sexta-feira, 1 de novembro de 2013




INCONFIDÊNCIAS DE  WALKÍRIA



Da janela de madeira, no encosto protegendo os braços por um pequeno travesseiro, ali passava todo o tempo de que dispunha, única mulher em casa, cuidava de manter a limpeza e demais afazeres, sobrando-lhe horas para devaneios e distrações. Vivia imersa em suas recordações, alternando épocas, viajando nas lembranças, interligando o passado e o presente.
No desenrodilhar de suas divagações saudosas, via-se jovem e enamorada do primeiro homem, questionava-se consigo mesma, ralhando se não fora exigente demais. Acabou por fazê-lo desistir devido ao gênio intransigente e autoritário. Não era de dar mão à palmatória, pessoa convicta e de opinião, não dada a meios termos. Desiludira o pretendente por picuinhas, embora sentisse a falta que ele deixou. Esta era a versão corrente, opiniões do velho pai e dos manos, que ela, por conveniência, adotara para si mesma. Os fatos, porém, eram outros, insuspeitos. Apesar dos hábitos conservadores de sua juventude, partiu dela a vontade de entregar-se ao jovem, no fundo achava um absurdo ter que ser desposada para só depois desfrutarem um do outro. Havia tantas exigências antes do casório, além do que, se percebesse que não se davam bem na intimidade, estariam atados a vida toda por um compromisso oficial, além do religioso, valores considerados por todos. Pensava com seus botões, tantas relações falsas, mantidas por preceitos sociais e hipócritas, isso não queria para ela, nunca.
 Ria-se consigo mesma da cara de espanto dele, diante a sua proposta inusitada, ao propor-lhe que fossem às vias de fato, ou seja, que iniciassem a vida sexual mesmo antes dos entretantos exigidos pela sociedade, e dele ter uma condição financeira mínima para se casarem.. Será que ele pensou que ela não fosse uma mulher “direita”?,Imagine desejar sexo, principalmente partindo a iniciativa dela,.aquilo fugia a qualquer propósito de uma moça respeitável e virgem. Geralmente cabia ao homem ser mais ousado e até atrevido com a namorada, avançando sinais. Osnamoros costumavam ser vigiados pelos pais ou irmãos mais velhos. Sentia-se enfastiada de namorar em olhares, apenas com o entrelaçar das mãos, a imaginação corria solta, suspirando-se. Levá-lo para a cama, portanto, foi um plano mirabolante.
 Daquela mesma janela, que dava para o seu quarto, convenceu-o a transpô-la, a avançadas horas, para dentro da sua alcova, antecipando as esperadas núpcias. Meio sem jeito, pego de surpresa o pobre, vermelho de vergonha parecendo um tomate nas bochechas alvas. Na verdade fora intimado, não restava alternativas. Ou a desejava e provava, ou acabariam com o noivado ali mesmo. Recusar seria por a prova sua virilidade, além de perdê-la, sabia bem o gênio da pretendida. Quis argumentar de que poderiam falar deles, e que devia respeito ao pai dela, viúvo, e aos seus três irmãos, mas não houve jeito.
 Acertado os detalhes, ela deixou a ampla janela de madeira entreaberta, sem o trinco, e o esperou nua sob a camisola de algodão. Por precaução deixou um azeite sobre o criado mudo, para lubrificarem-se, se houvessenecessidade. Cobriu com um pano grande a cama, não queria deixar vestígios, caso sangrasse. Ela mesmo encarregava-se de lavar as roupas, portanto sem riscos de descobrirem.
 Todos os familiares se recolhiam cedo, depois de desligarem o velho rádio de pilhas na sala, onde, após a ave Maria, ouviam as notícias..O pai e irmãos tinham uma sanfona, onde se dedicavam em incansáveis notas, passando de mão em mão entre eles. Em pouco apenas o ressonar de pessoas dormindo, por vezes um ronco mais forte, mas todos entregues aos leitos, depois da labuta na lavoura pelo dia todo.
 Ao ver-se dentro do quarto, ainda assustado por transpor a janela de forma clandestina, como um ladrão na madrugada, ela lembrava-se risonha e divertida da expressão de espanto dele. Possivelmente também sua primeira experiência com uma mulher, pelo susto e despreparo que apresentava naquela situação.
Teve que ser dela novamente a iniciativa, diante ao inerte companheiro, sem saber como agir. O temor de ser descoberto tirava-lhe a excitação, sem saber o que dizer, estava mudo e apatetado. As conversas, poucas, deveriam ser sussurradas aos ouvidos para não atrair a atenção dos demais da casa, entregues ao sono pesado.
O que faltava a ele sobrava a ela, afoita e desejosa de ser possuída. Vendo-o atônito, despiu a camisola e o beijou no pescoço, ajudando-o a desvencilhar das vestes. Aquele homem troncudo e ingênuo, parecendo antes um menino assustado, tinha o corpo malhado pelo sol do campo das colheitas. O viço dos ombros largos, que o recostar de seus seios nas costas os intumesceram de desejo, erguendo-lhe os mamilos. Arfava só com o encontro de sua pele macia na dele, áspera e máscula. Seu dorso nu a instigava a quebrar o gelo que o constrangimento do incipiente jovem demonstrava. Por fim, seduzido e entregue, rompia os limites da timidez e a embalava nos braços, sequioso de seu corpo alvo e bem delineado. Vulcões em erupções, amaram-se freneticamente, quedando-se extenuados. De quantas milionésimas vezes aquele filme voltava a ser exibido em suas lembranças, a reavivando nas saudades, deixando-a excitada? Suspirava querendo reter no presente o passado distante.
 Contudo, a sua ousadia era demais para ele, assustado com a sua voluntaridade, mesmo tendo sido o primeiro, os vestígios rubros no pano não deixavam dúvidas, não suportou a avidez da companheira, sempre o desejando mais e mais. Em nada lembrava a terna namorada, discreta, que conhecia. Aparecia diante a ele como uma devassa, ainda bem que ela se manifestou antes do matrimônio, jamais teria paz com aquele demônio de saias como esposa, com aquela sanha indomável com certeza o trairia. Escafedeu-se da cidadela, após mais alguns encontros arrebatadores e furtivos, emagrecera a olhos vistos. Seu sumiço deu-se a conta de que estivesse enfermo e fora buscar recursos médicos em outra cidade. O pai e os irmãos, por respeito à abandonada, evitavam o assunto, preocupados com a má sorte da desafortunada familiar.
Ela ,na cara de santa, sabendo bem o porquê da ausência, fazia-se de muda, triste, viúva de homem vivo desaparecido. Razão de silenciosa e solidária consternação dos familiares. Quando as saudades batiam mais forte, vinham as lembranças daquelas noites clandestinas e sensuais, sua iniciação sexual tão desejada. Ele poderia ter sumido, mas duvidava que não se lembrasse dela e de seus encontros, estreantes ambos nos inconfessáveis prazeres.
O segundo a cair na teia da aranha, ou no quarto da desconsolada solitária, foi um vendedor ambulante, vindo de outras plagas. Achegou-se cavalheiro para apresentar suas bugigangas, foi fisgado. Estavam a sós em casa, os demais demandavam cedo para a roça, ela ficava para cuidar dos afazeres domésticos e da comida.
 O homem de fala rápida, matreiro expositor de seus produtos, a quem foi servido um cafezinho. Observando a vizinhança, atenta, foi  fechada a janela e o  trinco na porta. Ela bem sabia seduzir, deixando a mostra as pernas, de forma proposital. Ele, respeitoso, fingiu não perceber, continuando com sua prosa comercial, repetitiva e chata. Não havia tempo a perder, quando deu por si ela estava lhe roçando os seios desnudos, expondo seu sorriso provocante e convidativo, não dando azos a nenhuma dúvida de suas libidinosas intenções.
 Homem experiente, entendeu rápido o jogo da sedução, a pegando pelos cabelos e mordendo de leve seu pescoço... De leve, recomendou ela, sem deixar marcas...
 Nus como vieram ao mundo, saciaram-se um do outro. Extasiados naquela tarde solarenta e prazerosa. Dele não aceitou nada, nem uma lembrancinha. O que o intrigou, afinal, pensava, elas sempre cobravam alguma coisa, um enfeite para o cabelo ou outro mimo de pequena monta, dos quais seu mostruário era repleto. Ele que não imaginasse que ela fosse uma rameira, vendendo-se por quinquilharias, não disse mas deixou claro, demonstrando desinteresse por sua mercadoria. Dele desejou o calor e ardor de seu sexo, nada além disso.
 Ficaram de se ver outras vezes, sempre no máximo sigilo. Nem se preocupou com aliança no dedo do conversador, não era ciumenta, só o quis por momentos. Nunca mais se viram.
 Lembrava-se do romance com o dentista, espremidos no consultório, alvoroçados, ela e o doutor, parecendo consulta ginecológica e não dentária. Aquele tratamento rendeu muitas idas, parecia que estava com os dentes em cacarecos, com duas sessões semanais, durante algum tempo. Até que ele se rendeu, revelando que não poderiam continuar, baixando a guarda nos brios de macho e confessando-se exaurido, comprometendo sua vida conjugal já estremecida. 
 Outros se seguiram, de preferência casados. Assim não abriam o bico com receio de se comprometerem. Quanto a ela, o interesse era por instantes fugazes, não se prendia a ninguém. Gostava de tê-los quando quisesse, embora, assustados com sua volúpia, após poucos encontros se ausentavam. Alguns, respeitosos e temerosos, ao vê-la na janela, cumprimentavam-na retirando o chapéu, cortesia dispensada a respeitáveis senhoras e senhoritas. Respondia as vênias com irônico e insinuante sorriso.
 Tinha  a certeza de que os varões a temiam na intimidade, debandavam com receio de não darem conta de sua tara insaciável. Era melhor assim, detinha um trunfo contra boatos maledicentes, sabia os limites de cada um com  quem se deitava, tinham-os à mão, por temerem esse segredo. A convicção do receio deles com aquela arma implacável, assim, tacitamente entendidos, a veneravam como uma respeitável dama.. 
 Para os demais que passavam, obsequiosos, podia ler em suas fisionomias os seus pensamentos, imaginando-a uma pobre infeliz que ficara para titia, solteirona. Havia ainda as casadas, a passarem orgulhosas exibindo seus pares ( muitos deles bastante conhecidos na intimidade das quatros paredes de seu quarto) a ostentarem o matrimônio como troféus.
 Quanto a ela, ria consigo mesma, sentia-se livre para usufruir  de todos,sem compromissos com  nenhum..

PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA CONTOS DE OUTONO, EDITORA CBJE - RIO DE JANEIRO-RJ, JUNHO DE 2013.





      Selecionado para figurar na Antologia de Contos SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ, editora CBJE, novembro de 2013. Publicado na Antologia de Contos FEIRA DE GUADALAJARA, MÉXICO, em 2011.

O PRIMEIRO AMOR

Como tudo começou não lembrava, apenas tinha a impressão de ter galgado o céu das fantasias e o inferno das inquietações, trocando suas singelas certezas por cruciantes dúvidas, sua paz pelo tumulto íntimo. Como uma revolução interior, doendo, machucando, transformando sua visão de vida, usos e costumes.


Morador de cidade pequena, com uma única grande avenida, com pistas duplas, unindo os extremos da cidadela, onde todos os moradores se encontravam várias vezes no dia, na praça, igreja, escola, cinema, mercado..

Não se percebeu quando seus olhos começaram a ver além das inocências infantis, povoando seu mundinho de uma estrela, fada, ou algo assim, fantástico. Estava apaixonado, sensação nova, estranha, inédita àquele coração infanto juvenil, incipiente nas artes só reservada aos adultos.

 Fato é que já sentia emoções não tão inocentes assim, despertava para desejos inconfessáveis, a puberdade se prenunciava, nos pelos pubianos, acnes no rosto, curiosidades masculinas despertando no garoto, metamorfose operando entre duas estações da existência.

A razão de suas atenções repousava em uma garota, uma amiga. Bastava avistá-la à distância para ter tremores, aquela figura feminina trazia-lhe desconhecidas emoções. Começou a se observar melhor, a cuidar de si mesmo, passando algum tempo ao espelho, lamentando suas espinhas predominantes no rosto imberbe. Escovava com mais atenção os dentes, asseio nos cabelos, capricho no penteado. Percebia-se desengonçado, queria ter uma certa postura, elegância na aparência. Preocupações que despontavam, incômodas, tirando-lhe o sossego.

Justo ele que nunca se incomodara muito consigo mesmo. Bastava chegar da escola, colocar o calção de elásticos, desnudo o dorso, descalço, a curtir a sua liberdade e a brincar com os amigos, sem preocupações como se apresentava, ou como o viam. O mundo era mais fácil, bastava viver a vida. Porém aquelas inquietações exigiam demais dele, reclamavam cuidados, descobria a vaidade  Parecia pirraça, justo ele que fazia troça dos almofadinhas sempre bem vestidos, ele tão pouco se cuidava, chegava com os cadernos, comia alguma coisa e saia. Tudo isso antes, agora, começava a se notar, questionando-se, cobrando-se com a sua aparência.

O desespero o visitava ao vê-la em companhia de outro menino, como padecia, torturava-se,  apresentava-se ao mais impertinente dos sentimentos, os ciúmes. Ao estabelecer diálogos com a amiga, amada secreta, forçava para disfarçar seus ímpetos e intenções, contidos na timidez ruborizando as faces. Será que ela desconfiava, saberia nestes momentos o mal que lhe fazia ?  Longe, queria vê-la, mas perto não sabia como agir. Diante a ela, a si se esquecia, esmerando em cortesias, fazendo de tudo para agradá-la, solícito e vassalo diante a sua rainha .Que suplício o martirizava, arrancou-lhe a inocência e a paz, a maldizia por isso, amando-a, numa confusão de sentimentos, atrapalhando-se.

 Vontade tinha de esquecê-la e retornar à  liberdade de seus calções de elásticos, das tardes inteiras para se distrair, caçando, nadando no pequeno rio, jogando bola. Lamentava restringir-se abandonando o seu viver pacato, moleque, descontraído, do andar destratado e cômodo. Contudo, algo sinalizava de que já não era o mesmo, aquelas infantis atividades pareciam coisas do passado.

Aquela pequena e querida criatura não desconfiava de suas dores, recalcando anônimo sentimento. Sentiria ela seus embaraços, na timidez muda, inconfessa angústia no peito a transbordar de fervor ?.  Queria fugir e ficar ao mesmo tempo, ali estar não estando.  Não sabia onde colocar as mãos, mal sustinha -se  nas pernas, o sorriso amarelo nos lábios e o olhar flamejante, pronto a denunciá-lo, contido em disfarçadas atitudes atrapalhadas.

 Não sabia no que ia dar aquela comoção experimentada, sofria como jamais pensara ser possível. Dor presente na alma, não diagnosticada no corpo, arrepios e tremores, suspiros inopinados, suores nas têmporas, parecia possuído por outro ser a importuná-lo. Se aquilo fosse o amor, antes não tê-lo conhecido, jamais.

Os seus olhos a perseguiam em todos os lugares. Na missa de domingo, no recreio da escola, no cinema, sentado em poltrona próxima sem coragem de se manifestar. Aquilo tudo chegava às raias da loucura. Certa feita, na procissão, onde todos tomavam parte, seja acompanhando o séquito religioso ou assistindo nas calçadas, ao vê-la, distraído, os olhos fixos, carregando uma vela acesa, quase ateou fogo no véu de uma filha de Maria, que ia a frente.

No anseio de encontrá-la, aprontava-se, mantendo lustrado o único par de sapatos, para o simples deleite de admirá-la, amando-a em silêncio.
Como aquilo era sofrido, tornava-se taciturno, arredio aos amigos, sem coragem de confessar o que sentia, até, talvez, por não saber exatamente o que acontecia consigo.

 Um dia mudou-se da cidade, acompanhando a família. A imagem da amada o perseguiu em saudades. Com o tempo, tantas convivências com o sexo oposto, lembranças boas e más, aprendizados, aventuras louváveis ou amargas, experiências, mas sempre retornando à lembrança aquele amor menino, tão meigo e tão dolorido...