terça-feira, 24 de maio de 2011

ENCONTRO FINAL ( conto )




Passara por extenso corredor onde grupos de pessoas em silêncio ou falas contidas, agrupavam-se nas várias salas, com a mesma decoração de flores e crucifixos... Andava como um transeunte sem ter bem certo o endereço, olhando os números.

Na sala vazia o encontrara , rosto exangue, inerte, distante, apenas um espectro materializado, barba feita, cabelos penteados, olhos cerrados e mãos cruzadas sobre o ventre, dentro de um terno sisudo e uma gravata marrom clara. Serviço de especialista em tal mister triste, mas necessário.

Tiveram raras intimidades típicas de pai e  filho, mas se sentia naquele encontro o mais solitário dos viventes, ninguém o aguardava para uma conversa amena que fosse, compartilhar a solidariedade da despedida...Estava só e dava-se conta disso, irremediável... Naquela solidão, contudo, poderia se expor sem receios, sem a inconveniência de olhares estranhos, era um alívio, sem ter que aparentar cordialidades e de dar atenção e retribuir às condolências usuais.

Nos refolhos da memória revia cenas esparsas, diluídas no passado, que traziam momentos raros, mas já saudosos...Jamais se permitiria admitir pieguices mas os olhos úmidos registravam o íntimo ferido, dolorido.

Quantas vezes, menino, a mochila escolar nos ombros, a inútil espera que viesse para buscá-lo como tantos pais de seus colegas. O tempo sempre curto, a vida célere e premente, os negócios... O jogo de futebol  em que buscava pela sua presença na arquibancada, julgando ouvi-lo entre os entusiasmados pais de seus parceiros, mas...

Vida corrida, sempre ela a justificativa para os desenganos das esperas inúteis.

Naquele momento sabia que nunca mais se encontrariam, não precisaria mais esperá-lo inutilmente. Apesar de estranho, a possibilidade de aguardá-lo era um alento que agora findava de vez. Já não mais teria a sensação de ter alguém para esperar, ou para chamar de pai.

Curiosamente estavam juntos, sendo que ele não precisaria buscar justificativas para as freqüentes ausências. Estavam próximos na distância costumeira.

Restava o silêncio convidando as reminiscências, sem chances de evadir-se em outras ocupações, a mente retornava a abrir o livro das impressões de suas vidas.

Os olhos esperançosos do pai repousando sobre ele, enaltecendo seu orgulho do filho varão, procurando na fisionomia e gestos particularidades que o identificasse, como querendo imortalizar-se no descendente. Parecia ser o melhor dos homens então, quando o acarinhava, tumultuando seus cabelos lisos, arrancando suas gargalhadas infantis.  Ao levantá-lo sobre os ombros, perdendo sua carantonha sisuda e transformando-se ele também em uma criança, com seu pequeno às costas, na brincadeira de cavalinho. Era o melhor dos mundos, numa interação amorosa, inesquecível.

Com o tempo, as brincadeiras escassearam, cresceu e tornou-se adulto, o pai sempre o olhando orgulhoso, os olhos traindo doçuras, o beijo nas faces continuava o mesmo, apesar de ser já um homem feito. E como esperava por aquele afago !

Sempre aguardando pela atenção e carinho, postergado inúmeras vezes pelos incidentes da vida corrida, na pressa que atropela emoções, em irrecuperáveis perdas.

Agora, ao menos, teriam algumas horas inteiramente suas, apenas os dois, num mudo diálogo, na rememoração de suas existências em comum. Enfim, estariam juntos, imperturbáveis naquele colóquio absurdo, na mudez dos sentidos, revividos apenas nas lembranças.

O momento lhes pertencia, sem pressas ou interrupções alheias. Queria sorvê-lo com a saciedade das longas esperas, no reservado de duas almas que se amavam e se despediam.

E riram-se despreocupados, entreabriram portas de fases diversas, entrando e saindo, da maturidade à infância, indo e vindo, curtindo-se, sem nenhuma urgência a separá-los. Traziam ao momento atual as sensações do passado, renascidas e revividas.

De tão vivas lembranças, traiu-se rindo, num colóquio em que gozava a amizade daquele homem, um pouco herói, sem amarras e todo seu.

Viveram em mundos distintos, em conflitos de gerações, e o encontrava amigo, disposto a ouvi-lo, sem ter que esperá-lo, em eternas ansiedades.

Ali se misturavam, o ouvia enternecido, suas façanhas de menino, na adolescência seus amores e desamores, sua história de vida, numa intimidade partilhada, sem reservas. Abraçavam-se comovidos, como amigos, transeuntes de mesma jornada, esquecidas as diferenças etárias, de pontos de vista e diferenças de épocas e de valores.

Então percebia o quanto o amava, no tempo desperdiçado, na azáfama das rotinas. Naquela noite precisavam recuperar, repassar suas vidas, entregarem-se àquela amizade tão sincera.

Menino, sorria, enfim enlaçado pelo pai. Adulto, entendendo e perdoando as ausências paternas...


*TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE GRANDES CONTOS DE AUTORES NACIONAIS, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, EDIÇÃO JUNHO/2011   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.