicatrizes levadas das almas, feito roupas sujas lavadas e alvejadas. O sumo imundo, escorrendo, sumindo. O canto encantado em formosas notas, vibrantes, etéreas mensagens na atmosfera, nimbadas em clarões, aureoladas na paz...

    PUBLICADO NO BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS E ARTIGOS LITERÁRIOS - SÃO LUIZ /MA (COMEMORANDO 6 MILHÕES DE ACESSOS NA INTERNET) - ILUSTRAÇÕES DE MEL ALECRIM, POETISA E CONTISTA.

domingo, 1 de novembro de 2015





( 75º texto publicado em antologia de contos pela CBJE, Rio de Janeiro-RJ, lançamento novembro de 2015)

O lance certeiro

  
Aneraldo tinha por hábito relacionar tudo de sua vida à sua paixão futebolística, assim, pela tabela do campeonato, ele resvalava da segunda para a terceira divisão em sua atividade profissional... há exatos oito meses sem marcar gol, ou seja, finalizar a partida, concluir um negócio. Não havia torcida a favor de sua posição, mas, cobradores, quantos ! Não fossem alguns bicos de locação estaria fora da disputa há muito.

Apostara suas fichas naquela venda, tudo parecia perfeito, os lances elaborados, faltando finalizar e mandar a bola para dentro da rede, questão de detalhes... Tinha faro apurado, sabia quando a maré estava a seu favor, os dribles do destino acenavam auspiciosos, sem negativismos, mudou a sintonia do rádio do carro do noticiário sempre com assuntos nebulosos, só falando em crises de vários setores da economia...Queria livrar-se da aura escura daquele ambiente catastrofista, a torcida dele para ele, era favorável ao arremate triunfal, à volta por cima, ao lance certeiro...

Tamborilava os dedos no volante do carro, minimizando a ansiedade na música suave, otimista, como o povão na arquibancada vibrando pelo timão, seu Corinthians de devoção. Olhou despercebido pelo mostrador de combustível, na reserva. Como ele, parecendo estar no banco, à espera de ir para o jogo. Dava para chegar ao destino, depois veria o que fazer, teria que ter a paciência de um vencedor, a bola estava em seu pé, pronta para o arremesso que o tiraria da zona de rebaixamento...

Cumprimentou efusivo o porteiro do prédio, parecendo adentrar a arena da partida, envaidecido de sua performance, sentindo-se olhado pela multidão a saudar seu campeão... Chegara antecipado ao apartamento a ser mostrado para a sua futura ocupante, seu troféu ardorosamente esperado pela campanha vitoriosa de seu tino comercial. A partida estava ganha, os filhos concordaram com o preço, e o espaço era também o que desejava a senhora mãe que vinha assinar o contrato,e para conhecer sua futura moradia, venda à vista, comissão grossa em conta, assovios de olés da fictícia torcida...

Adentrou o imóvel, com o sol exuberante daquela tarde inundando os ambientes, arejando os pulmões de atleta pronto a entrar em cena e fazer sua partida triunfal, os ponteiros do relógio davam conta de sua antecipação na chegada, exatos quinze minutos antes, coisas de jogador cioso de seus compromissos, pronto para o aquecimento no campo.

Correu os olhos pelos cômodos, impecavelmente limpos, como a grama rente esperando pelo certame inesquecível... Toda aquela disfarçada ansiedade, no silêncio da atmosfera, o banheiro ostentando um rolo de papel higiênico dupla face, um convite ao desafogar, equilibrando seu ritmo, antes de entrar e ser ovacionado pelo seu público. Aquilo tudo era um convite implícito para uma boa defecada, a intenção já comunicada ao cérebro, no descer das calças, ainda restavam dez minutos...

Assoviava e ria consigo mesmo, levantando-se e apropriando-se do papel deixado pelo antigo inquilino em oportuna ocasião. Porém, há sempre poréns, a descarga da hidra estava travada, imóvel. Pensou em forçá-la mas ateve-se do inconveniente, caso ela estivesse com problemas, seria um incômodo imprevisto na porta do lance derradeiro... E agora, deixaria seu resíduo a boiar no vaso ? Como justificar aquilo aos pretendentes compradores ?  Rápido correu à área de serviço, e nada havia para colher água, nenhuma vasilha por improvisada que fosse.  Pânico na reta de chegada, como uma cãibra na musculatura da perna do artilheiro...

O melhor a fazer era recolher aquilo com as próprias mãos, afinal era dele mesmo, o que não poderia era correr o risco de impedimentos na grande área. Feito isso, embalado o volume repugnante, restava dar fim àquilo, e rápido...  Pressionado como se estivesse com o juiz de apito na boca aguardando a ação.

Da janela da sala, do 10º andar daria na porta de entrada do edifício,nem pensar; foi então para um dos quartos, cairia nas árvores do estacionamento, com sorte ficaria retido nas folhagens...

A jogada deu zebra na finalização...Coisas do destino, bola do pênalti chutada fora na decisão.

O seu volume feito um pequeno pacote, como um chute arremetido, não teve a rede desejada, e desabou sobre o vidro dianteiro do veículo de seus esperados clientes, que estacionavam o carro; e, indignados, com a fezes esparramada e mal cheirosa, saíram esconjurados, abandonando rápido o local, desistindo do negócio...

No caminho de volta, bandeira de seu time em baixa, sentiu o carro falhar. O combustível acabou próximo a um córrego, terreno ermo, duas traves improvisadas, de madeira, um campinho amador na várzea, era como se sentia como jogador....Então concluiu que fora, efetivamente, rebaixado na classificação...

sexta-feira, 18 de setembro de 2015




74º CONTO PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA EXPOLETRAS 2015, EDITORA CBJE - RIO DE JANEIRO-RJ, lançamento em 20/11/2015



SOMBRIOS TEMPOS 

Na impositiva soberania da legalidade maculada, sob suas ordens, a da lei, desvirtuada e permissível aos interesses dos golpistas, estranhamente jornais apresentavam lacunas em branco, ou despropositadas matérias como  receitas de culinárias em local de destaque. Posteriormente soube serem protestos sutis contra a inclemente censura existente, tolhendo redações de jornais quando as notícias estavam prontas para impressão. Em cada empresa jornalística, impressa, televisiva e radiofônica, havia enviados com a finalidade exclusiva de fazer uma varredura, um pente-fino, entre o que podia ou não ser publicado, eram tempos de ditadura.

O clima disseminava-se a todos os que conseguiam entender o que se passava. O falar silenciado e as palavras controladas, as rádios não tocavam com freqüência a nossa música, invadida por execuções em inglês, parecendo que não tínhamos mais nenhuma tradição musical. As poucas canções, ou eram inocentes a toda prova, ou traziam mensagens cifradas, fazendo com que compositores tivessem a manobra do uso excessivo de metáforas nem sempre inteligíveis aos ouvintes. Peças e filmes abortados, artistas perseguidos, autoexílios promovidos pelo ambiente asfixiante. As conversas em lugares públicos banalizavam somente as proezas futebolísticas, paixão de nossa gente, culminando com o primeiro título da Copa, em 1970.

Havia um cercear até, e principalmente, nas escolas, sobre determinados assuntos. Como estudar, em história, a então União Soviética, de forma sucinta, sem mencionar a sua economia, por exemplo. A bíblia passou a ser o estudo malfadado de Educação Moral e Cívica, parecendo religião aplicada. Incultiam-nos maravilhas verde amarelas, o País do futuro, da rodovia transamazônica, estrada que uniria o norte o nordeste brasileiros, em disciplinas desprovidas de senso crítico, como mantras da subserviência direcionada.

Autores nacionais preteridos, pérolas como Graciliano Ramos com sua escrita esmerada, não apenas na forma, mas no retratar as mazelas sociais de nosso povo, ele próprio vítima das atrocidades do Estado Novo getulista.

Os veículos ostentavam adesivos tendo a bandeira como protagonista, Brasil, Ame ou Deixe-o.  Nenhum comentário que transcendesse aquelas páginas, restritas àquele universo, passavam incólumes. Tomavam  não apenas a direção do País, mas os das mentes das gerações de jovens estudantes, o que dizer, então, dos demais setores da sociedade ?

Um texto escrito era lido, relido várias vezes, refletido, autocensurado, nada que transpirasse os sussurros de prisões hediondas, infundadas, levianas. Vivia-se espremido, desconfiado, lembrando a santa Inquisição da idade média, onde todos poderiam, a qualquer momento, serem considerados bruxos e denunciados, substituindo fogueiras pelos porões das torturas.

Algumas palavras relegadas ao ostracismo, sequer eram mencionadas, por malditas e execradas, como a greve, tida como anomalia social passiva de subversão da ordem e dos interesses nacionais, penalizada na Lei de Segurança. Comumente as mídias, televisivas e faladas, em horário nobre, anunciavam pronunciamentos nas vozes pastosas dos verde olivas em seus uniformes. 0s estudantes cumpriam as datas cívicas em desfiles obrigatórios, quando não assistiam as paradas militares a ostentarem orgulhosos seu poderio bélico.

Assim seguia nosso País, sob baionetas e fuzis, num céu de brigadeiro, ufanismos a todos os pulmões, sesquicentenário de nossa independência política, mergulhados na mais ferrenha e estúpida das aberrações contra a dignidade humana, a supressão da liberdade. Atrofiavam gerações, silenciadas, bestializadas nos bancos escolares, sob o bê a bá das censuras e das mentiras convincentes ao Poder. Realidade fabricada, manietada a livre imprensa, artistas, operários, marias, josés, putas, todos viviam sob o guante da força bruta instalada.
O sistema fechava-se, anulavam garantias individuais com o pretexto de não facilitarem a vida dos envolvidos políticos contrários ao Golpe, eufemismo  denominado  por eles de Revolução. Governo eleito deposto, leis de exceção transfigurando a Constituição adequada às necessidades do terror estabelecido.

Eleições apenas as proporcionais, abolia-se, incontinenti,  a livre escolha para a Presidência da República, tendo os Estados governantes indicados pela Junta Militar, ora cúpula de governo. Mesmo na escolha para o parlamento, criou-se, depois de venerável derrota, a esdrúxula  figura do Senador Biônico, escolhido pelo Executivo General. Banqueiros e inescrupulosos empresários, acolitados por políticos fisiológicos e oportunistas, comensais da rapinagem nacional, legitimando o massacre, atentando contra os direitos humanos.

Nos ares pesados, sob constantes ameaças à liberdade civil, pouco se falava, menos se escrevia, ruas, casas, teatros, bares e escolas, o medo nos dominava e enceguecia. Se alguém soube demais e ousou dizer, ninguém mais sabia aonde ele estava, e tudo era medonho, tristonho, militar.

Livros duplas capas, ocultos e suspeitos em leituras e segredos. Terríveis hipocrisias, funestos tempos de ira, a nação esvaía-se e esbaldava falsa moral, orgias e saques, permissões contrárias ao interesse pátrio, avanço desmedido do capital internacional e das remessas de lucros a minguarem nossas divisas, tudo em omissões, e comissões, consentidas. Falso milagre econômico a nos dilapidar até os dias presentes em juros abomináveis.

Sob  o signo da guerra fria, o conflito entre duas potências, conhecemos o terror da ditadura, não apenas nós, mas também nossos irmãos vizinhos, cicatrizes relembradas para que não se intentem, nunca mais, contra o mais precioso direito da criatura humana, seu livre arbítrio e a liberdade de expressão.

Sejam sepultadas as práticas irracionais e tirânicas de todas as épocas,  em qualquer bandeira ou ideologia em que se refugiem; e que, sob o argumento de estrito cumprimento das ordens, justifiquem atrocidades, negando  a justiça, alheios à paz, aniquilem vidas...

*infelizmente esta narrativa não é ficção.




sábado, 12 de setembro de 2015





Ediloy A. C. Ferraro 
São Paulo / SP


Publicado na Antologia de contos A MULHER DE BRANCO,
editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, 73º conto publicado pela editora.  


A devoção de Nemésio

 Sobre a tumba, um corpo esquálido, cabelos brancos, rosto vincado pelo tempo...uma vela que se apagou nas mãos enrugadas, justamente com aquele homem, encontrado hirto, gélido já, debruçado rente à cruz ostentada no jazigo. Alguns passantes, naquele dia de visitação de finados, deram-se conta do ocorrido; embora, de longe, não percebessem que estivesse morto, pois não caíra, mantinha-se apoiado, ajoelhado. Sua expressão de olhos estáticos e abertos, como se ainda rendesse homenagem a algum falecido, cujos restos mortais jaziam sob a lápide... Um antigo funcionário da necrópole disse que o via, ano após ano, sempre na mesma data, a dos mortos, visitando aquele túmulo, acendendo velas e depositando flores, compungido, refugiado em si mesmo, a murmurar coisas, possivelmente orasse em intenção do visitado, ou visitada, não sabia. Pelo visto vinha de outro lugar, não sendo conhecido na cidade.

Nemésio infartara cumprindo sua devoção de muitos anos, enterrando consigo o mistério de tanta dedicação. O segredo ia consigo, jamais partilhado. Ocorre que o mesmo, há mais de 25 anos antes, por breve período, foi funcionário daquele cemitério. Durezas de uma época ruim, sem trabalho na lavoura, seca inclemente afastando os retirantes para outras plagas. Aceitou a função de auxiliar de coveiro, indicação de um vereador conhecido dele, era a única alternativa de trabalho naquela circunstância. Agarrou com unhas e dentes a oportunidade, abrir valas ele sabia, por que não covas ?
Mas as circunstâncias, que seriam transitórias, marcou-lhe a existência inteira. Feito ferro em brasa em novilho novo, ardia e o mantinha vinculado ao passado, a atormentá-lo na consciência pesada. Era um homem bom, probo, de recato irrepreensível, porém, no íntimo, sentia-se um renegado, um ladrão covarde a agir sorrateiramente, não importasse as razões a amenizar seu delito...

Sua filha, Inácia, a do meio, pois tinha dois outros, com imenso sacrifício do pai e da mãe, conseguira vencer as barreiras das dificuldades inerentes à vida humilde, e iria ser diplomada professora. A angústia e o desassossego de não ter como acompanhá-la na cerimônia, por não dispor de trajes apropriados, nem ele e nem a esposa, o afligia... Por pouco continha sua revolta, em sua condição paupérrima. Não conseguiu dar diploma aos meninos, eram pés rapados como ele, e como fora seu pai, semi analfabeto, a vida madrasta parecia cerceá-lo, estabelecendo diferenças, entre os bens nascidos e os quase sobreviventes.

Naquela tarde longínqua, inesquecível, início de suas atividades funerárias, um morto ilustre na cidade seria sepultado, ataúde elegante e decorado, terno impecável, sapatos lustrosos, abotoaduras na alva camisa, gravata combinando...Um desperdício a virar cinzas na sepultura.
Forte ainda, na entrada da meia idade, o rosto contraído em suas preocupações, a mente trabalhando febricitante; tanta riqueza a ser enterrada, apenas para a visitação de poucas horas, enquanto o pobre morre em fraldas de camisa, em caixão de terceira, parecendo papelão. Tecia, toscamente, suas teorias  subversivas, socialistas, sem nem perceber disso.

Fora encarregado de assentar os tijolos da gaveta, colocar o cimento, após as exéquias de praxe. As coroas de flores decoravam todo o local, enquanto os acompanhantes, feita as orações, começaram a se dispersar...
 Havia observado o corpo no velório, no fechar da tampa mortuária, matutando consigo mesmo, pois o defunto tinha o seu tamanho, talvez um pouco mais gordo, ou seria inchaço ?  Os sapatos possivelmente lhe serviriam...meu Deus, o que era aquilo ?  Sentia vergonha de si mesmo ao imaginar-se apropriando de trajes alheios, principalmente de um defunto. aquela sensação de impotência de não poder ver a filha em data única e especial, porém, funcionava como um peso na balança, fazendo-o ponderar, como se justificando pelos insanos pensamentos.  Aquilo tudo se perderia, viraria pó, junto com a putrefação natural da matéria, esta, bem antes.

A possibilidade de realizar seu sonho de acompanhar a filha dava-lhe o sustento para arriscar-se na empreitada, por mais macabro que parecesse aquele gesto. Aquele terno e gravata, a camisa e as abotoaduras, os sapatos lustrosos, sim, a filha sentiria orgulho dele.

Esperou pacientemente a retirada dos últimos acompanhantes; ciente de que estava só, trouxe o caixão para fora da gaveta, abriu a tampa e, cuidadosamente, passou a despir o falecido, cuidando para não sujar as roupas. Em poucos instantes o ilustre estava nu, como veio ao mundo, e como dele se despediria, a despeito de sua vontade. Retirou os sapatos, e também as meias, além de aproveitar igualmente a cueca, ajeitou as flores sobre o féretro para não deixá-lo totalmente exposto. e, respeitosamente, como se desculpasse, persignando-se com um sinal da cruz.

Embora não atinasse com o conceito, os fins justificando os meios, tal era o que ocorria com ele, a motivá-lo na usurpação dos pertences da ilustre figura. Soubessem os parentes e conhecidos, que o homenageado chegaria ao céu, ou ao inferno, nu em pelo, o coveiro seria preso, e isso o incomodava. Aquilo seria o seu segredo, jamais confidenciado com ninguém.

As roupas se ajustaram perfeitamente ao seu novo usuário, e, para conforto de Nemésio, até os sapatos de cromo alemão, lustrosos, coadjuvados nas suaves meias, calçaram bem em seus pés rachados na lida roceira.

Despistou as indagações domésticas, aquilo havia sido presente do edil, o mesmo que lhe recomendou para o emprego de coveiro. Arrumaram uma veste para a esposa, e participou, satisfeito, da formatura da filha, sob olhares curiosos dos presentes à celebração.

O hábito fino foi testemunha, então, de todos os momentos, raros, sim, mas marcantes de sua vida: casamento dos filhos, batizados dos netos, e atividades sociais de que participou como convidado, sempre atraindo olhares admirados. Trazia a veste impecável, só a usando naquelas situações especiais.

Com a velhice, aquilo que parecia superado, foi ganhando contornos nítidos, revividos, o atemorizando, fazendo-o sentir-se infeliz com o que fizera... Embora há muito tivesse deixado aquela cidade, sentia-se na obrigação de visitar o túmulo e prestar as suas homenagens ao doador involuntário das próprias roupas. Achava-se, com as visitas, mais conformado, e assim viajava em finados, sempre solitário, para a peregrinação, como se fosse uma devoção ao extinto benfeitor. Aquilo parecia uma promessa dele com o falecido, uma compensação pelo crime, um atenuante para a sua consciência a incomodá-lo. Não se lembrava da fisionomia do cadáver, evitou encará-lo enquanto o despia, isso não fazia diferença; bastava participar de qualquer velório, o morto parecia o mesmo, o acusando em seu silêncio sepulcral. Imaginava o pobre se apresentando no outro lado da vida, envergonhado, com sua nudez exposta...

Pior que tudo, não raro, assaltado em seus pensamentos, supunha o dia, inevitável a todos, em que o encontraria, ambos defuntos, e ele a cobrá-lo pelas roupas roubadas... Não tinha mais paz, sentia-se indigno.

Dizem que o criminoso sempre volta ao local do crime, verdade ou não, ali se encontrava o Nemésio, morto sobre a lápide que profanou um dia... Se encontrou com o defunto pelado é outra estória.

quinta-feira, 16 de julho de 2015



Meu 72º conto publicado em livro em NOSSOS CASOS, NOSSOS CAUSOS, antologia de contos, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, lançamento em 20 de setembro de 2015


Alegria ambulante




Parecia que o céu descia à terra, abençoando a todos seus filhos injuriados e desconsolados, assim era quando na pequena cidade anunciavam a chegada do circo. Pequeno vilarejo, onde o tempo tinha preguiça, o sol queimava a pele e os dias se arrastavam sempre iguais.
O anúncio da novidade enchia os corações, a molecada se agitava, todos corriam para ver as instalações, a lona remendada sendo erguida em terreno baldio e ermo, parecendo a solenidade de levantar a bandeira nacional, as acomodações do pessoal da trupe em tendas de pano, lembrando comboio cigano, de certa forma eram errantes, como nômades, hoje aqui, amanhã acolá.
Assim, durante as preparações, aquele público impaciente acompanhava cada movimento dos trabalhadores circenses, não os enxergando  como artistas mas trabalhadores, carpinteiros e eletricistas, sem as indumentárias de shows,  carregando coisas, limpando a área, testando os equipamentos.de som e de luzes. O mundo encantado dos pequenos acompanhantes se descortinava aos olhos de todos, do chão batido e limpo das ervas e matos, aprontava-se o picadeiro, de tábuas empilhadas montavam-se as arquibancadas, A cortina de estampa colorida divisava o palco da retaguarda, local onde os artistas ensaiavam suas participações,  o mágico preparava suas proezas, os equilibristas em trajes de roupas luminescentes, a bailarina dava os últimos retoques, o sonoplasta seguia os movimentos acompanhando com o fundo musical. Todo um conjunto de uma equipe coesa para dar ao espetáculo as cores necessárias, angariando aplausos e assovios, fabricando sonhos e encantos.
A calmaria da cidadela revolucionava-se, ganhava brilho. A azáfama dos habitantes alterava-se com o carro de som estridente anunciando as peripécias daquela noite, imperdível, sensacional, inacreditável espetáculo, atraindo a atenção até dos mais indiferentes. Sem nenhuma modéstia vendiam seu peixe, anunciando “o maior espetáculo de todos os tempos,” com a condescendência do público, mais interessado na diversão que na veracidade da propaganda, enganosa, com certeza. Malabaristas adquiriam nomes esdrúxulos, estrangeiros, para valorizarem a apresentação, como se fossem astros internacionais.  Seguiam um grupo de palhaços com cornetas em algazarras, jogando confetes, cumprimentando os passantes.



 De súbito, crianças obedientes, educadas, procurando merecer o direito de frequentarem as sessões, convencendo seus pais a garantirem os ingressos. O comportamento era exemplar, todos primorosos, temendo ficarem de fora da brincadeira, penalizados em castigos por qualquer imprudência. Ninguém ousava desafiar as ordens paternas e maternas, pareciam transformados, mesmo que não passavam despercebidos pelos adultos a razão de tanta “santidade” inesperada. Era um tempo de paz, um armistício temporário, uma dissimulação aceita com certa indulgência pelos pais, aliviados.  Até na escola o ambiente melhorava, ninguém queria ter uma anotação na caderneta, risco certo para a exclusão da regalia tão almejada. Assim, nenhum atraso na chegada às aulas, brigas no recreio nem pensar, lições na ponta da língua,  Respirava-se, estranhamente, naqueles corredores uma respeitosa convivência entre os alunos, sem correrias e gritos,  irreal em outras circunstâncias. A direção bendizia a chegada do evento festivo, reduzia suas tarefas de vigilância e disciplina. Os professores em sala sentiam a diferença, pareciam todos convertidos em anjos, prontos a atender a qualquer solicitação dos mestres. Viviam dias de impaciência, controlando-se para não serem excluídos, valia o sacrifício. Poderia ser observado, naquelas ocasiões, uma serena mudança nos estudantes, cordatos e atenciosos entre si e com seus preceptores. Pelo menos nos limites do educandário.
 Enfim, a noite da estreia. Lâmpadas coloridas ornando a entrada, canções entoadas em tons triunfais, prefixos musicais anunciando o início. Tudo conspirando para a magia daqueles momentos, onde pareciam que todos os adultos também eram crianças, divertindo-se com as peripécias, assustados com os lances mais ousados dos equilibristas andando destemidos em estendidas cordas, nas alturas da lona.  O suspense das facas incendiadas atingindo de perto seu alvo, a bonita bailarina. A mulher cortada ao meio, dentro do caixote, pelo habilidoso mágico, surgindo, logo depois, inteira, acenando. Risos soltos com as atrapalhadas dos engraçados palhaços.  Havia o número do globo da morte, onde dois motociclistas, perigosamente, rodavam em círculos, mantendo o público em silêncio e receio, até que terminassem, recolhendo o reconhecimento em calorosos aplausos. Para os que não conseguiam o dinheiro para os ingressos, sujeitavam-se, alguns, a pequenos serviços em troca de assistirem a imperdível sessão. Engraçado era ver esses voluntários engalanados em fantasias exercendo as funções de condutores do público na platéia, ou ainda como auxiliares na entrada. Havia verdadeira disputa para tais colocações, aquilo, afinal, garantia a franquia para todos os dias, mediante o serviço. Mesmo os que conseguiam o suficiente para comprarem os ingressos, com disciplinadas atitudes e impecáveis condutas, não tinham para todas as sessões. Fazia a diferença, e nisso ganhava deles os escolhidos como trabalhadores eventuais, apesar do constrangimento das vestes berrantes e estapafúrdias, parecendo parte da comitiva. Mesmo a estes convertidos em trabalhadores mirins, tinham que ter a aquiescência  dos responsáveis para frequentarem desacompanhados dos pais, sujeitando-se aos rigores de um comportamento aceitável em casa e na escola.



 Lá se acotovelavam os pequenos pendurados nas arquibancadas, tábuas rangentes, deslumbrados com os trapezistas, rindo das palhaçadas, curtindo as manjadas mágicas do astuto em fraque e cartola, os olhares cobiçosos dos mais velhos nas plásticas das dançarinas em seus maiôs ousados. Passavam em roupas coloridas os vendedores de pipocas, puxa-puxas, maças do amor, algodão doce, amendoins e refrigerantes, sendo chamados em cada canto daquela arena tumultuada.
Passadas algumas sessões, perdendo o inédito das apresentações, o público, aos poucos, refluía. Com o passar da euforia, o novo fica chato e velho. Chegava a hora de descer a lona, arrumar os trastes nas carrocerias dos caminhões, buscar novo público. Os alaridos do início apenas na assistência apática dos meninos vendo desmontar seus sonhos e magias. Uma consternação percebida nos semblantes entristecidos.
Em casa, desestimulados, voltavam as intolerâncias e desobediências, a cobrança pelas lições não realizadas, os horários não cumpridos, tudo retornava a ser como antes. Nos corredores da escola, gritos e xingos, nos recreios desentendimentos e repreensões na diretoria. Novamente as notas de reprimendas nos cadernos estudantis, a trégua de paz ruía. Uma subentendida rebeldia se instalava, como a reivindicarem mais ânimos para aquelas incipientes vidas.
Com a despedida do Circo, tudo voltava ao normal, e o tédio visitava os juvenis corações, sedentos de emoções e novidades, até a próxima atração...


  


Publicado no BLOG DO LIMA COELHO - Contos, Crônicas, Poesias e Artigos Literários - São Luiz/MA, ( + de 7 milhões de acessos na internet), ilustrações de MEL ALECRIM, poetisa e contista.



terça-feira, 16 de junho de 2015

71º conto publicado em livro na Antologia Seleta de Contos de Autores Brasileiros. Lançamento em 20/08/2015

Desatinos meninos



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- Quem for mais homem, cuspa aqui!

Havia sempre um voluntário para atiçar os ânimos dos desafetos. Interpunha uma mão entre os contendores e a retirava rápido a tempo de ambos cuspirem um na fuça do outro. Não havia jeito, cuspe na cara era pior que apanhar do inimigo, fugir nem pensar.
Sopapos dados e revidados. Dois pequenos, garninzés na rinha, atracados engalfinhados, rolando pelo chão.
A cara manchada de sangue e terra vermelha lamacenta. Por que chovera naquela manhã? A roupa um lixo só, barrenta. Como esconder os vestígios da façanha dos olhos vigilantes da mãe? Entregava-me a cogitações deprimentes, não adianta, não atino. Dizem que sou caso perdido...
Havia poucos dias estreara uma calça comprida (era luxo pois o costume eram calças curtas para os meninos), restos de um tecido de uma roupa de meu pai, mas era quase nova, impecável capricho da costureira. No mesmo dia, adentrando uma moita a cata de uma pipa a rasguei toda em espinhos unhas-de-gato. Apanhei sentido pela desventura...
De outra, despenquei-me de um pé de mamonas sobre a metade de uma garrafa, rasgo profundo na sola dos pés, injeções doloridas antitetânica. O rapaz da farmácia chegava de bicicleta e eu fazia pose para demonstrar coragem, aquele risinho tímido de quem estava apavorado. Foi uma série de seis, pior que o estrago dos cacos de vidro enterrados no pé direito.


Ou ainda a estupenda queda, também de uma árvore, em que coloquei a mão sobre uma taturana ouriçada, daquelas que largam fiapos espinhudos e queimam as mãos que incharam bastante...
Meti-me debaixo da casa (naquele tempo as casas eram de madeira e ficavam a uma certa altura do chão) para ver a minha cachorra dar cria, foi um espetáculo diferente onde sai carregado de pulgas...
Fato anedótico foi o meu ingresso no primeiro ano do antigo curso primário. Na divisão das turmas, um vizinho nosso, não querendo entrar em outra sala do segundo ano, permaneceu por alguns dias comigo no primeiro, sob minha ameaça de delatá-lo caso não fizesse as minhas lições, aquelas de fazer uma bolinha e uma perninha, lembrando a letra A. Como era mais velho, e já tinha passado por aquilo, as minhas tarefas eram genialmente apresentadas, levando minha mãe e irmã a me elogiarem animadas com o meu desempenho... Até que descobriram na escola o engodo e o meu caderno garrancho foi tido pelas duas como coisa de olho gordo de terceiros...





Quis por quis uma velha égua vesga, que mal andava e tinha o dorso rijo de magra, ali conheci os desprazeres de cavalgar ralando nádegas e virilhas que ardiam no banho com sabonete, onde sofria calado temendo as represálias maternas.
Também era um desastre nos assuntos de futebol. Quem não entende disso fica de fora de qualquer grupo. Eu participava quando a bola era minha, ai não tinham como me deixar de fora... Mas até nisso andaram me embrulhando, deixando-me no banco de reserva, diziam que era para não desperdiçar o talento...





Resolvi montar um pombal, aquelas casinhas para pombos, imaginava uma criação próspera, como se isso desse alguma coisa de valor. Comprei de um garoto mais velho um pombo que se alojava nos vãos do telhado da casa dele, mas o bicho não se acostumava em outro lugar, cada vez que voltava para a antiga morada eu pagava uma grana para o antigo dono me devolver... Negócio realmente próspero, para ele.




Também resolvi investir em criação de coelhos da índia, ficava vendo eles comendo a grama dentro de um antigo reservado para galinhas desativado. Acontece que os buracos permitiam que eles saíssem e retornassem, até serem descobertos pelos cães perdigueiros do vizinho, não restou nenhum...


  Tive uma gralha, que me fascinava pela sua beleza. Sua cor predominante era a azul, dependendo do sol ela parecia ter nuances coloridas nas asas, ficava namorando a minha nova aquisição, até resolver mudá-la de uma pequena gaiola para um espaço maior e ela fugiu... Ficou por ali por momentos, talvez acostumada com a ração, um ovo de galinha para bicar, adorava essa refeição, e tinha uma certa elegância ao bebericar furando a casca com o seu bico e levantando a cabeça para engolir gema e clara.




As minhas tratativas com as coisas espirituais também foram desastrosas.
Fiz o catecismo. No interior, naquela época, era costume, quase obrigação, como ser batizado. Aguentei firme no banco da casa paroquial.

 No dia da primeira comunhão engasguei-me no confessionário. O pároco, alemão austero, cabelo à escovinha, olhos argutos penetrantes, oculto por detrás da casinha de treliça. Aquele olhar parecia desconfiar de cada palavra balbuciada e trôpega. Afinal, por que deveria me confessar a um estranho? Falar de minhas traquinagens ou escondê-las? Entre uma decisão e outra encontrava os olhos claros de testa enrugada do padre parecendo uma interrogação, como a me inquirir em seu silêncio expressivo. Acima do confessionário a imagem de um anjo com uma enorme espada dominando um dragão, parecendo ameaçar-me caso mentisse... Suor nas têmporas, palavras engolidas e ditas com receio. Por que será que nos colocam desde criança o sentimento de culpa?


 Dezenas de orações por cada falta narrada, seriam, então, centenas...
Jamais tornei à experiência, trauma que me acompanha até os dias presentes. Com Deus falo eu, sem intermediários !
Aquele dia, o da primeira comunhão, ficou marcado por uma foto horrível. Após a cerimônia, dirigi-me a um fotógrafo e solicitei uma foto de lembrança, pedido de minha mãe. Não se conheciam máquinas fotográficas portáteis. Ficava-se em frente a uma imensa geringonça, onde o profissional cobria a cabeça com um pano preto e saía um flash que me fez ver estrelas.
As pernas juntas, finas, de calças curtas. Camisa branca e fechada no colarinho, cabelo com o corte americano bodinho ( era um corte em que tiravam todo o cabelo e deixavam um chumaço estranho quase na testa). Acompanhava o cenário eu segurando uma vela comprida com um laço amarrado nela, azul. A única utilidade da recordação, a vela, era a de ser acesa, em dias de trovoadas e raios, ocasião em que minha mãe estremecia e rezava baixinho à Santa Bárbara, protetora das chuvas e trovões, demonstrando imenso pavor.





Desgostei-me com as missas matinais domingueiras, e de todas as demais. Tinha que lustrar os sapatos e aturar a falação inaudível e repetitiva. Fraseado, às vezes, em latim, repetia como uma gravação um desatento améem !!!
Não posso dizer que tudo era chateação, seria injusto. Ali vi coisas fantásticas, sobrenaturais... Angélicas figuras, verdadeiros Querubins e Serafins, de carne e osso ( quem disse que anjos são assexuados não prestou a devida atenção...), cabelos escorridos ou cacheados, sob tênues véus, mãos postas em divina adoração, eu me apaixonava com aquelas criaturas, louras, morenas, mestiças... Lindas e ruborizadas na inocente troca de maliciosos e inconfessáveis olhares. Tempos depois soube que o nome disso é flerte, que bom era aquilo !
Desespero! Certa feita, na procissão do padroeiro ( Santo Antonio), a cidade ficava em festa e saiam acompanhando a imagem em filas indianas, segurando velas nas mãos, pela avenida principal da cidade. Ocorre que me distrai, como sempre, e não percebi a rápida parada e prossegui com a vela sobre o véu de uma beata que se achava em frente. Houve pânico e comentários maledicentes.
A culpa foi de uma Anja, verdadeira diva, paixão secreta, roubou-me a atenção e avancei no percurso desatento, quando o cortejo estava parado. Foram apenas três passos para me batizarem de piromaníaco.
Definitivamente abandonei a minha curta carreira de beato, sob os protestos injuriosos dos colegas carolas de catecismo. A eles revidava chamando-os de beija-mãos e cheira saco de padres.
O que me dava asco era a reverência de cumprimentar o sacerdote, metido como um urubu, numa batina preta, a mexer em sei-lá-o que (desconfio apenas) a agraciar-nos com os chamados santinhos, guardados nos bolsos largos, como oferendas de Deus, toda a vez que beijássemos suas suadas mãos. Ocorre que sob o sol escaldante daquelas tantas tardes de sol, a veste escura não reflete a luz, as partes íntimas do reverendo – tão humano como nós – deviam ficar sem ventilação, com todos os odores daí advindos... pobres penitentes, a minha vingança era di-vi-na!




  II – A MORTE

Quando soou a corneta em fúnebre melodia, o toque de silêncio, arrepiando a pele, todos em fila aguardando a marcha fúnebre. Foi o meu primeiro contato com a morte. Toda a escola reunida para acompanhar o cortejo até o cemitério da cidade, pela avenida central.
Uma colega de sala, no fim de semana, entrara com outras amigas em um rio e caiu em um fosso, não conseguiram salvá-la.
Estranho alguém estar rindo, brincando feliz, e depois inerte, cheia de hematomas, morta.
O desespero do pai, aos prantos, chamando a filha ao descer do caixão na cova... A terra atirada sobre o ataúde, tão terrível impressão.
O serviço de alto-falante noticiava as notas fúnebres. Quando ouvíamos o prefixo temido, parávamos para prestar atenção... O sisudo locutor dava a notícia do falecimento de sicrano ou beltrano com rápidas considerações sobre o mesmo. Naqueles breves instantes parecia que a cidadela parava só retornando após à sua modorrenta rotina.
Só mais tarde, bem mais, novamente a água trouxe-me nova amargura, desta vez do mar, onde um amigo foi levado, sem que o corpo jamais tenha sido localizado.

Com o passar dos anos, a morte visitou-me muitas vezes, carregando entes-queridos de saudosas lembranças...
Cidade pequena, uma avenida central de extremos opostos, não apenas geograficamente falando.
Em um pólo a igreja matriz sacrossanta e no outro oposto o prostíbulo na zona rural, com suas cortesãs que escandalizavam as beatas quando adentravam no comércio em charretes de aluguel...
Nas missas domingueiras, todos os pais honrados de famílias respeitadas penitenciavam-se, aos pés da Cruz, das levianas aventuras da semana no outro lado da cidade.
Certa manhã, um corpo foi achado. Era de um senhor conhecido que vivia de pequenos expedientes, a morte, então, já me parecia familiar...

* Ilustrações de Mel Alecrim poetisa/contista, publicado no Blog do Lima Coelho - Crônicas, Contos, Poesias e Artigos Literários - São Luiz/MA