domingo, 28 de dezembro de 2014


REVELAÇÃO

O amor tira a venda
Desvenda
O que importa
Escancara a porta

E nos apresenta
A nós, assenta
Poeiras e fumaça,
E a tristeza rechaça ...

MOMENTOS DE PAZ...


Por que a emoção
sufoca em orações
devoção evocativa
luz, paz, compreensão ?

Invisíveis, sensíveis
Seres nos visitam
Nestes solilóquios,
Unindo nossos corações

E a dor sentida
Lágrima furtiva
Esvai-se
Na face iluminada
Esperanças e Paz...

JANELAS



Cenários se mostram
Sentidos transportam
Asas às reflexões
Alcançam distâncias
Infinitas lembranças
Reais ou imaginárias
Abertas no íntimo
Aladas em sonhos
A paz sonhada
Rostos amados
Saudosos, lembrados,
Presentes na ausência


Momentos vislumbrados
Atuais ou passados
Sensações que comprazem


Alegrias em cantilenas
Pardais em arruaças
Sorrisos inocentes
vida tão simples
Multicolorida
Instantes desejados...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014






Publicado em livro na antologia MISTICISMO e FANATISMO no CONTO BRASILEIRO - editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, lançamento fevereiro de 2015.


*Selecionado como um dos melhores contos da editora publicado entre out/2014 a set/2015



L A B I R I N T O S






Pela janela avistava-se a silhueta, indo e vindo, perambulando, luz acessa demonstrando  a vigília e ausência de sono. Destoava o brilho  na torre de um mar de janelas obscuras, escuras na noite, onde todos dormem, menos aquela figura, destacando-se naquele edifício, pequeno farol no escuro da madrugada. Sua imagem se agigantava com o esvoaçar das cortinas, diante a janela aberta.
Lampejo persistente, alerta nervoso, meio da noite, de repente, chamando a atenção pela luminosidade destoante do restante, estrela solitária realçada como um ponto na escuridão. Faísca em detalhe no todo de um edifício dormente.
Insone, andar impaciente, passos consumidos, o que ocorria com aquele homem, num vaivém constante e ininterrupto, sombra babélica a andar à esmo, destacando-se do breu do anonimato como um vaga-lume? 
Indolente ente, na solidão  em ânimo doente, ou de si ausente, na saudades de alguém, na distância presente, será?
Apenas cogitações alheias, buscando razões para se entender aquela situação atípica e preocupante. O certo é que se encontrava sozinho naquela cena destacada contra a luz, entre as esvoaçantes cortinas. Não se percebia outra presença, tampouco parecia conversar com outro alguém. Apenas os cigarros acendidos um após o outro. Clarão que evidencia a dor de um Ser aparentando sofrer em solilóquios, indiferente ao cansaço da vigília prolongada na madrugada. Em que mares navega aquele barco à deriva, em tormentos íntimos?  Donde viria a extenuante ida e vinda, em rápidas pausas, onde debruçava-se  no parapeito alheio a fitar o nada. Estremecimento, tentaria contra si  jogando-se daquela altura?. Não se saberia, pois voltava a andar sempre indo e vindo. Suas mãos tentava deter os cabelos volumosos a teimarem  cair pela testa, fustigados pelo vento da noite amena.
Gesticulava, andando pelos cômodos, sua sombra em contraste com a luz se desenhava pelas cortinas, denotando agitação, retornando sempre à sala, apenas uma imagem de um homem só em suas aflições. Nos gestos  transpira sua dor em gritos mudos, imagem fantasma com a mente inquieta, talvez doidivanas, quem saberia? .
Camundongo de laboratório em experimentos, labirintos em intramuros, guerreando consigo mesmo, duelos íntimos. Ecos mudos, irreais, sopitando especulações de sua causa, leme e norte, folha ao vento, barco à deriva, desatinos?. Quantas impressões passavam aquela visão, na impotência da interferência de estranhos, restava o assistir, compungido, o embate surreal de alguém consigo mesmo. Cinema mudo, ator em alucinante monólogo, visto por outros olhos à distância, observando seu andar tresloucado, suas dores presumidas. Enredo funesto,  questionado ao sabor de quem o assistia, impassível, tentando entendê-lo naquela  encenação. No reflexo de suas inquietações, a compreensão de alguns, inspirando compaixão, e de tantos a desmerecê-lo, julgando-o levianamente sem atinar com suas razões.
Mundo íntimo, conflitos em aflitivos gritos reprimidos, alucinados gestos, desconexos a terceiros e impotentes espectadores de sua angústia e desditas. 
Postado na janela, a retina como a registrar o movimento das ruas, pausas raras entre o repetitivo ir e vir, na impassível postura de desatento observador. Vislumbrado, parecendo atento e a um só tempo alheio, à vida que acontecia além.
Da janela, via-se a rua e dela se vislumbrava o homem, debruçado no parapeito, a tudo assistia parecendo nada ver...Como do convés de um navio, na altivez de um comandante e na distância da indiferença. Nos vagos gestos, olhos distantes, parecia absorto em devaneios, entre um cigarro e outro.
Seria um tresloucado, prestes a algum ato suicida? Tênues fios delimitam a sanidade. Do sano, certezas, convicções. Do insano, desvarios, alucinações,  Ser que vagueia entre duas estações, obscuras e claras, na mente açodada, estreitos caminhos, desvios trilhados em ilusões e enganos...
Mente desprevenida, desatenta, fisgada pela depressão, inoculada, sutil como um ofídio, insinua e abocanha, leva a paz, é tristonha. Descolore a luz, embaça, tira a graça é enfadonha, suga energias e exaure,aproxima-se  malsã imperceptível, esgueira-se e domina. Abismos em dores, anônimos sintomas, diagnósticos e cismas. Diáfana e maléfica, contaminando, virulentas chagas na alma. Entorpece, anestesia em profunda melancolia, trevas em profusão. Achega-se à vítima, a doença a entrelaça, são duas e únicas, numa conjunção simbiótica, hospedeiro e parasita. Cadafalso e verdugo, no fio da navalha, sanidade em risco.
Um solitário na imensidão de semelhantes, ilha na multidão, caminhos iguais, destinos diversos, caminhantes do mesmo tempo, em mundos paralelos, experiências e dores,  cicatrizes e crescimentos...
Quedará vencido pelo torpor do sono e cansaço antes do raiar do dia, para viver  no amanhã  nascente a sua história de pacato cidadão no emaranhado das funções que a vida coloca neste palco de inúmeros papéis a serem vividos e desempenhados,  entre atos sucessivos e intermináveis... Até o fim!


* Publicado no BLOG DO LIMA COELHO - Contos, Crônicas, Poesias e Artigos Literários - São Luiz/MA ( perto dos 7 milhões de acessos na internet)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Texto selecionado para figurar na Antologia CONTOS ARDENTES, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, lançamento Janeiro de 2015


Publicado na ANTOLOGIA PALAVRAS SEM FRONTEIRAS, BRASIL - ARGENTINA, 2011.









ESTRELA CADENTE


A bateria deu o sinal, ensurdecendo a quadra de esportes, parece que voltou em momentos a olhar o céu estrelado, quando, em sonhos, pensava em desfilar na avenida representando a comunidade do samba.

Naquelas noites, fitando o infinito, a algaravia ritmada dos ensaios eram coisas utópicas, de realidade distante, da laje olhava o firmamento admirando as estrelas, parecia que ser parte da comunidade entusiasmada era sonho impossível para ela.

Mariana Vasconcelos ! A voz entoou no alto falante dando o veredicto do concurso, as pernas tremeram, o chão parecia abrir-se diante tanta emoção. Aplausos entusiasmados da platéia, vencera várias concorrentes, sambistas veteranas na passarela.

Os olhos amendoados, nos cachos negros da cabeleira, mostrando os alvos e perfeitos dentes em lábios carnudos e sensuais, moldado o rosto em sobrancelhas que pareciam desenhadas. O tamanho ideal, as pernas torneadas, a tez aveludada de cor de canela, no bumbum arrebitado. Despontava a nova estrela da festa, vinha para brilhar e se destacar. 

- Você tem chances, prima, por que viver sonhando e não ir atrás ? falava sabendo da aspiração da outra. Quantos ensaios individuais, sambando na laje, ouvindo o som da bateria que chegava de longe ? Agora ali estava, escolhida, para reinar na avenida.

- Presta atenção, Mariana, a cliente entrou na loja, vá ver se ela precisa de alguma coisa ! – falou a gerente, trazendo-a ao solo depois de orbitar as estrelas.

A escola dava a oportunidade da escolhida desfilar, mas as despesas com a fantasia era exclusiva da candidata, afinal não havia recursos para custear todos os participantes, ainda que fossem os destaques. Tinha uma pequena verba, irrisória, para a comissão de frente, restando pouco para as passistas.

De novo a prima a impulsionando: já sei, temos muitos amigos, vamos fazer uma rifa e levantar o dinheiro para a alegoria, nada de morrer na praia... Mas, rifar o quê ? Os olhos correram pelas paredes dos cômodos desnudos da alvenaria e nada via que pudesse dispor de interesse a alguém, na condição de um prêmio.

Assim, do final de semana de rainha, aplaudida, passava a viver o inferno da ansiedade, todas as alternativas para arrecadar o dinheiro fulguravam por instantes e se mostravam inúteis a seguir.
Notando o ar distante e preocupado, a gerente da loja, que em raros momentos se mostrava humana, a interpelou: algum problema com você? parece preocupada, calada, não é de seu feitio esse silêncio... Falou do caso sem muito interesse, apenas para satisfazer a curiosidade da chefe, sem esperar retorno algum.

Os dias transcorriam rápido, os ensaios cada vez mais intensos, a data para se apresentar com a fantasia expirava, e nada. Teria, em último caso, de renunciar ao posto. O salário de balconista mal dava para as despesas e a ajuda em casa, não sobrava nada que pudesse gastar naquele empreendimento sonhado. Haveriam outros carnavais, ganhou uma vez, ganharia outras, mas, será que dariam outra oportunidade depois da desistência ? E tudo voltava à estaca zero, nenhuma solução a vista.

Entretida em suas preocupações, não deu pela presença do Sr. Arthur, o patrão.
-Oi, Mariana, parabéns, soube que foi a escolhida para representar a escola no carnaval... (olhando com certa malícia pelo corpo dela) – você mereceu a escolha, com esse visual... 

Homem sério, fechado em si, jamais se dera a comentários íntimos com qualquer das várias funcionárias, de se estranhar o imprevisto comportamento do patrão, que, aliás, amiudava nos comentários, vindo, com freqüência, para o térreo da loja, saindo de sua toca do escritório no mezanino. Mais estranho ainda foi ser chamada, antes do fechamento da loja, ao escritório.

- O Sr. chamou ? Já estava me aprontando para ir embora...

- Estava pensando, uma funcionária minha em destaque na Escola de Samba...

- Fique despreocupado, Sr. Arthur, não vai atrapalhar em nada meu serviço, os ensaios são de noite, o desfile será no feriado...( falou apreensiva, antevendo o pior. Só faltava, agora, perder o emprego que fora tão difícil de conseguir, jamais voltaria para serviços domésticos ou cuidar de crianças... )

- Claro que não estava pensando que vai atrapalhar, apenas que poderíamos unir o útil ao agradável...

- Não estou entendendo...(apertava a bolsa com força, como se buscasse ajuda). 

- Poderíamos aproveitar sua popularidade no carnaval e promovermos a loja...

- Sério ?! ( não acreditava no que ouvia, era bom demais para ser verdade)

- Estava pensando em tirar algumas fotos suas e colocarmos em pôsteres pelo estabelecimento, a comunidade ficará sabendo que estamos incentivando e promovendo a Escola da região...Nossa funcionária, afinal, será a destaque, não é ?

- Não sei ainda... estou pensando seriamente em desistir.

- Mas, por que ?! Oportunidades dessas não surgem sempre, você não disputou e venceu ?

- Mas não tenho recursos para fazer a fantasia...

- Poderemos acertar isso, como pagamento pelo uso da imagem, um patrocínio, entendeu ?

- ( já tinha ouvido falar em patrocínio, mas nunca entendeu como funcionava) – Não entendo bem disso...

- Nós bancamos as despesas com a fantasia e você nos cede os direitos de explorar a sua imagem nas fotos, simples assim...

- Jura ?! ( parecia que o sonho se materializava quando tudo parecia perdido)

Chegou em casa com o coração alvoroçado, mal conseguia expressar para a prima a novidade.

- É um sonho, Mariana, um sonho que se realiza – comemorou a parente.

O calendário parecia voar, com a verba disponibilizada, a costureira acertava os detalhes finais da roupa, a sandália prateada, de plataforma, já estava guardada na caixa sobre o guarda-roupas. 

O que a incomodava, contudo, era a insistência do Sr. Arthur em chamá-la por qualquer razão ao mezanino, fato, aliás, que não passava despercebido pela chefe, a quem cabia passar a ordem para ela subir ao escritório.

Resolveu que iria pessoalmente assisti-la nos ensaios, melhor, que a levaria em seu carro, como sua protegida.

- Mas, seu Arthur, a Escola é próxima de casa, a comunidade me conhece, são todos amigos, de maneira que não tenho necessidade de ser acompanhada, ainda mais chegar de carro...

Não adiantaram os argumentos, tudo aconteceu como ele queria. Não perdeu nenhum dos ensaios a partir de então, inclusive a esperando para levá-la para casa.

Sempre respeitoso, após a saída da Escola, a convidou para irem a uma pizzaria, estava uma noite quente e convidativa para um chope, alegou que precisavam comemorar a parceria. As fotos em breve estariam espalhadas pelo estabelecimento comercial e pela vizinhança, ficaram ótimas, divulgavam a Escola e enalteciam a Loja patrocinadora, tudo perfeito. A musa, em trajes sucintos, exibia todo o seu corpo escultural, em poses de passista, com direito a porta estandarte.

Mais a vontade, despida a carantonha de chefe, animado pela bebida, pareceu até mais jovem na descontração. E, quando a cisma dela parecia ter se desanuviado, na verdade fora avisada pelas colegas de que homem é tudo igual, não dão ponto sem nó, tudo se confirmava, como se cobrasse a fatura das despesas. A leitura telepática vinha dos olhos desejosos, fitando, obsessivo, o belo par de pernas, o decote despreocupado, as mãos abusadas que não se continham.

Mariana viu-se em constrangedora situação, lembrando a Cinderela no badalar das 24 horas, a carruagem de princesa transformada em abóbora. Pensando rápido em como deter os ímpetos já exarcerbados do patrão, desferiu-lhe uma bofetada, atingindo não apenas o rosto dele mas desmoronando seus próprios sonhos. Levantou-se e saiu do bar, dirigindo-se, aturdida, para casa.

Ciente que reinaria absoluta na avenida, aplaudida nas arquibancadas, até a marca da chegada, após, seria uma estrela de vida curta, cadente, e, ainda, desempregada, sonhando com o próximo carnaval...


*SELECIONADO PARA FIGURAR NO LIVRO "PALAVRAS SEM FRONTEIRAS, DO BRASIL PARA A ARGENTINA", será distribuido gratuitamente na feira do livro de Buenos Aires na Argentina no período de 1º á 9 de maio deste ano, o livro terá lançamento previsto no Brasil para dia 10 de junho de 2011, na Câmara Municipal de Niterói, juntamente com a premiação do salão de artes da AFBA, com o apoio cultural da AFBA , Associação Fluminense de Belas Artes, presidida pelo Chanceler De Luna Freire e o apoio da ALG (Academia de letras de Goiás Velho), presidida por Agnes Castro e organizada por Izabelle Valladares com o apoio do Cônsul do Poetas Del Mondo Rodrigo Poeta. Edição em língua portuguesa e espanhola.

sábado, 18 de outubro de 2014




Publicado em livro na antologia CONTOS FANTÁSTICOS - edição especial2014 - Editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, janeiro de 2014 -
 Conto escolhido para figurar na edição especial PANORAMA LITERÁRIO BRASILEIRO, dentre os melhores contos publicados pela editora em seleção feita entre os meses de outubro/2013 a setembro/2014

 


Ediloy A.C.Ferraro 
São Paulo / SP

Sombras na noite

Muitos recolhem-se , depois da jornada diária de trabalho, as vias públicas, aos poucos, recebem novos transeuntes, alguns a ficarem em suas esquinas, outros mais sofisticados em outros ambientes.
Figuras noturnas, clandestinas identidades, anseios palpitando em corações de corpos ardentes. Inebriados em busca de sensações, alucinadas procuras, angustiosos na ânsia insana de preencherem vazios da existência. Têm nas fisionomias traços risonhos, festivos, diferem de suas vidas à luz do sol, estão permissíveis às aventuras sem censuras.
Caminhantes nas tresloucadas idas, por noites insones, ocultas personagens no raiar dos dias. Assim é como se apresentam, em deboches, berloques de enfeites, acompanham a música que lhes tocam, Oferecem o calor de seus corpos mediante pagamento. Habitam sonhos dos desiludidos, cicerones nas madrugadas, alegres e festivas. Vagam como mariposas em torno da luz, notívagas dos prazeres. Personagens que tornam-se bizarras nas vestimentas impróprias às luzes do amanhecer, desambientadas no claro das ruas. Recolhem-se no alvorecer, como habitantes noturnos incomodadas na luz solar, feito morcegos.
Difusos raciocínios, obliterados nas bebidas, egos em desgovernos, dançam no ritmo dos desesperos, em gozos fluídos nas emoções inexistentes, aninhando carícias em corpos de aluguel. Mundo fantasioso, palco de ilusões, embalagem de purpurinas e neons, aparências que não denunciam os íntimos sofridos, distantes, moribundos. Calor emprestado, fátuo, efêmero, sentimentos não encontrados em nenhum Ser por empréstimos, não disponível e nem comercializado.
Trânsfugas embevecidos pelos sentidos da matéria, rescendendo odores etílicos, brindes em lágrimas disfarçadas em risos, crianças assustadas, no ritmo da valsa dos desesperados. Companheiros de solidão, uivos lamentos de lobos distantes da alcateia, envolvidos na atmosfera inebriante das transitórias alegrias. Alcoólicos ares empesteando os olfatos, mentes destravadas a extravasarem suas mágoas e lamúrias. Balanços anestesiados de seus rancores, lembranças funestas, hilárias e doloridas. Anestesiados, acalmados em cada gole em garrafas vazias, solitários murmúrios. Frenesis dos tímidos, ébrios a entoarem seus cânticos desafinados e desconexos, em falsas demonstrações eufóricas. Caricatas figuras das alegrias compradas, vernizes de realidades ocultas, exóticos na claridade solar. Assembleia de desatinados, dores manifestas em teores de nicotina e álcool, situações hilárias, vivências e amores desencontrados, pilhérias e insucessos.
Universos restritos nos vazios das garrafas entornadas, nos hálitos das bílis saturadas. Em solitárias angústias íntimas, aparentemente compartilhadas, cada qual uma existência e seus enredos, risadas amargas, piedades de si próprios, estrelas embaçadas nos brilhos opacos dos vidros diáfanos dos copos.
Burlesca reunião de convivas solitários em si, brindam e gritam, chorando no íntimo. Reunião de indivíduos, semelhantes em seus desatinos, imersos cada qual em seus mundos pessoais e intransponíveis, alheios às análises de outros olhos.
Delírios rápidos em fugidias sensações. As trevas não são externas, as das aparências são ausências de luz facilmente disfarçadas, porém as internas são labirintos exigindo soluções, num pêndulo oscilando nas duas estações, obscuras e claras, entre tênues fios da sanidade insana. Largos são os caminhos em desvios trilhados por ilusões e enganos, mente açodada, incomodada no fio da navalha. A ostentarem um arsenal de disfarces convincentes, disponíveis em qualquer ocasião, escamoteando visíveis perturbações. Contudo, os ecos ecoam de dentro, assustadores, reivindicando saídas, respiram agônicos, turbilhonam as entranhas.
Os desafios não se alteram com os espetáculos dos cenários ilusórios, são perenes e constantes buscas, não importa onde se encontrem. Somos os nossos próprios enigmas a serem decifrados, conscientes ou não. Os fios das meadas estão em nós, incrustados, indeléveis, a exporem suas garras esculpindo em dores. Labirintos intramuros, em duelos íntimos, ecos mudos, insanos, irreais, folhas nas tempestades, barcos à deriva, desatinos, expostos nos íntimos em aparentes disfarces externos e convincentes.
Miscelânea de impressões, mosaico controvertido, desprovido de sentido lógico. Imagens desfocadas, fragmentos de momentos em arroubos ensandecidos. Repentes inusitados, despropositados, inconvenientes. Passam rápidos, exigindo goles a nutri-los, ágeis como os ventos,deleites fugazes,difusos, uivantes, tristonhos...
Nas nuances sombrias encontram-se as musas habitantes das noites, vendendo fantasias. São refúgios para os tédios de insossas vidas, no firmamento fantasioso de estrelas e lua cheia, antes pântanos de ácidas visões, inebriando os sentidos famintos de seduções. De jardins multicoloridos em flores, traem-se em cheiros nauseantes de pétalas pútridas, renegando frescores de vivas cores. Nem arco-íris pós vendavais a suavizarem os céus nas imprecisões dos temporais, nas telas surreais os alucinados degustadores das ilusões mitigam os sofreres, oferecidos como prazeres mundanos, em moeda corrente.
Vaga o ébrio nas noitadas, o corpo chumbado ao solo sob o peso da prostração, a mente confusa, detido no escafandro da carne encharcada, como um sapo, no brejo pantanoso, apaixonado pela lua distante no firmamento. Anseia, impotente, demente, realçar luzes onde há trevas, somente.
Bailando em seus disfarces e ritos, como se apresentam. Celebrando cerimônias em mesuras programadas e em risos previsíveis. E, diante a si, a sós, maquiagem retirada, cara limpa, lavada, sem fugas, artifícios, despidos de alegorias, somente o íntimo escancarado, implacável. Ainda podem fugir, se anestesiando, rir, dançar, cantar, acreditar na fugaz alegria e embriagados ressonarem. O mais que terão será um sono pesado, até o amanhecer das rotinas pacíficas e entediadas de cada dia, retomando as máscaras das conveniências socialmente aceitas.
Parece que apenas no enlevo das bebedeiras, em instantes de perturbável lucidez, arriscamos nas dores e nos apresentamos a nós mesmos, personagens oscilantes entre luzes e trevas...

terça-feira, 16 de setembro de 2014


PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS XEQUE MATE, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ.


O  ADEUS  ÀS ILUSÕES 

O ADEUS ÀS ILUSÕES  ( conto )


O rapaz da portaria estranhou, mas não  disse nada, ao vê-lo só a requisitar a chave do quarto. Raramente o usuário comparece sozinho, ainda mais  no meio da tarde, quando apenas freqüentadores apaixonados ali aparecem em busca de um ninho para seus momentos de intimidades. Acostumara a vê-los, o casal, geralmente após as 15 horas, ficando somente o período convencionado. Agora apenas um deles, talvez ficasse aguardando a chegada, já nas dependências, da companheira. Caso ela chegasse, diria que o esperava no 307, o local reservado.
Saiu da recepção e subiu um pequeno lance de escadas, adentrou o corredor e abriu a porta. Aguardaria ali por uma chegada imprevista, possivelmente ela não viria ao encontro. Incapaz de compreender, embora também já tivesse sido casada, que imprevistos acontecem, não sendo ele totalmente livre em seu tempo. Mesmo a espera tivesse tudo para ser inútil, ali estava, alimentado por uma esperança tênue, ou para relembrar naquela pequena suíte momentos vividos.
Sentou-se á beira da cama de casal, sem ânimo para tomar uma ducha, como faziam ansiosos quando lá se encontravam, às escondidas. Depois do expediente, ambos tinham meio turno de trabalho, o da manhã, restando a tarde para os clandestinos momentos, onde escondiam seus pudores e se entregavam às carícias.
Seria tão incapaz de entender que tinha uma vida regular, com mulher e filho ? Já o conhecera assim, aliás, nunca escondera nada. Aquilo parecia uma constatação tardia, cedo ou tarde  ficariam diante ao dilema, onde a “outra” têm que abrir mão em função das obrigações conjugais do amado. São os inconvenientes das paixões secretas.
Ela não o perdoara por algo tão previsível, o não comparecimento a um encontro, por razões óbvias e não dissimuladas. A vida dupla tem suas implicações, não sendo do humano o poder da ubiquidade, estando em mais de um lugar simultaneamente.
Parecia que o primaveril jardim florido conhecia os rigores impostergáveis do inverno. Passadas as euforias do namoro proibido colhiam as asperezas da realidade, a de não serem donos exclusivos de suas vidas, partilhadas com outros entes.
Ser a “outra” necessariamente impunha algumas restrições, não se reivindica prioridades em coração ocupado. Apostava-se numa relação arriscada, tentativas de se tornar a oficial, não saberia dizer se ela pretendida isso, apenas deduções. Na convivência como colegas de trabalho, almoçando diariamente juntos, trocando confidências de suas intimidades, perceberam-se envolvidos. A princípio uma brincadeira a dois, sem cobranças e nem futuro. Aliás, diante ao inusitado da paixão quem tem salvaguardas e receios ? Como crianças, correm para o doce da vida, o resto que venham ao seu tempo... E veio.
Ali estava, absorto em seu mundo, esperando alguém que, sabidamente, não viria. Conhecia o temperamento dela, sofreria, sim, mas não daria o braço a torcer, seria irredutível. Dera cordas à paixão, agora parecia puxá-lo, trazê-lo para si, agira como uma isca. Jamais poderia supor que fosse assim tão ardilosa, mas, caso fosse, seria compreensível, afinal, ninguém quer partilhar indefinidamente os carinhos de quem se gosta. Porém ela era a outra, sabia disso e embarcara naquela aventura certa dos prazeres e desprazeres da empreitada.
Recostara-se na cama, relembrando-a nua, intensa, amorosa, naqueles colóquios inesquecíveis, onde esqueciam-se de si mesmos, entregues um ao outro, distantes de qualquer problema. Era uma pausa na vida dos dois, de puros deleites. Ela na bagagem com um casamento falido, mal resolvido, e, por fim, divorciada. Quanto a ele começava a testemunhar o enfado da rotina matrimonial, as mesmices das rotinas que pulverizam sentimentos fazendo da vida a dois simples convivas em mesmo teto.
Todas as preocupações aparentemente longínquas, na verdade não são exclusivas de ninguém, pertencem a todos, experimentados por eles, como todo casal. Os dissabores do namorico e da transa tornavam-se amiúdes em cenas de cobranças e insuspeitáveis ciúmes. Se acreditaram no  ninguém ser de ninguém, enganaram-se. Na fase da sedução, onde tudo parece possível e encantado, esmaece no correr dos dias, no espaço que cada qual deseja na vida do escolhido. 
Tudo acontecia dentro do previsto, passada a lua de mel clandestina, surgiam já os tropeços. Não cogitava, e tampouco prometera,  desfazer-se do casamento, tinha certeza disso. Não regateava cortejá-la, aquilo fazia bem a ambos, contudo, manter a delicada relação tornava-se difícil, aonde entra sentimentos e não apenas o prazer do sexo as reivindicações aumentam e o gozo se esvai.
Curtiam as brincadeiras a dois, entregues nos abraços e no encontro de corpos sedentos de emoção e lascívias. Havia uma gostosa traquinagem,  a de se encontrarem clandestinamente, como adolescentes fugindo de pais severos, ocultando-se de olhos estranhos. Contudo, também com a esposa tivera momentos mágicos, namoraram muito tempo e casaram-se. Nada poderia assegurar a eterna felicidade se fosse com outro alguém, se no breve colóquio já manifestavam os velhos problemas da relação a dois.
Era surreal esperá-la sabendo que não viria, gastaria o tempo para refletir naquele espaço de já saudosas lembranças. A cortina colorida, transparecendo a luz do meio da tarde solarenta, nas frestas que iluminavam parte do leito, dando um tépido calor. Apenas  o aquecimento vindo da natureza, não mais do corpo dela, tão sensual e apaixonado.

 Amadurecera naquele processo, certo que não há relacionamento humano sem dor, experimentados na solidariedade e crescimento, onde as ilusões dos prazeres fugidios não sobrevivem.

Resignado, olhando ainda para os detalhes do pequeno aposento, como se despedindo, fechando a porta dos sonhos, caindo, por fim, nos fatos, tudo acabado entre eles...


sexta-feira, 15 de agosto de 2014



OBLÍQUO OLHAR 

Seriam momentos comuns nos passos de sua vida, sem novidades. Um andar cabisbaixo, compenetrado em si, aparentando alheamento, distância. Naquela manhã, como em tantas outras, no seu imperturbável percurso, tranqüilo, fechado em copas, absorto em seu universo pessoal.

No ar, perfumando os ares, suave aroma emanado de uma moça, a passar rente a ele, marcando sua presença com aqueles eflúvios aromáticos. Seguia à frente, com o vento brando sua presença permanecia no ar, fazendo-o aspirar profundamente, como querendo retê-la no olfato.

Traiu-se com seu oblíquo olhar, como disfarçando seu interesse e curiosidade, da fonte a emanar aquela brisa seus olhos se detiveram naquela garota bela, jovial, com um sorriso perfeito e envolvente. Seus olhos, por instantes, se encontraram, mas, maldita timidez, fora vencido, abaixando-os e seguindo seu conhecido caminho.

Durante todo o dia as imagens daquela visão o visitava, tirando-lhe a atenção no trabalho. Desejava revê-la, aspirar sua fragrância suave e persistente, sua beleza juvenil e sedutora. Apenas isso, pois se acabrunhava diante à possibilidade de abordá-la, não saberia como agir, tolhido pelo embaraço.

Cruzaram-se, fortuitamente, em outros momentos, e sempre seus olhos a perseguiam, respirando profundamente o aroma agridoce exalado, como se tivesse uma flor exótica às mãos. Tão próximos e distantes, na barreira invisível daquela timidez que lhe entorpecia as intenções, como um menino acanhado.

Absorto na leitura de um livro, no coletivo que o levaria à cidade, sentiu no ar a presença feminina tão desejada, seria ela ? Levantou sorrateiramente os olhos, traindo a sisudez naquele semblante, pousou seu interesse nos seios tesos de vida e juventude daquela fêmea próxima, conhecida e perfumada. Por instantes, nu os pensamentos ágeis e expostos, ruborizando as faces, envergonhado e atraiçoado, surpreendido.  Novamente vencido, abaixou os olhos, afastando-se no receio de viver a sua paixão.

 O que o impedia de se revelar a ela, ao menos para uma conversa inicial ?  Invisível aos olhos, os cárceres íntimos, presentes nos atos, limites impostos em hábitos, costumes e condicionamentos. Amarras imperceptíveis, algemas a deter em estreitos e medíocres atos, asas atrofiadas, impedidas de voar.

Tanto havia a dizer a ela, sua mente prolixa em contraste com os lábios cerrados, na mudez inexplicável, em visões limítrofes a outros horizontes, restritas e contritas. Prisão imaginada, denunciados nos passos comedidos, introspectivos, talvez em conceitos e julgamentos tolos, numa imagem deteriorada de si mesmo.  Incapaz de se sobrepor aos anseios, extenuado e vencido nas tentativas.

 Se ela soubesse, naquela figura retraída, ele era um lobo à espreita de sua gazela, o seu interior é impudico, desprezando rótulos e modos, é insano e atrevido. Sim, a desejava como ninguém aquele corpo macio e cheiroso. 

Tudo aquilo era apenas um discurso, intramuros, sem ecos, nunca verbalizado, uma justificativa para si mesmo, atordoado pela falta de iniciativa, amortecida por receios de se mostrar, se apresentar como queria. 

Sabia o que desejava mas não se atrevia a dizer, a expor o vulcão em erupção prestes a eclodir em suas lavas incandescentes, sedento na fúria do desejo. Escreveria, nisso era bom,  com as palavras entendia-se bem, restava o prurido de se confessar tão retraído, com tantos anseios contidos, demonstrados em versos sofridos... Como lhe falar de seu amor, se requisitava beijos, não dos da face, numa suposta amizade de vizinhos, e sim os da boca, ardentes, impunes, insinuantes e vorazes ?.

Não conseguiria manter a sua respeitável cortesia, felino travestido de cordeiro, na gana da sensação de rasgar as roupas, a desnudando, à mostra os tesos seios como preliminares de suas inconfessáveis tentações. Propostas indecorosas, plenos desvarios em acesos instintos, a dor reprimida, na sofrida postura de polido e cordato, quando o desejo era pela  possessão e o gozo. Sorria consigo mesmo na confissão íntima de suas reais intenções, não imaginadas na figura pacata e quase apagada  ostentada.  Um voraz animal acuado na jaula das conveniências.

A olhava enviesado, não querendo encará-la diretamente. Seus olhos descerravam, encerravam seus mistérios, leitura muda, enigmática, sentidos insinuados, velados. Alegrias e mágoas, sorrisos e lágrimas, um pouco de si desvendado na linguagem sem sons, em sutis olhares. Depositava no semblante apelos da alma necessitava de socorros, emocionado.

Para ele a musa vinha como um risco, um raio lampejo em forma de sedução. Chegou inusitada, inesperada, desesperada, etérea como o perfume evolado à sua passagem. Despertava nele sensações não antes experimentadas, porém faziam-no sofrer, rompendo seu silêncio e expondo-se, vendo-se por dentro, refletindo sobre si mesmo, abrindo frestas nas trevas indecifráveis de sua individualidade. Como se apresentasse num reflexo, conhecendo-se, assustando-se com o que via e sentia.

Ela viera como uma intrusa, o invadira na sutileza de um perfume, na calçada  feito passarela, como um meteoro fora de órbita, apossando de sua alma, de forma arrasadora, conquistando espaços onde existia apenas ele. E o encontrava desprevenido, indisponível para alguém, em briga íntima, iluminando sua escuridão pessoal. Já era o centro de sua atenção, cedendo, permitindo-se, obediente e prazeroso, aparecendo dançando desconexa, estranha, bailando nos sonhos em sentimentos confusos.

Ignorava gostar, até desdenhava dos que afirmavam amar, tido como fantasia, melindres dos fracos. Mas via-se desconhecendo, revirado em seus conceitos e certezas, sentido a ausência dela, saudades, querências...

Não queria assumir os sintomas, as emoções, bem e mal lhe faziam, reviravoltas , algo perigoso, ousado, o novo trazendo desafios e descobertas, o pondo desnudo.

Experimentava do bem que o gostar apraz, das dores que o amar traz. O ônibus chegava ao seu destino, a despedida muda, ardendo em chamas intestinas, sofrendo secretos martírios, pela amada que sequer suspeitava de suas intenções...  

* texto selecionado para figurar na Antologia de contos de Guadalajara (Mèxico)
* Publicado em livro na Antologia OS MAIS BELOS CONTOS DE AMOR, CBJE - Rio de Janeiro- agosto 2014

sábado, 26 de julho de 2014



PUBLICADO NA ANTOLOGIA CONTOS LIVRES, Editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ

O SOL EM ZÊNITE




O homem adentrou o  recinto, ampla sala de recepção, aturdido, em passos vacilantes, indecisos. Conseguira uma cópia da chave com um funcionário, na noite anterior, que não tinha conhecimento de que não era mais um dos proprietários. Alegara esquecimento e que precisaria retirar alguns documentos naquele dia pela manhã, habilmente o aguardara quando se distanciava da empresa.
O olhar incrédulo para as novas instalações, provavelmente uma aquisição muito cara para quem estava  prestes a fechar as portas. As mãos crespas raspavam, amiúde, nervosamente, como um rito, o tecido da calça, aparentando limpar o suor dos dedos, visível pelas manchas aparentes na altura superior da peça, próxima aos bolsos. Trajava um terno de cor sóbria. Tinha os cabelos escorridos com uma teimosa mecha a cair pela testa, nos atos ágeis os gestos denunciavam a impaciência e uma ansiedade latentes.
No salão deserto, de várias saletas e divisões, os passos ganhavam ressonância perturbável ao visitante, o que o colocava em posição de cautela, andando em passos comedidos, não querendo se denunciar.
Os dedos amarelados pela nicotina correram  o peito e retiraram do bolso um maço de cigarros, metendo um deles, de forma automática, nos lábios, porém logo estraçalhado pelos pés, após a inútil busca por fogo.
Ninguém, além dele, parecia estar no imóvel. Procuraria, pois tinha uma nefasta certeza de que fora iludido, trapaceado em sua confiança, enganado pelos sócios.  Jamais poderia supor  aquela situação, a de ser posto para trás pelos dois, irmãos por consideração, amigos de escola e de formação. Estudantes de mesma turma, eram inseparáveis. Juntos se consorciaram para o empreendimento, agora via-se colocado   para fora, descartado como uma peça imprestável. Havia uma triangulação platônica naquela relação, ambos cobiçavam e julgavam amar a sócia, colega e amiga de ambos. Eram os três que sempre caminhavam, até então, lado a lado.
Há pouco tempo haviam concordado com a extinção da Empresa. Não estavam obtendo os resultados que esperavam, os recursos financeiros escasseavam, faltavam clientes. Tinham uma incorporadora imobiliária, porém a realidade não era alvissareira, portanto teriam que se desfazer da atividade comercial.  A ele coube uma pequena indenização por sua cota. Mas os outros não desistiram de continuar tentando, não cumpriram o combinado. Sentia-se excluído, posto a parte. Como puderam, em curto espaço, aumentar os negócios que pareciam fadados à falência?  A aquisição daquela sede era a prova de que havia algo de sujo naquela proposta de exclusão. Aquilo não parecia certo, por que ele  teve que aceitar a sua retirada se eles continuaram com o empreendimento? O fato concreto é que os contratos a serem efetivados, inexplicavelmente, foram cancelados, gerando uma insegurança nas finanças, ultimando a decisão de finalizarem a Empresa. A proposta pressupunha, d ividido em partes iguais entre os três, em seguida seria extinta a atividade. Bastou que ele concordasse, após se desligar, não só não ocorreu o fim, como os então negócios cancelados voltaram a ser implementados, promovendo uma súbita mudança de planos, com a prosperidade evidente da Incorporadora.  Julgava-se desonestamente excluído pelos demais participantes.
Idéias que o infernizavam, julgava-se duplamente traído, como sócio e amigo. Bastou aceitar a sua retirada que a empresa, aparentemente estagnada, ganhou agilidade, mostrava-se próspera. Sentia que os dois passaram a evitá-lo, coisa inimaginável em outros tempos, o que só aumentava a sua desconfiança  e certeza da traição.
 Ambos nutriam uma paixão comportada pela sócia, desde as épocas escolares, disputavam a simpatia da amiga. Aquilo chegava como um duplo golpe, perdera a participação societária e a percebia distante de si, aliás, mais próxima do rival e ex-sócio, a quem já não considerava  mais como o amigo de outrora.
À medida que a hora transcorria, como vitimado por sufocante calor, um lenço branco de motivos azuis ensopava-se limpando-lhe a fronte, sempre em atitudes cuidadas. O bolso do paletó estufava-se com o lenço ali enfiado em desalinho, com parte pendida para fora. A gravata arregaçada, adorno a incomodar o pescoço vermelho e a cair por entre os pelos entrevistos pela abertura de três botões abertos na camisa. A descompostura casava-se com as feições contraídas, os lábios cerrados traiam ligeiros repuxos na face lívida. Os olhos injetados de veias minúsculas e vermelhas, excêntricas às pupilas, na clara visão de noites insones. A barba aparada com desleixo, ferindo-se em alguns pontos da face, visíveis em manchas de sangue seco.
No silêncio imperturbável do ambiente, o sobressalto do visitante intruso com o toque pesado do velho relógio de parede, modelo clássico, anunciando em meio tom as onze primeiras horas daquele sábado de sol. O escritório não tinha expediente, propício a ele para se aventurar a remexer nas gavetas em buscas de documentos e comprovação do logro a que fora submetido. Passado o susto, como que movido pela urgência , os passos tornaram-se mais céleres, atrevidos, vasculhando atentamente os corredores, movido pela força brotada na ânsia da procura, como se fosse a razão única de sua existência.
Seus gestos cuidadosos, precavidos, cederam à insânia de percorrer confusamente os cômodos contíguos à sala de entrada, tornando-se uma patética figura numa arena, qual coelho utilizado para sorteio, onde se apostam em qual casa vai entrar o animal, uma vez solto ao centro.
O barulho de uma chave na maçaneta da porta de entrada fê-lo deter-se, num estalo se recompor, ocultando-se ao lado de uma estante.
Sons de vozes , com folguedos alegres, em atitudes sensuais, a porta se abre e se fecha rapidamente.  O casal se beija calorosamente, satisfeitos, parecem brindar a concretização de uma boa venda.
Despreocupados, comentam as novidades, sem suspeitarem de que não estavam a sós. Certos do anonimato, comemoram os êxitos dos empreendimentos realizados, além do descarte do sócio, um a menos na divisão dos resultados. Conceituavam-no como um ingênuo, e o mundo não perdoa os fracos, na conclusão dos convivas entretidos em um brinde. Para compensar, ambos julgavam que a lição seria proveitosa ao ex amigo, teria a serventia de experiência de vida.
Já, então, não restava mais nenhuma dúvida. Nem precisava de documentos comprobatórios da farsa, os próprios se denunciavam sem suspeitarem de sua presença. Restava a ele presenciar os dois entregues aos afagos e brincadeiras. Seus gestos são automáticos, como se executasse um plano já decidido, pensado, arquitetado em mil conjecturas. Bastava concluí-lo. Sorver o fel de tantas mágoas, vivenciar aquilo que torcia, no íntimo, para não ser verídico.
Nas mãos nervosas um cano curto de uma arma, tiros infalíveis, a mão direita apoiada na esquerda. O primeiro a cair foi o sócio, sem tempo para pronunciar palavra.
Atordoada pela surpresa, debalde tentou se defender acusando o outro que agonizava pela ideia infeliz.  Não teve muita chance de suplicar por misericórdia, a bala fora fatal,  à queima roupa. O atirador sentiu nas narinas a fragrância do perfume suave dela que tantas vezes o embevecera. O sangue tingia o vestido branco decotado.
A abóboda do recinto resplandeceu de luz, o sol subia em zênite, iluminando todo o interior, no momento em que o relógio, em suas badaladas sonoras, ultimava as doze horas.
O homem, ensopado em suor, entre fatigado e angustiado, apático, detona mais um projétil, contra a própria cabeça.
No chão, três corpos.  Excluído no sucesso, permaneceriam unidos na desgraça.


*ilustrações do blog do Lima Coelho - contos, crônicas, poesias e artigos - São Luiz/MA
* Publicado em livro na antologia CONTOS LIVRES, editora CBJE -Rio de Janeiro-RJ, agosto 2014

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