sexta-feira, 18 de setembro de 2015




74º CONTO PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA EXPOLETRAS 2015, EDITORA CBJE - RIO DE JANEIRO-RJ, lançamento em 20/11/2015



SOMBRIOS TEMPOS 

Na impositiva soberania da legalidade maculada, sob suas ordens, a da lei, desvirtuada e permissível aos interesses dos golpistas, estranhamente jornais apresentavam lacunas em branco, ou despropositadas matérias como  receitas de culinárias em local de destaque. Posteriormente soube serem protestos sutis contra a inclemente censura existente, tolhendo redações de jornais quando as notícias estavam prontas para impressão. Em cada empresa jornalística, impressa, televisiva e radiofônica, havia enviados com a finalidade exclusiva de fazer uma varredura, um pente-fino, entre o que podia ou não ser publicado, eram tempos de ditadura.

O clima disseminava-se a todos os que conseguiam entender o que se passava. O falar silenciado e as palavras controladas, as rádios não tocavam com freqüência a nossa música, invadida por execuções em inglês, parecendo que não tínhamos mais nenhuma tradição musical. As poucas canções, ou eram inocentes a toda prova, ou traziam mensagens cifradas, fazendo com que compositores tivessem a manobra do uso excessivo de metáforas nem sempre inteligíveis aos ouvintes. Peças e filmes abortados, artistas perseguidos, autoexílios promovidos pelo ambiente asfixiante. As conversas em lugares públicos banalizavam somente as proezas futebolísticas, paixão de nossa gente, culminando com o primeiro título da Copa, em 1970.

Havia um cercear até, e principalmente, nas escolas, sobre determinados assuntos. Como estudar, em história, a então União Soviética, de forma sucinta, sem mencionar a sua economia, por exemplo. A bíblia passou a ser o estudo malfadado de Educação Moral e Cívica, parecendo religião aplicada. Incultiam-nos maravilhas verde amarelas, o País do futuro, da rodovia transamazônica, estrada que uniria o norte o nordeste brasileiros, em disciplinas desprovidas de senso crítico, como mantras da subserviência direcionada.

Autores nacionais preteridos, pérolas como Graciliano Ramos com sua escrita esmerada, não apenas na forma, mas no retratar as mazelas sociais de nosso povo, ele próprio vítima das atrocidades do Estado Novo getulista.

Os veículos ostentavam adesivos tendo a bandeira como protagonista, Brasil, Ame ou Deixe-o.  Nenhum comentário que transcendesse aquelas páginas, restritas àquele universo, passavam incólumes. Tomavam  não apenas a direção do País, mas os das mentes das gerações de jovens estudantes, o que dizer, então, dos demais setores da sociedade ?

Um texto escrito era lido, relido várias vezes, refletido, autocensurado, nada que transpirasse os sussurros de prisões hediondas, infundadas, levianas. Vivia-se espremido, desconfiado, lembrando a santa Inquisição da idade média, onde todos poderiam, a qualquer momento, serem considerados bruxos e denunciados, substituindo fogueiras pelos porões das torturas.

Algumas palavras relegadas ao ostracismo, sequer eram mencionadas, por malditas e execradas, como a greve, tida como anomalia social passiva de subversão da ordem e dos interesses nacionais, penalizada na Lei de Segurança. Comumente as mídias, televisivas e faladas, em horário nobre, anunciavam pronunciamentos nas vozes pastosas dos verde olivas em seus uniformes. 0s estudantes cumpriam as datas cívicas em desfiles obrigatórios, quando não assistiam as paradas militares a ostentarem orgulhosos seu poderio bélico.

Assim seguia nosso País, sob baionetas e fuzis, num céu de brigadeiro, ufanismos a todos os pulmões, sesquicentenário de nossa independência política, mergulhados na mais ferrenha e estúpida das aberrações contra a dignidade humana, a supressão da liberdade. Atrofiavam gerações, silenciadas, bestializadas nos bancos escolares, sob o bê a bá das censuras e das mentiras convincentes ao Poder. Realidade fabricada, manietada a livre imprensa, artistas, operários, marias, josés, putas, todos viviam sob o guante da força bruta instalada.
O sistema fechava-se, anulavam garantias individuais com o pretexto de não facilitarem a vida dos envolvidos políticos contrários ao Golpe, eufemismo  denominado  por eles de Revolução. Governo eleito deposto, leis de exceção transfigurando a Constituição adequada às necessidades do terror estabelecido.

Eleições apenas as proporcionais, abolia-se, incontinenti,  a livre escolha para a Presidência da República, tendo os Estados governantes indicados pela Junta Militar, ora cúpula de governo. Mesmo na escolha para o parlamento, criou-se, depois de venerável derrota, a esdrúxula  figura do Senador Biônico, escolhido pelo Executivo General. Banqueiros e inescrupulosos empresários, acolitados por políticos fisiológicos e oportunistas, comensais da rapinagem nacional, legitimando o massacre, atentando contra os direitos humanos.

Nos ares pesados, sob constantes ameaças à liberdade civil, pouco se falava, menos se escrevia, ruas, casas, teatros, bares e escolas, o medo nos dominava e enceguecia. Se alguém soube demais e ousou dizer, ninguém mais sabia aonde ele estava, e tudo era medonho, tristonho, militar.

Livros duplas capas, ocultos e suspeitos em leituras e segredos. Terríveis hipocrisias, funestos tempos de ira, a nação esvaía-se e esbaldava falsa moral, orgias e saques, permissões contrárias ao interesse pátrio, avanço desmedido do capital internacional e das remessas de lucros a minguarem nossas divisas, tudo em omissões, e comissões, consentidas. Falso milagre econômico a nos dilapidar até os dias presentes em juros abomináveis.

Sob  o signo da guerra fria, o conflito entre duas potências, conhecemos o terror da ditadura, não apenas nós, mas também nossos irmãos vizinhos, cicatrizes relembradas para que não se intentem, nunca mais, contra o mais precioso direito da criatura humana, seu livre arbítrio e a liberdade de expressão.

Sejam sepultadas as práticas irracionais e tirânicas de todas as épocas,  em qualquer bandeira ou ideologia em que se refugiem; e que, sob o argumento de estrito cumprimento das ordens, justifiquem atrocidades, negando  a justiça, alheios à paz, aniquilem vidas...

*infelizmente esta narrativa não é ficção.




sábado, 12 de setembro de 2015





Ediloy A. C. Ferraro 
São Paulo / SP


Publicado na Antologia de contos A MULHER DE BRANCO,
editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, 73º conto publicado pela editora.  


A devoção de Nemésio

 Sobre a tumba, um corpo esquálido, cabelos brancos, rosto vincado pelo tempo...uma vela que se apagou nas mãos enrugadas, justamente com aquele homem, encontrado hirto, gélido já, debruçado rente à cruz ostentada no jazigo. Alguns passantes, naquele dia de visitação de finados, deram-se conta do ocorrido; embora, de longe, não percebessem que estivesse morto, pois não caíra, mantinha-se apoiado, ajoelhado. Sua expressão de olhos estáticos e abertos, como se ainda rendesse homenagem a algum falecido, cujos restos mortais jaziam sob a lápide... Um antigo funcionário da necrópole disse que o via, ano após ano, sempre na mesma data, a dos mortos, visitando aquele túmulo, acendendo velas e depositando flores, compungido, refugiado em si mesmo, a murmurar coisas, possivelmente orasse em intenção do visitado, ou visitada, não sabia. Pelo visto vinha de outro lugar, não sendo conhecido na cidade.

Nemésio infartara cumprindo sua devoção de muitos anos, enterrando consigo o mistério de tanta dedicação. O segredo ia consigo, jamais partilhado. Ocorre que o mesmo, há mais de 25 anos antes, por breve período, foi funcionário daquele cemitério. Durezas de uma época ruim, sem trabalho na lavoura, seca inclemente afastando os retirantes para outras plagas. Aceitou a função de auxiliar de coveiro, indicação de um vereador conhecido dele, era a única alternativa de trabalho naquela circunstância. Agarrou com unhas e dentes a oportunidade, abrir valas ele sabia, por que não covas ?
Mas as circunstâncias, que seriam transitórias, marcou-lhe a existência inteira. Feito ferro em brasa em novilho novo, ardia e o mantinha vinculado ao passado, a atormentá-lo na consciência pesada. Era um homem bom, probo, de recato irrepreensível, porém, no íntimo, sentia-se um renegado, um ladrão covarde a agir sorrateiramente, não importasse as razões a amenizar seu delito...

Sua filha, Inácia, a do meio, pois tinha dois outros, com imenso sacrifício do pai e da mãe, conseguira vencer as barreiras das dificuldades inerentes à vida humilde, e iria ser diplomada professora. A angústia e o desassossego de não ter como acompanhá-la na cerimônia, por não dispor de trajes apropriados, nem ele e nem a esposa, o afligia... Por pouco continha sua revolta, em sua condição paupérrima. Não conseguiu dar diploma aos meninos, eram pés rapados como ele, e como fora seu pai, semi analfabeto, a vida madrasta parecia cerceá-lo, estabelecendo diferenças, entre os bens nascidos e os quase sobreviventes.

Naquela tarde longínqua, inesquecível, início de suas atividades funerárias, um morto ilustre na cidade seria sepultado, ataúde elegante e decorado, terno impecável, sapatos lustrosos, abotoaduras na alva camisa, gravata combinando...Um desperdício a virar cinzas na sepultura.
Forte ainda, na entrada da meia idade, o rosto contraído em suas preocupações, a mente trabalhando febricitante; tanta riqueza a ser enterrada, apenas para a visitação de poucas horas, enquanto o pobre morre em fraldas de camisa, em caixão de terceira, parecendo papelão. Tecia, toscamente, suas teorias  subversivas, socialistas, sem nem perceber disso.

Fora encarregado de assentar os tijolos da gaveta, colocar o cimento, após as exéquias de praxe. As coroas de flores decoravam todo o local, enquanto os acompanhantes, feita as orações, começaram a se dispersar...
 Havia observado o corpo no velório, no fechar da tampa mortuária, matutando consigo mesmo, pois o defunto tinha o seu tamanho, talvez um pouco mais gordo, ou seria inchaço ?  Os sapatos possivelmente lhe serviriam...meu Deus, o que era aquilo ?  Sentia vergonha de si mesmo ao imaginar-se apropriando de trajes alheios, principalmente de um defunto. aquela sensação de impotência de não poder ver a filha em data única e especial, porém, funcionava como um peso na balança, fazendo-o ponderar, como se justificando pelos insanos pensamentos.  Aquilo tudo se perderia, viraria pó, junto com a putrefação natural da matéria, esta, bem antes.

A possibilidade de realizar seu sonho de acompanhar a filha dava-lhe o sustento para arriscar-se na empreitada, por mais macabro que parecesse aquele gesto. Aquele terno e gravata, a camisa e as abotoaduras, os sapatos lustrosos, sim, a filha sentiria orgulho dele.

Esperou pacientemente a retirada dos últimos acompanhantes; ciente de que estava só, trouxe o caixão para fora da gaveta, abriu a tampa e, cuidadosamente, passou a despir o falecido, cuidando para não sujar as roupas. Em poucos instantes o ilustre estava nu, como veio ao mundo, e como dele se despediria, a despeito de sua vontade. Retirou os sapatos, e também as meias, além de aproveitar igualmente a cueca, ajeitou as flores sobre o féretro para não deixá-lo totalmente exposto. e, respeitosamente, como se desculpasse, persignando-se com um sinal da cruz.

Embora não atinasse com o conceito, os fins justificando os meios, tal era o que ocorria com ele, a motivá-lo na usurpação dos pertences da ilustre figura. Soubessem os parentes e conhecidos, que o homenageado chegaria ao céu, ou ao inferno, nu em pelo, o coveiro seria preso, e isso o incomodava. Aquilo seria o seu segredo, jamais confidenciado com ninguém.

As roupas se ajustaram perfeitamente ao seu novo usuário, e, para conforto de Nemésio, até os sapatos de cromo alemão, lustrosos, coadjuvados nas suaves meias, calçaram bem em seus pés rachados na lida roceira.

Despistou as indagações domésticas, aquilo havia sido presente do edil, o mesmo que lhe recomendou para o emprego de coveiro. Arrumaram uma veste para a esposa, e participou, satisfeito, da formatura da filha, sob olhares curiosos dos presentes à celebração.

O hábito fino foi testemunha, então, de todos os momentos, raros, sim, mas marcantes de sua vida: casamento dos filhos, batizados dos netos, e atividades sociais de que participou como convidado, sempre atraindo olhares admirados. Trazia a veste impecável, só a usando naquelas situações especiais.

Com a velhice, aquilo que parecia superado, foi ganhando contornos nítidos, revividos, o atemorizando, fazendo-o sentir-se infeliz com o que fizera... Embora há muito tivesse deixado aquela cidade, sentia-se na obrigação de visitar o túmulo e prestar as suas homenagens ao doador involuntário das próprias roupas. Achava-se, com as visitas, mais conformado, e assim viajava em finados, sempre solitário, para a peregrinação, como se fosse uma devoção ao extinto benfeitor. Aquilo parecia uma promessa dele com o falecido, uma compensação pelo crime, um atenuante para a sua consciência a incomodá-lo. Não se lembrava da fisionomia do cadáver, evitou encará-lo enquanto o despia, isso não fazia diferença; bastava participar de qualquer velório, o morto parecia o mesmo, o acusando em seu silêncio sepulcral. Imaginava o pobre se apresentando no outro lado da vida, envergonhado, com sua nudez exposta...

Pior que tudo, não raro, assaltado em seus pensamentos, supunha o dia, inevitável a todos, em que o encontraria, ambos defuntos, e ele a cobrá-lo pelas roupas roubadas... Não tinha mais paz, sentia-se indigno.

Dizem que o criminoso sempre volta ao local do crime, verdade ou não, ali se encontrava o Nemésio, morto sobre a lápide que profanou um dia... Se encontrou com o defunto pelado é outra estória.