quarta-feira, 13 de março de 2013




Selecionado para figurar em livro na antologia de contos Histórias, Causos e Lorotas que só o brasileiro sabe contar - editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, março de 2013.
 Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora




Ausências & Temores





Ao levantar-se refugou o afago da gata em seus pés, mostrando intolerância, a bichana saiu contrafeita num miado arisco. Ergueu os braços para se espreguiçar, estava moída, tivera uma noite aborrecida, pelo calor intenso e o tédio. Levantara várias vezes, buscando água gelada. Olhava para a folhinha na parede, era quarta-feira, havia 10 dias que o marido se ausentara, nunca ficara tanto tempo fora. Não estava se controlando, afinal, sem notícias, pois naquele ermo esquecido por Deus, nem o celular tinha sinal, virou apetrecho sem utilidade.

Casaram-se e resolveram morar ali. Apesar dos incômodos, seria, na pretensão deles, algo provisório, não precisariam pagar aluguel, visto que a humilde propriedade fora deixada pelos pais do marido.

Para tal, ela ficaria sem atividade profissional, visto que o local não oferecia empregos, além de serviços domésticos. Ele era representante comercial da empresa, vivia em viagens, geralmente se estendendo além  do prometido.

Aquilo a estava deixando intranqüila, sempre trabalhara fora, agora via-se obrigada a pequenas tarefas domésticas, entediando-se. A ausência do companheiro a fazia injuriada, chegando a pensar besteiras: Tenho sinceras dúvidas sobre as atividades dele nas cidades visitadas, homem é tudo igual, não podem ver rabo de saias...Não acredito que se abstenha de sexo por tantos dias.

gato_colombia (Fotógrafo Carlos Julio Martinez em Cali, na Colômbia)


Justamente por aquelas cismas que tantas vezes a visitava, que resolvera assistir uma sessão no terreiro, queria saber das andanças do marido em tão prolongadas ausências. Nunca tinha freqüentado tal ambiente. Motivada por uma prosa à toa com uma vizinha, freqüentadora habitual. Não confessara suas dúvidas com a moradora ao lado, era reservada, pois  roupa suja se lavava em casa. Iria como companhia, por pura curiosidade, sem entrar em detalhes.

- Pois tenho certeza que vai gostar, tem  “ entidades” fortes, ajudam a arrumar emprego, dão conselhos para os negócios e para a saúde, falava convicta a acompanhante.

Lá estava ela, sentada em um banco de madeira, surpresa com o ambiente, cheio de imagens. Naquela noite a “gira” seria da esquerda, os homens trajavam roupas escuras e vermelhas. As mulheres participantes também com indumentárias rubras e escuras, saias longas e enfeitadas, com colares, pulseiras e adereços nos cabelos, além da pintura acentuada nas faces.

Aberta a sessão, com os convidados em pé, passava o defumador esfumaçando o ar, envolviam-se naquela queima odorífica de ervas,    acompanhava silenciosa os movimentos dos presentes, a cantoria era geral. Os atabaques enchiam os ouvidos com a percussão ritmada.

Aos poucos, o grupo de médiuns que se encontrava no centro do terreiro, parecia entrar em transe, movendo-se ora para trás e para a frente, falando em voz estranha, dando risadas e cumprimentando-se entre si. As mulheres rodavam com suas saias armadas, piteiras nos lábios, olhando charmosas para o público masculino da assistência.

O atendimento era por fichas e hora de chegada, tinham que entrar descalças na área determinada, onde seria feita a consulta.  Nervosa, ela pensou em desistir, aquilo tudo era muito estranho. Depois tinha dúvidas do que fora buscar ali, nem como iniciar sua conversa com a “entidade”. Só não desistiu por que não queria voltar sozinha, sua casa distava várias quadras e a iluminação nas ruas era precária, a vizinha, já acostumada, não iria perder a entrevista por ela. Aquietou-se, constrangida, decidida a tomar apenas um passe para não passar despercebida.

Quando finalmente fora chamada pelo número da senha, viu-se cumprimentada por uma mulher, figura exótica, com risadas soltas, ostentando uma taça de champanhe, oferecendo a ela, que não sabia como agir.

- Então menina, em que minha força pode te ajudar ? 

Ante o mutismo da consultada, num riso escancarado, falou-lhe aos ouvidos: O pernas de calça anda aprontando, minha menina ?

Diante ao assombro dela, sem querer abrir-se com receio de ser ouvida por estranhos, fez sinal de que não tinha certeza...

Pois bem, coloque um marafo pro meu homem, ai deu o nome dele para a cambono ( pessoa que anota as orientações), uma rosa vermelha para mim ( deu o seu nome), e deixa com a gente... Se ele tiver mentindo, você fica sabendo logo. (Gargalhadas.) Senão, terá uma notícia que mudará para melhor a vida de vocês, tirando-lhe suas inquietações, aliviando seu coração.

Saiu dali mais grilada do que quando havia entrado. Não disseram nem que sim e nem que não, mas a pulga estava colocada atrás da orelha. Somando a angústia da solidão e a carência de carinho do companheiro ausente, parecia que tinham falado tudo o que ela já desconfiava. O que a abismava era como aquela mulher sabia de sua dúvida, se ela sequer abriu a boca? Ou será que tinha falado e nem se lembrava diante de tanto nervosismo?

Caminho de volta, a vizinha interessada em saber as impressões dela, perguntando, fazendo com que ela se esquivasse com evasivas.  Confidenciar-se com estranhos, nunca. Lugar pequeno, falta do que fazer, a língua corre solta. Não queria ser tida como a traída na boca de ninguém. Assuntos pessoais seriam resolvidos com reservas e dentro das paredes de sua casa, nenhum sinal para a platéia sequiosa por boatos difamatórios.

 
Apenas dois dias depois ele chegou. Falando muito, animado com suas notícias de vendas, sequer percebendo o desânimo da companheira, desconfiada e infeliz.

A pretexto de buscar suas roupas para lavar, procurou pelas  cuecas, tentando aspirar perfumes femininos nas camisas, cheirando-as, e alguma pista de eventual relacionamentos clandestinos do parceiro. Revirava as peças afoita, torcendo para não encontrar nada que depusesse contra ele. Precisava recuperar a sua paz íntima, abalada por tantas suspeitas.

Depois de banhar-se e comer alguma coisa, buscou por ela, enamorado e saudoso. A princípio pensou em negar-se a ele, e expor toda a sua angústia por esperá-lo por tantos dias,  porém, carente, achou que não estaria jogando com a melhor tática, dizem que quem não tem em casa busca em outros braços.

Nos momentos íntimos não conseguia perceber traição, pois demonstrava um “apetite” de esfomeado, a deixando feliz e saciada,  não sendo possível tanto ânimo caso ele estivesse com uma vida dupla.  Assim ele passava alguns dias com ela, até que retornava a pegar a estrada, deixando-a solitária.

Os dias corriam, períodos de esperas e de chegadas, noites inteiras imaginando como ele estaria, e, no inferno das incertezas, com quem  pudesse estar, virava-se incomodada no leito de casal Por tantas hesitações, via-se frente a frente com uma cartomante, precisava ter certeza, a dúvida a estava deixando maluca. No reservado da casa daquela mulher, moradora distante, sentia-se mais à vontade para se abrir. No terreiro, as consultas aconteciam sem privacidade, apesar do barulho existente e das conversas serem feitas “ao pé do ouvido”, além da presença de vários conhecidos, razão pela qual nunca mais retornou àquele local.

Diferentemente da consulta anterior, com a entidade, a consulente era simpática, extrovertida e a deixava confiante. Juntos tomaram  café com bolachas, antes de iniciar a leitura do baralho normal e  do tarô.

As cartas não denunciavam nenhuma traição do companheiro, pelo contrário afigurava-se homem trabalhador e entusiasmado com seu serviço e devotado esposo, porém algo surgia naquela leitura que intrigava aquela senhora. Parecia um bloqueio, um impedimento de enxergar mais claro. Acabou por confidenciar à consultada, que não sabia o que ocorria, mas pela primeira vez tinha a visão obscurecida. Algo não estava claro. Desculpava-se, não pretendendo sequer cobrá-la pelo atendimento que não achava a contento.

- Algo está impedindo que eu veja mais longe, por acaso você ficou pendente de fazer alguma coisa? Vejo com insistência uma figura feminina, desejando algo de você...

Parecia que acordava, ouvindo intimamente uma gargalhada, estremeceu-se, lembrando do que fora pedido pela Pomba Gira, uma garrafa de cachaça para o parceiro dela e uma rosa vermelha para ela.

- Então cumpra, falou a cartomante decidida. Depois retorne, as coisas ficarão mais claras.

As exigências foram cumpridas discretamente, e, aliviada, deixou de procurar dentes em cabeça de cavalo, esquecendo-se de tantas asneiras e desconfianças.

Após alguns dias, uma indisposição, um leve enjôo, uma tontura intermitente. A notícia não poderia ser melhor, estava feliz, percebendo-se grávida, a menstruação atrasada reforçava a sua intuição materna.

Alvoroçada com o imprevisto tão desejado, percebeu-se liberta de sua idéia fixa, tomada por outros afazeres  tinha algo mais sério com que se ocupar...

  

 
 



PUBLICADO NO BLOG DO LIMA COELHO(12/03/2013, - contos, crônicas, poesias e artigos literários e outros + de 7 milhões de acessos na internet) Ilustrações: Mel Alecrim, poetisa e contista. Publicado no Recanto das Letras e no Site de Poesias.  

21 comentários:

Anônimo disse...

09/03/2013 11:45 - Professor Edgard Santos:

Ed: Dizem que filho prende o homem. Em parte é verdade, mas do jeito que anda moderno o nosso mundo, não sei não. Procurar consultas com os que se dizem adivinhos é outra coisa pra desconfiar. Ela preferiu assim e parece que deu certo em parte. Seu conto foi bem elaborado, com imagens, boas descrições e suspense à altura. parabéns!!!

Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...


08/03/2013 11:48 - annabailune:

Excelente. É assim mesmo: os 'santos' nunca dizem que sim, nem que não. Vejo na TV as previsões para o novo ano, e é sempre a mesma coisa:"Um famoso vai casar-se." "Um grande ator vai morrer." Ora, isso acontece todo ano! Adorei o conto. Uma narrativa que prende e atiça a curiosidade.

Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...


07/03/2013 11:51 - Michele CM:

Oi Ediloy! Gostei da trama psicótica vivida pela sua personagem. Em cabeça vazia sempre entra bobagens, e essas desconfianças (muito comuns) poderiam ser amenizadas antes com alguma outra coisa! Ainda bem que ela ficou grávida, assim ela vai ter com o que se ocupar!

Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...



06/03/2013 18:18 - Marianne Morais:

Excelente! Abç.

Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

Não tem pior inimigo do que: dúvidas e incertezas. Confiar não é pródigo do ser humano, há sempre um bichinho fazendo cócegas e daí os temores.

Belo texto!

ubirajara
caravanapoeta@gmail.com
12/03/2013

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Texto realmente fascinante, meus sinceros cumprimentos!

Pastor
altair.poesia@hotmail.com
12/03/2013

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Caro poeta mais uma vez nos brinda com um lindo texto que enfoca os males provocados pelas falta de Companhia e pelo temor da solidão. Parabéns pelo belíssimo texto.

J.A.Botacini

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
10/03/2013

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Eu sempre me abstive de comentar os textos desse mestre dos contos, simplesmente por julgar-me incapaz intelectualmente para fazê-lo.

Mas enche-me de orgulho, quando EDILOY A C FERRARO, diz humildemente em meu texto AVISO! AVISO! AVISO!

"Estarei te Visitando."

Essa é daquelas visitas, que mesmo estando a casa em ordem, com tapete vermelho estendido. Agente sente que ainda não é merecedor de tão nobre visita.

Milhões de brasileiros, se conhecessem esse genial escritor e o lesse, de certo fariam do Brasil uma grande nação, não só no que concerne a extensão territorial.

Redimindo-me agora digo:

Parabéns por todo conjunto de sua genial e valorosa obra.

Papa-Jaca
papajaca@yahoo.com.br
10/03/2013

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Conto, em minha opinião, precisa
ser assim: prender a atenção até
o fim e ser, na medida do possível
ser realístico, enfocando o corriqueiro...

Gostei da experiência!


RONALDO RHUSSO
ronaldo.rhusso@gmail.com
10/03/2013

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Olá Poeta,
Gosto muito de seus contos,
esse em especial me lembra a frase
"Mente vazia, oficina do diabo."

Abraços,
Hinah
Hinah
ka.dye@hotmail.com
10/03/2013

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

EDILOY A C FERRARO. Meu nobre escritor, eu acabei de lêr um maravilhos texto, fiquei maravilhado com a tua capacidade de prender o leitor ao teu conto. Parabéns e boa sorte.

Galdino
galdinoalves@uol.com.br

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Um conto do mundo da intimidade da protagonista. Sofrido. Bonito.

Comentário Enviado Por: Luiza Brandão Mota Em: 13/3/2013

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Oi Ediloy, maravilha de conto.

Comentário Enviado Por: Rosa Amélia Em: 12/3/2013

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Mestre, não me mate de inveja. É melhor ter asma do que inveja. Você é um Messi, Ferraro, o jeito é nome-a-lo papa para ver se deixa de fazer inveja a gente.

Comentário Enviado Por: william porto* Em: 12/3/2013

*WILLIAM PORTO é contista e blogueiro.

( BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Coisas da vida. Casar com caixeiro-viajante tem dessas aflições. Bem sei.

Comentário Enviado Por: Maria das Graças Dourado Em: 12/3/2013

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

É, o medo faz cada uma!

Comentário Enviado Por: Alice Matos Em: 12/3/2013

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Achei muito bom, mas meio confuso. Ou não entendi direito. Belas ilustrações.

Comentário Enviado Por: Mabel Em: 12/3/2013

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Anônimo disse...

Um conto bem legal. Edyloi é um contista dos bons: criativo e escreve bem

Comentário Enviado Por: Corina Lobão Em: 14/3/2013

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Anônimo disse...

Comentário Enviado Por: Vitória Caldas Em: 14/3/2013

Pura prosa-poema

Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos Em: 13/3/2013

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Eu adorei. Bem intimista.

Comentário Enviado Por: Vitória Caldas Em: 14/3/2013

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Anônimo disse...

Ediloy, eu estou sempre perdendo a hora aqui no site, mas sempre chego a tempo para não perder coisa boa. Ótimo conto, retratando bem as angústias de uma mulher solitária, sem sua vida profissional e tendo que viver em uma cidadezinha, à espera de um marido viajante. Você foi hábil em arranjar-lhe uma criança para cuidar, mas será que ísso bastará? Abração, Ivette.

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 21/3/2013

* Ivette Gomes é contista com livros publicados.

(BLOG DO LIMA COELHO)