sexta-feira, 9 de novembro de 2012


Alucinação



  
Reverberava da janela do pequeno quarto um sol tênue, de meia tarde, chocando-se com o vitral, causando um reflexo luminoso, qual fagulha de uma chama.
A rua era deserta. Só mesmo a réstia de luz permanecia latejante. O comércio tinha suas portas cerradas, deveria, certamente, ser feriado. Da mais modesta loja até ao Paço municipal, podia se admirar, ainda que de forma modesta, a arte no talhe das portas, gosto hoje raro. Uma ou outra alma percebia-se perambulando pelos arredores, no átrio da matriz, a qual exibia belíssimas esculturas, imagens sacras, lembrando o período barroco. De resto, pouco ou quase nada se alterava naquelas pequeninas alamedas, distribuídas em forma de setas, tendo por centro um jardim melancólico a rodear a igreja.      
Um cão magro, empesteado, contrastando com o asseio do ambiente, acomodou-se sob um dos bancos, gentilmente cedido por uma das casas comerciais ou personalidades da câmara.        
Acompanhava o cenário plácido, uma fragrância agradável, provinda dos pés de figo, predominante por todo o passeio público. Um chafariz aposentado lembrava a mitológica figura grega, Netuno, a ostentar um tridente ou cedro – não estou bem certo – cercado por graciosos peixinhos de pedra a jorrarem água na fonte seca.       
Aquele harmônico conjunto de coisas simples e belas chegava-me como uma tela em guache com matizes claros, suaves e exageradamente poéticos. Não fosse o pesar que de mim se apossava, poderia propor-me uma volta pelos pontos mais excêntricos para certificar-me se tal paz reinava também pela periferia. Não fui. Estava demasiadamente indisposto, os olhos irritados e vermelhos por uma noite em claro. Dessa forma, recolhida a inspiração no âmago ferido, toda a sensação transmitida pela paisagem bucólica tornava-se enfastiante  e monótona, dando-me a certeza do isolamento, pondo-me n’alma um esplin deplorável.     
Limitei-me a observar de longe o clima propício às divagações do espírito. Desprezei ou procurei afastar imagens que me fizessem recordar a chaga ainda sangrando, escancarada, doída. Não raras viam, às bátegas, encontrando-me fraco e indefeso, impossibilitado de fuga, como um foragido embestegado num labirinto sem saída, cuja única sina fosse o fim.        



Num plano irreal, pensei entregar-me à letargia profunda, esquecendo-me na coloração pitoresca daquela paisagem. Cheguei a temer um pesadelo, como se a situação em si já não o fosse. Invejei o cão, mesmo doente, pois descansava despreocupado.       
Uma gota de suor escorreu-me pela testa trazendo-me à realidade. Era verão. Um mormaço, antevendo chuvas, evaporava-se do solo, enchendo-me as narinas de um frescor de terra revolta ao contato com a água.   
Trajava um hábito sisudo, de pêsames, negro. A camisa de um colorido discreto colou-se à pele. Eu transpirava por todo o corpo. Sentia, amiúde, calafrios e mal-estares passageiros, resultando em freqüentes vertigens.      
Achava-me debilitado e exausto. Não tinha apetite, tampouco calma para o sono. Há dois dias abstinha-me da alimentação. Tinha os olhos saltados nas órbitas e um ar alucinado, beirando à sandice total. Vagava como uma sombra babélica, fitando o vazio, vendo não vendo.
A tela poética, bela e tranquila, tornava-se, ao sabor de meu estado de semi-consciência , funesta, carregada, escura. As árvores envergavam seus galhos num farfalhar enlouquecedor, chegando a derrubar seus frutos ainda verdes. Julguei ouvir, levemente,  o sino agitar-se com o vendaval que se anunciava breve, dando ao todo um tom de dilúvio apocalíptico.
Passados os instantes de agonia, voltava a mim e tomava ciência de que tudo não era senão o produto de uma mente condenada, tresloucada, enferma. Tratava-se não de uma tempestade, como terrivelmente imaginara, mas de algumas nuvens passageiras, sem diminuírem a temperatura, apenas refrescando-a um pouco.
Uma algazarra alegre ouvia, barcos de papel, risos, choros, euforias, Sol e Chuva casamento de viúva ! como se dizia na inocência de meus primeiros anos. Este pensamento mesclou-se em meu ser desnorteado e encheu-me os olhos de um saudosismo intenso... Quem dera, agora, não temer o inevitável, não envelhecer-me no tédio de minhas aflições ?
Com o aguaceiro, um certo movimento animou, por instantes, o panorama. A chuva descia copiosa e sôfrega em nutridas gotas, será breve – pensei.  Um casal de pombos, possivelmente ocultos nos alpendres das casas ou pelos vãos das calhas sobrevoaram a praça, cortando-a, indo pousar próximo à capela do sino. O vira-latas, preguiçoso, buscou refúgio mais acolhedor no coreto velho, em desuso, instalando-se num ângulo ainda livre das goteiras, enquanto lambia a ferida exposta, procurando alívio para a sua dor.      
O silêncio, se é que chegou a ser molestado, invadiu definitivamente as ruelas e as vidas solitárias, dando à tarde um anoitecer precoce, auxiliado pelo tempo que a fazia escura.
Da janela, prostrado, em pé, observava a praça tornar-se opaca, com as figueiras, as aves, o cão... Embaçou-se o colorido da vidraça e atrás dela minha face, retalhada em cores fortes, num mosaico tétrico.
Apagava-se, por fim, o último alento de vida, o raio de sol na janela.
Um manto negro debruçava-se sobre a tarde, que morria, eu, confuso, ia com ela...             

 (São Paulo, Folha Literária Colégio Estadual Prof. Fidelino de Figueiredo, 1978.)
TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE CONTOS ALÉM DA IMAGINAÇÃO DA EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, EDIÇÃO MARÇO/2010
  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.
PUBLICADO NO BLOG DO LIMA COELHO- POESIAS, CONTOS, CRÕNICAS e ARTIGOS LITERÁRIOS - SÃO LUIZ-MA ( + de 6 milhões de acessos na internet), Ilustrações de Mel Alecrim, poetisa e contista.

8 comentários:

Anônimo disse...

Sim, foi uma alucinação. Das grandonas.

Comentário Enviado Por: Carina Em: 08/11/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Maravilhoso.

Comentário Enviado Por: Olenka Em: 08/11/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Gostei. Muito mesmo.

Comentário Enviado Por: Juliana Mendes Costa Em: 08/11/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Caro Ediloy, muito bonito.

Comentário Enviado Por: Lorraine Pacheco Em: 08/11/2012


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Que contaço, valeu!....

Comentário Enviado Por: Yole Em: 08/11/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

valeu Rdiloy.

Comentário Enviado Por: Ernê Em: 08/11/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto bem intimista

Comentário Enviado Por: Larissa Dias Em: 08/11/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Meu caro Ediloy, arretado seu texto, mas você nessa alucinaçao deve ter tomado umas lapadas. Brincadeira.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 08/11/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)