quarta-feira, 8 de agosto de 2012


Pesadelo surreal


Estava
 enfeitado, vestia uma roupa própria para os dias de domingo. Assim era o costume naquele lugar. A melhor roupa para se ir à igreja. 
Retinha um sorriso, algo angelical, se assim se poderia dizer, sereno. Na lapela do paletó um cravo branco.

Pessoas, quantas, me vieram ver
.Uns choravam, outros comentavam, alguns se calavam contritos.
O cão do vizinho,solidário, impertinente a estranhos,curiosamente não ladrou.
O ar pesado da sala e as moscas persistentes pousando em minha face fria. Uma senhora diligente e bondosa, livra-me delas colocando um véu transparente sobre mim.
Queria dormir e não conseguia. Uma criança nova, cansada, chorava. Alguém lhe dava o bico e só a voz enfadonha do velho se fazia ouvir.
Passava o café para todos e não me ofereciam. Esperavam. De vez em quando alguém olhava o relógio e permaneciam circunspectos, calados ou sussurrando ladainhas ou reservadas conversas entre si.
Uma mão compungida apertava de leve meu braço esquerdo e soluçava discretamente. Esta cena se repetia com frequência perturbadora.
Os minutos demoravam a passar. Percebia nas faces o cansaço de uma noite insone. Abrem a porta da cozinha e ouço um gemido alto, soluçante.
Uma mão enrugada me livra dos insetos, atraídos, provavelmente, pelas flores que ornavam aquele tétrico espetáculo e me davam tremores assustadores.Via o meu rosto pálido, inexpressivo, indiferente às moscas e aos presentes.
Um galo cantava no terreiro ao lado, princípio da madrugada. Alguém se traía num bocejo, retira o lenço do paletó sisudo e passa pela testa molhada. Uma criança volta a resmungar baixinho, incomodada no colo materno. A mãe se retira com ela para não atrapalhar o silêncio.
Um choro inopinado se rompe de repente. O velho orador consola o infeliz.
Detenho-me a olhar uma fotografia, já amarelada, dependurada na parede de madeira . Sou eu, 10 anos. No aniversário da cidade, no desfile, vestiram-me de escoteiro, trago um leve sinal de sorriso. Entendo. Vivia calado. O detalhe interessante são os olhos, não deixam esquecer que sou triste.
 Com a foto me vêm a lembrança de uma música. Uma tarde, um pé de goiaba, a Aquarela do Brasil.
Quando tudo é silêncio, as recordações se tornam mais nítidas, mais vivas.
[IMG_1880_thumb152.jpg] (Menino Morto, Cândido Portinari)

Uma barata, surgindo pelas frestas da parede, passa sobre o quadro, me arrepio.
Canta o galo novamente. O dia desponta levemente. Alguém cutuca o velho sonolento que cochilava. Ele se embaraça e pede desculpas com um sorriso sem graça, e sai. Saem dois, ele e outro. Pelo que se ouvia de dentro, eles organizavam os preparativos para a saída do cortejo. Muitos se achegaram até o portão e aguardaram, já que a sala era pequena.
Abriu-se a porta da cozinha, e por ela entrou minha mãe desfeita em dor com o peito sem lágrimas como os seios secos que um dia me amamentaram. Atirou-se sobre mim inconformada. Algumas senhoras a levaram dali.
Aproximou-se um parente e colocou um livro de orações entre meus dedos rijos e cruzados, como se eu pudesse ler naquelas condições.
Após, fêz-se escuro. Fecharam o ataúde humilde, e, finalmente, dormi.
Soube depois que fui levado por quatro homens, suspenso na altura dos ombros, pelas ruas da pequena cidade. O comércio, por respeito, cerrou as portas. Os velhos tiraram os chapéus e as senhoras fizeram o sinal da cruz à passagem do féretro.
Muitos seguiram a pequena comitiva.
Só o cão, triste, ladrou...

* CONTO ESCOLHIDO PARA FIGURAR EM CONTOS FANTÁSTICOS, EDIÇÃO JANEIRO 2010, DA EDITORA CBJE, DA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES. 
  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA FOLHA LITERÁRIA DO COLÉGIO ESTADUAL FIDELINO DE FIGUEIREDO, SÃO PAULO, SP, EM 01.11.1977, COM O TÍTULO: " HOJE, O HERÓI SOU EU".

(Mulher e menino morto,  Cândido Portinari)
* Publicado no Blog do Lima Coelho ( Contos, Crônicas e artigos Literários - São Luiz/MA, superando 6milhões de acessos na internet. Ilustrações de Mel Alecrim, poetisa e contista. 

20 comentários:

Anônimo disse...

04/11/2008 12h36 - paranoid

muito bom, cara! muito bom mesmo, parabens!!!

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

29 de dezembro de 2009 21:14

PARABÉNS, poeta!

Abraços de
Lice Soares

Anônimo disse...

30 de dezembro de 2009 11:13

. Comentário de A. Zarfeg:

Maravilhoso, Ediloy!

(Verso & Prosa)

Anônimo disse...

30 de dezembro de 2009 11:18

arlindo rodrigues: (odnilra.seugirdor@gmail.com)
Enviada: domingo, 3 de janeiro de 2010 12:03:44
Para: Ediloy Ferraro (ediloyferraro@hotmail.com)

PARABENS, GOSTEI MUITO DO PESADELO SURREAL! Em 29/12/09,

Anônimo disse...

3 de janeiro de 2010 10:39

Que beleza de conto Ediloy. adorei te ler..


Abraços poéticos..
Soraia

Ciganita
soraiassantiago@hotmail.com

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

21 de julho de 2010 16:08

É mais que um conto surreal. Simplesmente fantástico. Parabéns, grande mestre. Um abraço.


Elias neri
neri1819@yahoo.com.br

( SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

21 de julho de 2010 16:09

Menino li e gostei! O conteudo é intenso um misto de tragédia e comédia contado de uma forma gostosa de se ler.

Bravo!!!


ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

21 de julho de 2010 16:22

Caro poeta um texto deveras interessante que conta a história de forma agradável e simples de ser compreendida. Meus aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

21 de julho de 2010 17:19

Muito bom adorei ler.

vera lucia costalonga
veraluciacostalonga@gmail.com
27/07/2010

(Site de Poesias)

Anônimo disse...

27 de julho de 2010 01:23

Novo comentário de O_crime_perfeito "PESADELO SURREAL ( CONTO)":
--

Tao curto e super expressivo. Suas maos souberam usar do eufemismo como poucas vezes vejo. Transformaste do momento nostálgico um conto agradavel, embora tristonho. Parabens grande escritor. Sou grande amante de contos.

--
http://sitedepoesias.com/poesias/59800/comenta

Anônimo disse...

10 de setembro de 2010 11:41

você tem muito talento,muito sucesso a ti.

ana paula
paulalui22@bol.com.br
21/10/2010

(Site de Poesias)

Anônimo disse...

17/01/2011 12:21 - Capitão Anilto

Eu gostaria de entender a morte, nosso destino certo. No entanto, enquanto vivo, gosto muito da vida, e só abordo esse tema em meus escritos quando sou desafiado. Seu texto é cativante, abrangente. Mexe com nosa imaginação. Será que é assim? Não sei... talvez um dia eu pare para pensar seriamente nisso. Por enquanto fico admirando este poema em prosa. Abraços.

Para o texto: PESADELO SURREAL (T1264867)

(RECANTO DAS LETRAS

Anônimo disse...

Muito bom. É surreal, mas bem escrito

Comentário Enviado Por: Kadu Em: 08/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Surreal, mas muito bom.

Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 08/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Caro Ediloy, muito bem escrito

Comentário Enviado Por: Margarida Pires Em: 09/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

E bote surreal aí

Comentário Enviado Por: Márlia Em: 08/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Fiquei um pouco com medo, mas é bem escrito.

Comentário Enviado Por: Socorro Em: 08/8/2012


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Meu amigo Ediloy, tenha pena de mim, sou alérgico a esse tipo de conto, hoje não vou dormir e não é devido a asma é por causa do seu conto. Mas, cá pra nós, você é o nosso Poe.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 08/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Caro Ediloy, que surreal mesmo !

Comentário Enviado Por: Hilda Canário Em: 08/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Imaginação nota dez

Comentário Enviado Por: Melissa Costa Em: 09/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)