sábado, 18 de janeiro de 2014





AS DAMAS DO CAIS




O cargueiro deixava o porto, levaria semanas para retornar, João avistou Ana acenando para ele, quis levantar a mão para responder, mas deteve-se.  Ela era apenas mais uma profissional do sexo, encontrada em cada porto, não pediu que viesse para despedir-se, embora a fitasse distanciando-se...

Não era homem dado a sentimentalismos, o que queria dela, obteve, de acordo com o combinado, nem mais nem menos. Sem dúvida tinha um porte belo, mulata de chamar a atenção, se tudo desse certo, poderiam se encontrar outras vezes, quando desembarcasse por ali. Não gostava de amarras ou compromissos, a vida o fez independente, da mãe ao concebê-lo, morta no parto, criado pelo pai, vaqueiro de uma fazenda.  Moravam em dois cômodos junto ao curral, onde se acostumara ao cheiro de estrume de vaca logo cedo, a cama um catre forrado com mantas de atrelar cavalos,  respirava o suor eqüestre nas narinas, achava bom.

Até os 8 anos, brincava com o filho do patrão. Criança não tem diferenças, corriam para ver o pai, seu herói, passar tangendo o gado, no estradão levantando poeiras. O som do berrante enchendo a imensidão, soando no trotar da manada. Ficavam pendurados na porteira, até perderem de vista os peões.   Os dias de alegrias e folguedos, ambos correndo pelo pomar, catando ovos de passarinhos, trepando em árvores frutíferas. A distinção dava-se nas refeições. Comia na cozinha, o amigo na copa. No final do dia, recolhia-se para banhar-se numa tina d’água e dormir junto ao gado, enquanto o outro ficava na casa grande, banheiro interno com água quente, de amplas varandas, iluminada por gerador de energia, propriedade que avistava de longe, sob a luz de lamparina a querosene. Assim se delineava no seu imaginário a distância entre eles. Com o tempo, o amigo foi estudar na cidade, colégio particular. Ele, sobre o lombo de jumento, ia para a escola rural.

Tudo acabou quando o pai sofreu um acidente de trabalho, não resistindo. Ficou definitivamente sozinho. Aprendera pouco naquela escolinha, o suficiente para ler e escrever, fazer as quatro operações de aritmética. Já era um jovem adulto, tendo que tomar suas decisões. Embora gostasse da vida na fazenda, tinha ambições, queria rodar o mundo, sempre ficava vendo a jardineira passar na estrada, lotada de lavradores que migravam em busca de novas oportunidades, entre uma safra e outra. Um dia, estava entre eles, tomando rumo incerto.
Quis conhecer o mar, e foi paixão instantânea. Tanto fez que foi admitido como grumete, para serviços de carregador de mercadorias e de limpeza do convés do navio. Em cada porto, um passeio, uma aventura, umamulher diferente. Corpo alugado aliviando angústias carentes, marinheiras euforias. Por módica retribuição era recebido, acolhido seus anseios e desejos, espaçados entre um porto e outro. Aplacava as fúrias, contidas nas ganas, nas luxúrias. A lembrança de  rostos, as águas levavam, como o lavar-se o corpo das impurezas após os atos. Nas águas viaja, à deriva de compromissos. Outras ânsias aplacadas, em cada parada, tantas que nem se lembrava, esquecidas, passadas como as marés, carregando suas carências e magoas.
  Ao adentrar o quarto, só queria o regalo das carícias, o saciar de suas necessidades, para tanto negociava o preço. O calor do corpo feminino, o perfume barato, demais não queria saber. De enredo sofrido e triste, bastavam as próprias experiências, o amadurecer prematuro, as lições marcadas no dia a dia. Dela cobrava o combinado, que ensaiasse um sorriso feliz na expressão marcada. Não falasse muito de si e de seus problemas, nada de reclamar de programa barato e da vida safada. Era um cliente, não um confidente de pai operário ou mãe doente. Não aprendera que seria fácil viver, vivia-se, assim eram as coisas colocadas no seu caminho. Nunca houve espaços para mimos, nem ombros para chorar o destino malfadado. O que ela tinha, ele queria, o corpo exposto, belo, sedutor deleite de todos. Havia os olhos quase infantis na cara de santa, aumentando o desejo. Ela significava um brinquedo, a diverti-lo na roda viva, num teatro de marionetes. Que manchasse a sua roupa melhor com seu batom vulgar, e tomasse de sua bebida, sem questionar seu paladar. Que viesse com suas carícias e o domasse, submissa, a sua fúria de besta reprimida...
Mas se detinha no convés a observá-la na distância, o motor da embarcação revolvendo as águas, lamacentas no início e depois azuis, emoções desencontradas. Ela tinha sido diferente, não mais uma. Por menos que quisesse admitir, não conseguia deixar de vê-la, se distanciando, parada, no porto, acenando.
 Com os olhos nublados, a lembrar-se saudoso do pai, tangendo o gado, e a esperá-lo chegar à noitinha, contando seus causos, parcas lembranças de afeto, órfão de mãe ao nascer, talvez isso não o tenha habilitado para o amor que ela propunha, sendo aquele mar entre eles  providencial para esquecê-la...
Quis confessar a ela, que fora especial, quase a esperança de ter alguém para esperá-lo e acalentá-lo como um ente querido e todo seu. mas, temendo enfrentar situações novas para si próprio, calou-se, fazendo-se de forte e indiferente.
 A figura da mulher diminuía na distância, dando a ele as sensações mais estranhas, como as estradas percorridas pelo pai levando a tropa, sempre partidas e despedidas...
A via se distanciando, consumida em lágrimas. Ele indo, impassível na postura, em convulsão interior se questionando, ela triste, sumindo no horizonte......

*TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA FEIRA DE GUADALAJARA (MÉXICO)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Publicado na Antologia de contos de Outro Mundo- CBJE-Rio de Janeiro-RJ


Entrevero

Como tudo aconteceu não sabia, apenas que foi coisa rápida, sangrenta. O quadro era aterrador, um monte de corpos espalhados, chacinados, uma carnificina. As balas vararam as carnes e o sangue escorria pelas paredes, tingindo de vermelho o barro rebocado. Apenas os olhos tinham alguma mobilidade, dando conta do que presenciava, a mente flutuava, indo e vindo, em lembranças buscando lucidez  aos fatos inesperados vividos ali.
Fora visitar o primo, morador em uma comunidade na periferia de São Paulo, almoçariam naquele domingo de sol, depois da pelada que combinaram, na casa da tia Marina, figura mais próxima da falecida mãe. Morador de casa de cômodos no centro da cidade, tomou cedo o ônibus para o seu destino, até ai concatenava bem os pensamentos, parecia lúcido. O mais, contudo, não conseguia atinar com segurança. Diante  si verificava uma cena inusitada, imóveis todos, olhares petrificados, a tia, debruçada sobre a máquina de costura, o óculos no chão, cabelos alvoroçados, uma nesga rubra, um filete escorria pelos cantos da boca, estava inerte, pálida  como uma boneca. Mulher guerreira, tinha a coluna levemente encurvada de tanto trabalhar costurando. O primo tinha os olhos arregalados, a boca semi aberta, numa expressão de pânico, a camisa era uma mancha de sangue que crescia,  havia ainda mais três corpos, além dele, estendidos na entrada do barraco, no corredor de frente e dentro da casa. Parece que foram surpreendidos pelo tiroteio sem que houvesse tempo de defesa ou de fuga. Por Deus, teriam o primo ou a tia se envolvidos em encrencas?,  Não  poderia ser, eram pessoas de bem, trabalhadores pacíficos, discretos, sabiam onde estavam pisando, não conseguia entender toda aquela barbaridade contra eles todos...  Aqueles homens descamisados, armados, atirando à esmo, com ferocidade, cuidando para não deixar testemunhas, pareciam enfurecidos, embrutecidos na sanha do massacre. A diferença entre os irracionais selvagens e eles, apenas a aparência, pois a condição humana já não era notada.


 O som ainda estava ligado, alto, o que deve ter encoberto o barulho dos tiros... Ou talvez o código da lei do silêncio que imperava ali, constrangendo os moradores, impossibilitasse qualquer ajuda.  Ninguém para os socorrer, talvez ainda estivessem vivos, poderiam avisar a polícia e trariam as ambulâncias, quis gritar mas a boca não obedecia seu comando, estava fria e imobilizada como se tivesse tomado uma anestesia geral, apenas a mente, confusa, buscava recompor os fatos para tentar elucidar as razões daquilo.
Em meio às alegrias do reencontro com entes queridos, na correria cotidiana da cidade grande, com plantões em vários finais de semana na construção civil, pois tinha que ganhar as horas extras proporcionadas no trabalho como servente de pedreiro. Cansativo era, mas precisava aproveitar a oportunidade de fazer alguma economia,  Ele, a tia e o primo vieram do interior do Estado, saindo da vida na agricultura, sujeita sempre às sazonalidades das colheitas, sujeitando-os à instabilidade e desemprego,para tentarem uma vida melhor na metrópole. Ele resolveu alugar um  quarto, em um cortiço próximo da obra, ganharia tempo e evitaria os transtornos diários com ônibus lotados. Quanto a eles se arrumaram  naquela comunidade, cada um vivia para si, sem se incomodar com os afazeres dos vizinhos, aquele era o pacto subentendido por todos para sobreviver naquele local. Ninguém reparar na vida alheia, cheia de mistérios e presepadas.
  De repente, um alívio, ouviu passos vindo na direção e vozes sussurradas, falando baixo, era a tal ajuda esperada. Pensou entender a demora, talvez por precaução, mas agora seriam resgatados, talvez houvesse alguma chance de vida. Novamente quis se mexer, em vão, não tinha o comando de seu próprio corpo.
Uma mulher e um homem chegaram, pulando sobre os corpos, pareciam não estarem assustados com o que viam, nenhuma expressão de surpresa... Adentraram o barraco e começaram a revirar coisas, levaram o som, a televisão portátil, algumas roupas...Estavam saqueando o pouco que encontravam. Apenas um sinal de certa consideração com a velha tia, a mulher mencionando que ela não merecia tal sorte, por ser uma trabalhadora, na máquina de costura até altas horas da noite... Mas que levaria a máquina dela também, embora não soubesse costurar, devia valer algum dinheiro, voltaria para buscar rápido, afinal, se não levasse, logo mais outros fariam a limpa geral. O parceiro dela também voltaria para levar o fogão e o botijão de gaz, saíram afoitos com a recompensa e nem se deram ao cuidado de verificarem que ele estava vivo...
O silêncio, depois do roubo do som, era ainda mais incômodo, as moscas varejeiras circulavam em volta do sangue batido, entrando pelas bocas abertas, ouvidos e narinas. Davam enjôos aquelas cenas e o cheiro empesteando o local de sangue coagulado. Parecia um açougue humano. Novamente tentou se mover, dizer que ainda estava consciente, mas sentia-se enjaulado em um escafandro de ferro, o corpo não obedecia sua vontade e os gritos de socorro ficavam apenas nas intenções.
Cada qual que aparecia, chegando furtivos, cuidadosos como ratos, levavam uma coisa, em pouco tempo era como se o barraco estivesse desocupado, que os moradores tivessem mudado. Os corpos fuçados nos bolsos em busca de dinheiro, tiraram o relógio do Pedro e um brinco da Joana, a namorada dele. Abriram a sua carteira, só tinha uns trocos, já havia contribuído com as despesas do almoço e da cerveja, restava pouca coisa, além do cartão de bilhete da condução.
Não entendia porque não chamavam a polícia, ainda que fosse uma denúncia anônima, até que apurou os ouvidos e passou a entender as razões:
- Vamos tirar o que der, depois a polícia vêm buscar os corpos. A turma do Dedé da favela vai justiçar os camaradas pelo engano. Erraram de família, a que estavam procurando, avisadas por alguém, caíram no mundo na madrugada, os coiós, zoados pela farinha, entraram atirando e mataram esse povo inocente, que nem devem saber porque morreram... A disputa agora, entre os moradores, será pela posse do barraco.


 Bem mais tarde, já noitinha, sirenes denunciavam a chegada do rabecão, e os corpos foram ensacados em capas pretas, de plástico duro, e colocados dentro da carroceria fechada, como se fossem mercadorias. Só então o entorpecimento total da lucidez, denunciando o fim.
O policial, entediado com aquela rotina, fumando um cigarro, comentou com o parceiro: vivem e morrem como animais...


* PUBLICADO NO BLOG DO LIMA COELHO- CONTOS, CRÔNICAS, POESIAS E ARTIGOS LITERÁRIOS - SÃO LUIZ / MA ( + de 7 milhões de acessos na internet), ILUSTRAÇÕES DE MEL ALECRIM, poetisa e contista.