quarta-feira, 30 de março de 2011

HUMANOS DIVINOS

oscilamos amor e dor
intrínsecos, inseparáveis,
dosados companheiros


nas delicadas pétalas
aveludadas, macias,
espinhos nos ramos


nos olhares apaixonados
dos eternos enamorados
exigências, impertinências


direitos e deveres
dias de sol e escuros
alegrias e tristezas


belezas e maldades
epopéias da trajetória
de humanos divinos...

terça-feira, 29 de março de 2011

A DOR DA AUSÊNCIA

na ausência 
a dor presente
presença imaginada
de alguém lembrado

gestos e passos
nítidos, percebidos,
poeira dos tempos
momentos passados

parece existir
vivas lembranças 

presença invisível
percebida sem ver

se ressente e dói
na procura vã
lembrada imagem
de alguém distante....

segunda-feira, 28 de março de 2011

GRITOS NA NOITE ( CONTO )


Quando o silêncio da noite vencia os últimos alaridos dos notívagos, os mais recalcitrantes ao sono entregavam-se ao torpor do cansaço, fechando livros, apagando seus televisores, desligando computadores, aprontando-se para o sono, dando por terminadas as atividades de um dia. Luzes se apagavam, imperando absoluta mudez, como se reservando o sossego no descanso dos mortais. Ao longe, ainda vestígios de alguns carros, o vago ladrar de um cão de distante casario, de resto o manto noturno acolhedor descerrava as últimas resistências dos sonâmbulos.

 Reinando a paz no condomínio, até que impertinentes gritos, das proximidades, da rua,  interrompem a calma, na malemolência dos corpos pesados na sonolência o atrevimento da quebra do descanso, voltando-se aturdidos e acabrunhados, ainda refazendo-se da inusitada perturbação, entre acordados e sonados.
 Os sons em berros chegam indistintos, não era pesadelo, ouvia-se nitidamente. Sim, gritos intermitentes, angustiados, faziam-se ouvir em inaudíveis clamores de socorro. Quebrando a calma, no meio da noite mansa, arrepios gelavam as almas. O sono em abalo brusco, momentos de apreensão, luzes furtivas se acendem, ocultos sob cortinas, olhos curiosos  vasculham a origem daqueles gritos, querendo perscrutarem de onde,sem se exporem ou demonstrarem-se aos demais. De onde viriam aqueles barulhos intrusos e ousados, aviltando o sossego?
Nenhum morador aventura-se a abrir janelas, escondendo-se sob os mantos das cortinas.Em cada expressão o estupefato da interrupção do justo recolhimento, vidas atribuladas, cada qual com sua jornada ao amanhecer a serem cumpridas. Silêncios questionadores, lamúrias repetidas, em pausas angustiadas, apelos constrangedores, azos a especulações tenebrosas, espantando e despertando a todos, que mantinham-se, contudo, encarcerados em suas paredes, ocultos sob cortinas, no quebra luzes de abajures.
Ninguém atrevia-se a uma atitude, apenas espectadores daquelas manifestações estranhas, sons de reclamos angustiados de alguém sendo supliciado. Ligar para a polícia, àquelas horas e ter que se identificar, parecia muito a qualquer daqueles observadores furtivos. Atitudes de medos, encurralados em si mesmos, como vendo alguém da coletividade sendo alcançado por um predador, certo alívio de se saber a salvo e protegido, a si e aos seus, quanto aos demais, Deus que cuide de todos.
 Claro estava que ouviam os reclamos, mas deles não tomavam parte, restando a cada qual seus problemas, o mais que percebiam era o despertar inusitado, incomodados. De onde viriam os lamentos secos, sofridos, angustiados, lentos em insistentes tormentos ? Paralisados em seus cantos, atocaiados, medrosos, ninguém se atrevendo a por as caras de fora, a tomar providências, como se o imprevisto fosse materializar-se a qualquer momento dentro de cada apartamento, fazendo deles vítimas daquele enredo tétrico...
  A cidade grande,  de todos e de ninguém, palco de mistérios, rodeada de imprevistos, casos melindrosos, estórias escabrosas, mortes horripilantes, assaltos e assassinatos... Ocultos atrás daquelas paredes, sitiados em si mesmos, como se temessem ser descobertos por um perigo iminente, na paranóia coletiva de sentirem-se acuados. Sem perceberem pisavam com cuidado, como se não querendo denunciar sua própria presença, assistiam ou buscavam ver o que se sucedia, aterrados e impotentes, suores frios nas têmporas.
 No avançar das horas, superados os sustos momentâneos, embora existentes ainda os lancinantes lamentos, todos buscam o conforto de suas fronteiras de cimento, refúgio no aconchego de seus aposentos, no calor de seus leitos, e desconhecem o que se passa no exterior, algo aliviados de não ser consigo mesmo ou com os seu mais próximos... Aquilo que vinha de fora não lhes pertencia, um outro mundo, outras vidas e realidades. No amanhecer mais um caso , uma nota de jornal na crônica da polícia.
 Passado o susto, o pavor da gritaria estridente já não assusta, são ecos presentes e distantes, recuam cômodos, inúteis ecoam os pedidos de socorro, retraem-se todos de incômodos, acostumados já com a rotina dos sinistros, acautelando-se para não se envolverem. Nada sinaliza que os tormentos alheios tenham cessados, as luzes se apagam indiferentes, cortinas se fecham sonolentas, inúteis os apelos exteriores, surdos aos apelos clementes, como se oriundos de uma ficção, um filme de aventuras que se desliga no controle remoto da TV,  coisas de um outro mundo...

*texto selecionado para figurar na Antologia Crônicas da Cidade, editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição abril/2011

domingo, 27 de março de 2011

PRAZER INOCENTE

despidas as roupas
entregue o corpo nu
 ao calor da tarde
cortinas esvoaçantes
frescores na intimidade
o gozo
da liberdade na nudez
beijada
na carícia do vento
tesos rijos seios 
arrepios
de prazeres inocentes...

sexta-feira, 25 de março de 2011

ALÉM DOS TEMPOS...





















quero buscá-la, e ser buscado por ela,
no fenecer dos viços dos corpos efêmeros,
na tez hoje bela e suave,
no inverno vindouro, 
marcas indeléveis do tempo implacável
nos vincos das faces, cãs dos cabelos e olhos opacos

e sempre encontrá-la a minha espera
no tatear de meus dedos, sob as cobertas,
e sentir seu hálito e lábios enrugados que sejam
e saciar os desejos juvenis envelhecidos

e nas visitas que nos fizermos,
seja eu o visitado ou ela,
das cinzas na morada derradeira
nesses encontros íntimos de saudades
exalemos a beleza das flores ofertadas
passos companheiros nesta jornada
como amigos e amantes eternos...

*SELECIONADA PARA FIGURAR NA 77° ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS, EDITORA CBJE, da CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, RIO DE JANEIRO/RJ, EDIÇÃO ABRIL DE 2011.

segunda-feira, 21 de março de 2011

SEM SOL

ausência notada
sem fulgor
na luz cinzenta


manhãs sem viços
tardes insossas
noites cansadas


cores descoloridas
pálidas, esmaecidas,
finadas e murchas


sem encanto,
acalanto,
nem calor, nem vida...

sexta-feira, 18 de março de 2011

ROTINA

Fresco vento ameno
Me visita na manhã
Lembra-me que vivo


Sensação de recomeço
Atropelo de cada dia
Monotonias


Renovo-me como trocar de roupas
Amassadas e suadas pelo dia anterior
Recapitulando rotinas


Assim monto, mentalmente, a agenda
A preencher cada espaço do calendário
Renovando esperanças, como ânimos...

segunda-feira, 14 de março de 2011

AS ILUSÕES DO TEMPO















 
sonhamos ontem com o hoje
ei-lo, agora, atual, vivo,
acalentado no amanhã

postergando soluções
situações evadidas
decisões proteladas

o futuro inatingível
mágico, esperançoso,
antídotos nas rotinas ofuscadas

nossos delírios, ilusões,
sonhos e devaneios,
sempre horizontes distantes

arrimos na caminhada presente
tecidas esperanças vindouras
os anseios no infinito além...



**Selecionada para figurar na 76° Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição abril 2011

HUMANO AMOR
















quando a destronei de heroina
senti fraquezas em suas forças
a desnudei de impenetrável

enxerguei através de seus receios
suas doridas lágrimas humanas
quão presente era nos seus medos

e feito gente e não miragem
cultos falsos à imagem
percebi o quanto a amava...


**Selecionada para figurar na antologia Os Mais Belos Poemas de Amor, editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro/RJ, edição abril 2011

domingo, 13 de março de 2011

AUSENTES PRESENTES ( CONTO )




No silencio daquela álgida tarde, ares leves do outono, ao longe o trinar de pássaros, sonoros em espaçados cantos, nas mãos um pequeno ramalhete de rosas brancas. Passos cuidadosos, como buscando alguma coisa entre plantas na grama verdejante do descampado, naquelas alamedas solitárias, bem cuidadas, verdadeiro jardim acolhedor.


Seguia só e alheia, a mente em outro universo,como se tratasse de uma visita, buscando reminiscências, imersa em si e nas saudades. Os olhos vasculham lápides rentes ao chão, esmaecidas letras douradas, placas numeradas, registros na pedra de nomes sepultados naquela campa, nas gavetas de cimento, compartimentos em que repousavam os restos mortais de vários entes queridos. Depósito cuidado, despojos respeitosos, no endereço do implacável destino...

Frente ao local procurado, a cabeça pendida para o solo, como se murmurasse um choro seco, angustiado, num meditar e falar com os presentes na memória e ausentes na matéria... Viagem em espirais, um retrocesso no relógio do tempo, cenas de ontem trazidas no presente...

Cada nome balbuciado, imagens ressurgidas, vivas, personagens revividas, instantes mágicos, minudências tão íntimas, memórias caras, uma expressão de sorriso, um cantar manso na cantiga de rodas, a infância trazida do âmago, acolhida no colo materno sob os severos mas ternos e protetores olhares paternos... Braços que parecem osculá-la no afeto relembrado, um conforto nas saudades sofridas, momentos de pessoal reconhecimento, busca do alento para minimizar os espinhos da distância física...

Quando os sons surgidos, ventos nas janelas, trovões temporais, corria buscar abrigo junto aos pais e avós, na placidez da segurança que a envolvia. E nos chuviscos do verão, saltitando no asfalto, mormaço refrescado, terra seca, molhada, frescores evolados, águas de enxurradas, canções em cascatas, ruídos das matas,relembrava estórias, com suaves melodias, no regaço e nos conselhos e cuidados de olhares dos entes que se foram...

Crescera e aprendera a superar dores das despedidas, mas havia momentos em que necessitava aninhar-se nos colos e recobrar os ânimos desfalecidos nas desventuras do caminho, na solidão que a visitava e requeria voltar, mesmo que em pensamentos, ao encontro daqueles queridos Seres, que a antecederam na partida.

Ei-la que retorna aos braços amados, não no campanário desolador, solitário, mas nas entreabertas portas do insondável regresso ao passado, só concebíveis nos arquivos da memória, ressuscitada e plasmando um cenário de afetos e enlevos, uma verdadeira volta no tempo e espaço...

Momentos únicos, consoladores, rompendo as barreiras entre dimensões, na viva impressão do reencontro entre seres que se imantam além das fronteiras das existências

O bálsamo daqueles instantes, impregnando novas forças na caminhada, recolhendo lágrimas de desassossego e trazendo alívios e esperanças de futuro reencontro. Correm livres, mas serenas, molhando em êxtase o semblante desanuviado, como uma oração sublimada em cântigos de louvor à vida...

Queridas imagens materializadas na emoção daqueles recônditos momentos íntimos, onde a morte não parece o fim de tudo, e as máscaras frias e pálidas dos que se vão, ganhavam cores e ressuscitavam animadas, como outrora, no convivio prazeroso de confraternização de espíritos afins

Não mais triste, melancólica, entregue às reminiscências funestas, mas rediviva para prosseguir na jornada, enquanto não chegasse a hora para a qual todos seremos chamados

Em passos aliviados, distanciando, dores amainadas no conforto da fé, crendo na distância temporária de seus antepassados, revigorada naquele encontro imaginário e tão necessário, como quem precisava muito desabafar mágoas das saudades cruciantes.

As flores depositadas nos vasos que adornam aquele recinto, futura morada, certa, muda, fria, no falecer das vitalidades, das ilusões em seu epílogo...


TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CONTOS DA SEXTA FEIRA TREZE, EDIÇÃO ABRIL 2011, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, RIO DE JANEIRO/RJ



quarta-feira, 9 de março de 2011

I M O R T A L I D A D E ( CONTO )







Acácio tinha uma conversa agradável, embora apreciasse cervejas, nunca foi inconveniente em seus raros excessos, não fazia o gênero do bêbado insuportável. Sempre discreto, cuidando com o dizer correto e bem soletrado das palavras, com um vocabulário acima da média, nunca dizia gírias, renegava o chulo e o vulgar, sem ser, contudo, esnobe ou um pernóstico metido a intelectual. Naquele dia, todavia, dissertava de forma reflexiva, parecendo, por vezes, que não tinha interlocutores, e se encontrasse sozinho, falando consigo mesmo.



- O que é a imortalidade ? Levantou o copo e o colocou sobre a mesinha, sem beber, absorto em sua própria fala. Saiu-se com essa pergunta, imprópria, diga-se, para o ambiente festivo das festas carnavalescas, que tomava as ruas adjacentes, com suas balbúrdias e as marchinhas de carnaval envolvendo a todos, quisessem ou não. Trazia um tema filosófico, existencialista, para o seio da conversa que se pretendia leve, de acordo com o ambiente.


-Todos seremos imortalizados, por momentos que sejam, seremos lembrados quando de nós nada mais existir que cinzas... ( continuava na sua fala, repito, como se não estivéssemos ali, ou seja, eu não estivesse presente)


- Não estou certo ? ( parecia, por fim, dar-se conta que não estava só)


Lembrar-se-ão de nós ( adorava o uso do pronome na forma de mesóclise), seja num repente, numa fugaz lembrança...qualquer detalhe que nos particularize, então seremos ressuscitados naqueles fugidios instantes, mesmo que somente nas lembranças de alguns contemporâneos retardários no tempo...

- Entraremos na conversa qual fantasmas ressurgidos, chamados às pressas, e, tal qual chegamos, inusitados, de volta retornaremos para o ostracismo da inexistência, assim que findar o assunto. Voltaremos ao nada, até que sejamos relembrados, possivelmente por atos menores, visto não sermos celebridades científicas, artistas, políticos ou outros que, para o bem ou mal, marcaram suas pegadas... De nós, talvez se lembrem, de fatos corriqueiros, assim “lembrou-me fulano” que sempre dizia isso, ou a forma de agirmos, de nos expressarmos, de andarmos, pormenores retirados das lembranças de algum nostálgico que nos conheceu...

- Não estou certo ? Você está tão calado... ( mas continuava falando sozinho, parecendo que a presença de mais alguém fosse apenas um detalhe, um pretexto para suas divagações existencialistas)


Não podia atinar o que o levava a navegar tão abstraído naquele tema inadequado para o momento, quando o que pretendíamos era apreciar o movimento feminino dos blocos que desfilavam pelas ruas próximas.


Não pretendia interrompê-lo, pois estava compenetrado em suas teorias sobre a vida humana, pós morte. Eu o ouvia atento, refrescando os lábios, com a cerveja espumante e gelada, convidativa naquele início de noite de verão, acompanhado de amendoins limpos e salgados, como tira gosto. Ocupava-me a mastigar e a ouvi-lo, pacientemente, pois não era um sujeito vulgar a discorrer sobre asneiras, antes, um leitor contumaz, bem informado, com assuntos embasados e interessantes. Aquele tema era profundo, não diria, contudo, oportuno para o momento, mas...

- Nada mais seremos que reles lembranças, ofuscadas, vagas, esmaecidas nas memórias de alguns...


Na tarefa de mastigar os grãos oleaginosos, percebi certa amargura, de leve tristeza naquelas entonações, parecia um falar distante, profético e também poético, dramatizados involuntariamente nas entonações da voz. Parecia que não me cederia apartes, envolto em suas elucubrações, aparentando falar para um público invisível aos meus olhos. Temia ser indelicado, embora não houvesse cerimônias entre nós, amigos de tantos anos, apenas que a narrativa, por séria, não merecia ser contrariada ou alterada em seu rumo... Ficava a devanear, enquanto o observava em suas digressões filosóficas e tristes.

- Ei, vai ficar falando de seu amigo falecido até quando ?


( amistosamente, Paulo, sacudia-me os ombros, tirando-me de minhas reminiscências)


- Estamos tomando a nossa cerveja, veja o que você está perdendo, olha o mulherio, meu caro !


Acácio tinha razão, seríamos imortalizados por instantes, nas lembranças dos amigos retardatários... (sorvia uns goles, experimentando amarga nostalgia...)




*TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA OUTRA VIDA, EDITORA CBJE, da CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, RIO DE JANEIRO/RJ, EDIÇÃO DE ABRIL DE 2011.

sexta-feira, 4 de março de 2011

EFEITO COLATERAL ( CONTO )

De como podemos transformar sonhos em pesadelos, mel em fel.


A amargura estava estampada no semblante daquele homem, que, silenciosamente, deixava a casa e vagava pelas ruas, absorto em seu universo íntimo e angustiado.

Amaram-se, sim, não tinha dúvidas, mas apavorava-se a cada crise intempestiva de ciúmes, onde parecia que todo encanto visto na amada transformava-se em outra coisa, má, abjeta, horripilante... As discussões se amiudavam, já não eram esparsas e eventuais, controláveis, atingia as raias da intolerância... Qualquer pretexto era razão para o descontrole emocional, sentia-se vigiado pelo olhar severo, pelos mesmos olhos que o seduziram e agora aprisionavam.

A princípio reputava a um certo charme, de sentir-se querido, mas, com o tempo, asfixiava, precisava pisar em ovos para tratar de qualquer assunto, cuidando para não dar outros sentidos ou interpretações dúbias. As discussões acaloradas, intramuros, domésticas, começavam a ser tornar públicas, não importando hora e lugar. De natureza recatada, temia pelos possíveis escândalos.

Depois das crises, via na companheira alguém arrasada, implorando perdão pelos excessos, prometendo controlar-se. Compreensível, tolerava aquelas circunstâncias, acreditando serem passageiras. A ajuda terapêutica sugerida era vista com deboche ou menosprezo, não se reconhecia necessitada de qualquer apoio nesse sentido.

Na verdade não se via como errada. Dona de um gênio forte, reputava a uma certa “intuição” que não falha, ou seja, se houve exageros agora, por certo já estava pressentindo o pior para depois, sempre assim.


Melhor que ele se acautelasse com esses “pressentimentos”, não toleraria desvios de qualquer ordem, que não olhasse com malícia para nenhuma outra mulher, haveria de ver com quantos paus se faz uma canoa... Palavras ameaçadoras brotadas na boca tão beijada e desejada, parecendo de uma agressora inimiga.

Aos poucos, melindrado, cedendo sempre para evitar novas cenas deploráveis, passou a ser um homem antissocial e arredio nas relações pessoais e profissionais, refugiando-se no seu mundo. Em verdade, fechava-se em imaginárias paredes gradeadas, onde estava preso na aparente liberdade de ir e vir, era um exilado em si mesmo. Sua rotina, da casa para o trabalho, um autômato, sem vontade própria, abdicando de qualquer entretenimento pessoal que não incluísse a esposa, a quem evitava convidar por temer os imprevistos.

A vida social foi escasseando, sempre desculpas para não comparecer a qualquer evento, até deixar de ser convidado, pois sabiam que recusaria de antemão, então, para não constrangê-lo, os colegas o excluíam. Ninguém externava, mas estava implícito de que algo não ia bem com ele, sempre isolado em seu mundo.

A idéia de abandoná-la o apavorava, não se imaginava fora da convivência, o argumento de que se amavam pesava nesses momentos de decisão extremada, refreando atitudes de se separarem.Com os anos,carregava sobre os ombros o peso da vigilância, real ou imaginária, mas constante, mesmo na ausência dela. Como se estivesse vigiado o tempo todo, no proceder e no falar...aliás, percebeu-se falando baixo, arisco, olhando para os lados, como se murmurasse, com receios de ser ouvido.


A sujeição paulatina, a princípio para evitar confrontos desgastantes, depois como se consentisse com o martírio, fortalecia a algoz, cada vez mais ousada. Entre eles estabelecia-se uma neurótica relação de dominadora e dominado.


Falava como se suplicasse, com receios desmedidos dos destemperos da esposa. Aniquilava-se, abstraído de si, entregue às circunstâncias, passivo e atoleimado.


Contudo, a sanha de quem tem o temperamento dominador não tolera os parvos e apáticos .eternamente, talvez por ver sua presa já entregue ao seu domínio, nada mais tendo de prazer no jogo, mas isso são especulações filosóficas... Com o tempo, sentindo-se entediada, passou a menosprezá-lo, refletindo o próprio sentimento nutrido por ele mesmo com a estima aviltada. De ciúmes virou para o desrespeito absoluto, tratando-o como qualquer coisa, menos o homem que amou, ou julgava ter amado.

Da dominação total, surgia o descaso, como efeito colateral da posse doentia. Findava o relacionamento definitivamente. Morria qualquer atração dela por ele, que já não mais respeitava, julgando-o um pusilânime, covarde, palerma, que se submetia, passivamente, sem reações. A admiração ao outro é combustível para a atração, inexistindo de qualquer das partes, nasce a indiferença, irmã do desprezo.


“Homem tem que ser durão”, repetia o adágio popular. Quanto a ela, não suportava mais a convivência, afinal não fora com um frouxo que se consorciara, sentia-se enganada, com quem perdera uns bons anos de sua juventude, queria a separação incontinente. Impiedosa e sarcástica, alegava que ainda tinha muita coisa para viver e não morrer aos poucos ao lado dele... “Isto acabou, o defunto está insepulto, vamos enterrá-lo de vez !” Falava alto, referindo-se à falência da relação conjugal.


Andando em passos curtos, como se vagasse a mente em mil conjecturas, os olhos pareciam mortos, sentia-se sem rumo. De tanto ceder para que ela tomasse todas as decisões, perdeu-se em si, sem saber reagir ao rumo que as coisas tinham tomado, tampouco o que seria de sua vida sozinho.


Estava livre do domínio dela, como um pássaro cativo fora da gaiola, teria que reaprender a andar, como a ave liberta treinando as asas, para acostumar-se com a sua liberdade...




Publicado em livro na Antologia de contos COISAS do DESTINO, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, setembro de 2012

quinta-feira, 3 de março de 2011

E N T R E V E R O ( CONTO )

Como tudo aconteceu não sabia, apenas que foi coisa rápida, sangrenta. O quadro era aterrador, vários corpos espalhados, chacinados, uma carnificina. As balas vararam as carnes e o sangue escorria pelas paredes, tingindo de vermelho o barro rebocado. Apenas os olhos tinham alguma mobilidade, dando conta do que presenciava, a mente flutuava, indo e vindo, em lembranças buscando lucidez aos fatos inesperados vividos ali.

Fora visitar o primo, morador em uma comunidade na periferia de São Paulo, almoçariam naquele domingo de sol, depois da pelada que combinaram, na casa da tia Marina, figura mais próxima da falecida mãe. Morador de casa de cômodos no centro da cidade, tomou cedo o ônibus para o seu destino, até ai concatenava bem os pensamentos, parecia lúcido. O mais, contudo, não conseguia atinar com segurança. Diante si verificava uma cena inusitada, imóveis todos, olhares petrificados, a tia, debruçada sobre a máquina de costura, o óculos no chão, cabelos alvoroçados, uma nesga rubra, um filete escorria pelos cantos da boca, estava inerte, pálida como uma boneca. Mulher guerreira, tinha a coluna levemente encurvada de tanto trabalhar costurando. O primo tinha os olhos arregalados, a boca semi aberta, numa expressão de pânico, a camisa era uma mancha de sangue que crescia, havia ainda mais três corpos, além dele, estendidos na entrada do barraco, no corredor de frente e dentro da casa. Parece que foram surpreendidos pelo tiroteio sem que houvesse tempo de defesa ou de fuga. Por Deus, teriam o primo ou a tia se envolvidos em encrencas ?, Não poderia ser, eram pessoas de bem, trabalhadores pacíficos, discretos, sabiam onde estavam pisando, não conseguia entender toda aquela barbaridade contra eles todos... Aqueles homens descamisados, armados, atirando à esmo, com ferocidade, cuidando para não deixar testemunhas, pareciam enfurecidos, embrutecidos na sanha dos massacres. A diferença entre os irracionais selvagens e eles, apenas a aparência, pois a condição humana já não era notada.


O som ainda estava ligado, alto, o que deve ter encoberto o barulho dos tiros... Ou talvez o código da lei do silêncio que imperava ali, constrangendo os moradores, impossibilitasse qualquer ajuda. Ninguém para os socorrer, talvez ainda estivessem vivos, poderiam avisar a polícia e trariam as ambulâncias, quis gritar mas a boca não obedecia seu comando, estava fria e imobilizada como se tivesse tomado uma anestesia geral, apenas a mente, confusa, buscava recompor os fatos para tentar elucidar as razões daquilo.


Em meio às alegrias do reencontro com entes queridos, na correria cotidiana da cidade grande, com plantões em vários finais de semana na construção civil, pois tinha que ganhar as horas extras proporcionadas no trabalho como servente de pedreiro. Cansativo era, mas precisava aproveitar a oportunidade de fazer alguma economia, Ele, a tia e o primo vieram do nordeste tentar uma vida melhor. Ele resolveu alugar um quarto, em um cortiço próximo da obra, ganharia tempo e evitaria os transtornos diários com ônibus lotados. Quanto a eles se arrumaram naquela comunidade, cada um vivia para si, sem se incomodar com os afazeres dos vizinhos, aquele era o pacto subentendido por todos para sobreviver naquele local. Ninguém reparar na vida alheia, cheia de mistérios e presepadas.

De repente, um alívio, ouviu passos vindo na direção e vozes sussurradas, falando baixo, era a tal ajuda esperada. Pensou entender a demora, talvez por precaução, mas agora seriam resgatados, talvez houvesse alguma chance de vida. Novamente quis se mexer, em vão, não tinha o comando de seu próprio corpo.


Uma mulher e um homem chegaram, pulando sobre os corpos, pareciam não estarem assustados com o que viam, nenhuma expressão de surpresa... adentraram o barraco e começaram a revirar coisas, levaram o som, a televisão portátil, algumas roupas...estavam saqueando o pouco que encontravam. Apenas um sinal de certa consideração com a velha tia, a mulher mencionando que ela não merecia tal sorte, por ser uma trabalhadora, na máquina de costura até altas horas da noite... Mas que levaria a máquina dela também, embora não soubesse costurar, devia valer algum dinheiro, voltaria para buscar rápido, afinal, se não levasse, logo mais outros fariam a limpa geral. O parceiro dela também voltaria para levar o fogão e o botijão de gaz, saíram afoitos com a recompensa e nem se deram ao cuidado de verificarem que ele estava vivo...

O silêncio, depois do roubo do som, era ainda mais incômodo, as moscas varejeiras circulavam em volta do sangue batido, entrando pelas bocas abertas, ouvidos e narinas. Davam enjôos aquelas cenas e o cheiro empesteando o local de sangue coagulado. Parecia um açougue humano. Novamente tentou se mover, dizer que ainda estava consciente, mas sentia-se enjaulado em um escafandro de ferro, o corpo não obedecia sua vontade e os gritos de socorro ficavam apenas nas intenções.


Cada qual que aparecia, chegando furtivos, cuidadosos como ratos, levavam uma coisa, em pouco tempo era como se o barraco estivesse desocupado, que os moradores tivessem mudado. Os corpos fuçados nos bolsos em busca de dinheiro, tiraram o relógio do Pedro e um brinco da Joana, a namorada dele. Abriram a sua carteira, só tinha uns trocos, já havia contribuído com as despesas do almoço e da cerveja, restava pouca coisa, além do cartão de bilhete da condução.

Não entendia porque não chamavam a polícia, ainda que fosse uma denúncia anônima, até que apurou os ouvidos e passou a entender as razões:

- Vamos tirar o que der, depois a polícia vêm buscar os corpos. A turma do Dedé da favela vai justiçar os camaradas pelo engano. Erraram de família, a que estavam procurando, avisadas por alguém, caíram no mundo na madrugada, os coiós, zoados pela farinha, entraram atirando e mataram esse povo inocente, que nem devem saber porque morreram... A disputa agora, entre os moradores, será pela posse do barraco.

Bem mais tarde, já noitinha, sirenes denunciavam a chegada do rabecão, e os corpos foram ensacados em capas pretas, de plástico duro, e colocados dentro da carroceria fechada, como se fossem mercadorias. Só então o entorpecimento total da lucidez, denunciando o fim.


O policial, entediado com aquela rotina, fumando um cigarro, comentou com o parceiro: vivem e morrem como animais...