terça-feira, 14 de agosto de 2012


Derradeira lucidez



[Ciência e caridade, (1897) Pablo Picasso]


Os olhares compungidos, traindo furtivas lágrimas dos parentes, já era o diagnóstico, não tardaria o fim. Debalde a luta persistente travada nos últimos meses, parece que não resistiria por mais tempo. O médico, como quem se resignava na impotência de novos recursos, assistia mais por solidariedade aos presentes que por ato da profissão, o quadro se complicava naquele recinto de despedidas.
O enfermo, entremeando lucidez e alucinações, vagava em dois planos, experimentando uma clareza no sentir que não conhecia. Na morfina encontrava o corpo anestesiado, livre da dor, vítima da doença que o carcomia aos poucos, refém apenas da resistência orgânica a ditar a migração definitiva para um outro estágio, ou o nada.
Certo que estava de pleno juízo do que acontecia, nem o medo do desconhecido o visitava, apenas um estado cataléptico, em nuances de consciência, ora presente ou distante nas reminiscências vivas, de momentos pretéritos a retornarem intensos. Rastros que se perderam, asas que não voaram, emoções não compartilhadas. O medo de viver tolhendo atitudes em várias situações, arquivadas na memória e esquecidas no correr dos anos, mas revividas nas lembranças naqueles cruciais momentos, incapaz de fugir delas, revivendo-as.
Se pudesse chorar, o faria, não de desespero, de emoção. Via-se altaneiro em posições outrora assumidas e covarde e temeroso em tantas outras, sem julgamentos de certo ou errado, protagonista de sua própria história, num filme veloz se descortinando naquela tela aberta de sua peregrinação existencial.
Se aqueles olhares piedosos pudessem compartilhar sua aventura derradeira, talvez se emocionassem com ele, não pela dor da ausência próxima, e sim compartilhando sua história descortinada em detalhes na sua tela mental, feito cinema. Eles lamentavam a sua morte, e ele, não podendo se comunicar, amortecido pelas drogas medicamentosas, queria externar que estava mais vivo do que antes, quando andava, falava, se movimentava.
Como abrir de gavetas, retirando pedaços de sua trajetória reconstituída na íntegra de detalhes, nas sensações renascidas de suas experiências. Via-se com impressionante respeito a si mesmo, como entendendo suas atitudes menos valorosas, perdoando-se pela tibiez em muitas situações vividas. Enaltecia-se por realizações ainda que pequenas e cheias de humanismo e dedicações.
Assistia-se a si mesmo na história da sua própria vida, nem herói, nem vilão, apenas um Ser humano, com acertos e erros, medos e convicções. Viu-se pai amoroso, marido leal e desleal algumas vezes, honesto e nem tanto em atos e intenções, íntegro e vacilante, franco e hipócrita, despreendido e ambicioso, paciente e impetuoso, crente e descrente, nas várias faces de si mesmo, sem julgamentos e recriminações. Apenas um aprendiz da caminhada, estudante da vida nos tropeços e vitórias.
Momentos extremos, não um Juízo final, apocalíptico e temido, momentos derradeiros, iluminava-se por inteiro, em estranha e plácida lucidez. Sequer reivindicava auxilio, sem muletas em crenças e religiões, viajava dentro do torvelinho de suas vivências, no clamor íntimo a excusá-lo de suas falhas, tolerante consigo mesmo, pai protetor de si próprio, bastando-se, enxergando-se como jamais pensou ser possível, vendo o menino ainda necessitado de amparo paternal nas dúvidas e incertezas da jornada que findava.
Desnuda de alegorias, de vernizes artificiais, experimentava a face humana, crua, sem estertores, ou gemidos, nas torturas da matéria decrépita e exangue, estava forte, inteiro, uma ave pronta para o retorno, no espaço amplo de sua interminável viagem, da qual aquele instante antes era um intervalo que o fim definitivo.
Depunha na arena terrena, sem vencidos e vencedores, as suas armas, abstinha-se de ódios, mágoas e rancores. Antes abria os braços, buscava afetos, perdoava pretensos inimigos, enlaçando luzes e semeando flores. Perdoando incondicional e se entendendo e se perdoando igualmente, soterrando orgulhos e maus humores. Relevando contendas, espinhos encravados na carne, sem exigências de revides, se desarmando. Refazendo passos, desenganos, aliviando-se, enxugando lágrimas, cultuando amores.
Pássaro alado, alçando voos, rumo às estrelas, retemperando-se para novas aventuras, proscrito filho que retorna à pátria.
Finda estava a presente jornada, expirava, agônico, despedindo-se da matéria...


Enfermo imaginario(O enfermo imaginário, Honoré Daumier) 

*publicado no BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS, POESIAS  e ARTIGOS LITERÁRIOS, SÃO LUIZ-MA (6 MILHÕES DE ACESSOS NA INTERNET). ILUSTRAÇÕES: MEL ALECRIM, POETISA e ESCRITORA.
* Texto selecionado para figurar em livro na antologia CONTOS DE OURO DO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, agosto de 2012.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

22 comentários:

Anônimo disse...


Caro poeta, no (ápice) da minha consciência fecho os meus olhos e me dou por morto. Parece loucura, mas posso lhe garantir que não é; transcendo os limites entre a compreensão do que é real e, o que de fato pode ser chamado de catalepsia. Neste suposto “transe” posso sentir o (bafo) quente dos meus entes querido pulverizando minha face e a hipocrisia dos meus inimigos me chamando de santo. Fico incomodado com o perfume das flores brancas denominadas de (cravos de defunto), então entre todo aquele sofrimento daqueles que eu amo e a morbidez dos curiosos eu recobro os sentidos e me componho novamente. O seu conto eu diria, é uma replica perfeita dos momentos que antecederam a passagem do meu velho pai deste mundo para o repouso eterno. Lendo o seu conto não pude conter uma lagrima que me fez lembrar do exato momento que o meu pai (tranqüilamente) deu o seu ultimo suspiro e descansou em paz.
Parabéns por este maravilhoso conto.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
17/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...


Comentário de Ana da Cruz:

Se for um bom filho, realmente terá esse fim.

Do lado de lá não se misturam bons e maus.
.
(MURAL DOS ESCRITORES)
18 de março de 2011 01:57

Anônimo disse...


Descreves o último ato de uma peça com tantos detalhes, que dás impressão que estavas assistindo tudo de camarote.
A riqueza de detalhes é muito grande e faz do derradeiro momento do moribundo um final feliz.
Meu jovem a vida é uma peça que sabemos quando começa, mas não quando chegará ao fim.

Parabéns!!!
ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br
18/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...



Um conto e tanto poeta!
Falando de um tema que dá arrepios só de pensar, mas que um dia Deus queira bem lonnnnnnnnge sabemos chegará.
Parabéns!
Bjos
Carol


carol Carolina
carolinafagundes1@hotmail.com
16/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...


Comentário de NELCI BALDESSARI:

Simplesmente formidável. Parabéns. ..

(MURAL DOS ESCRITORES)
17 de março de 2011 13:30

Anônimo disse...

Absolutamente verdadeiro...acompanhei uma situação semelhante...que intensa solidão essa de quem sofre.E conseguiste expressar muito bem tal realidade, sem ser piegas. Parabéns!

Enviado por Ninna Sophia em 18/08/2009 13:21
para o texto: DERRADEIRA LUCIDEZ (T1760584)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

18 de agosto de 2009 13:23

Realista, triste. ... Abraço.
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 18/08/2009 13:11
para o texto: DERRADEIRA LUCIDEZ (T1760584)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...


Meu caro poeta

O teu poema tem dose certa do dialogo impossível
que tem que ser travado pelo ser humano diante de
momentos extremos da vida. Podemos sentir em tuas
frases, momentos que nada mais há para esconder ou
para guardar... o espelho da alma.
“desnuda de alegorias
de vernizes artificiais
face humana, crua

estertores, gemidos
cruciais torturas
um corpo hirto...”

Excelente trabalho!
Abraços poéticos
Val
Val Bomfim
valbomfim@uol.com.br
22 de agosto de 2009 13:13

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...


Expressão sensível da dor, sem alegorias, somente pureza e lucidez. Parabéns Ediloy! Vc sempre irradiando arte.

Beijos
Elisa Maria Gasparini Torres
emgari@yahoo.com
22/08/2009

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

22 de agosto de 2009 13:14

...Caro poeta por vezes a dor nos torna lúcidos porque na inércia da felicidade não conseguimos sentir os odores fétidos das irracionalidades.

Parabéns pelo texto e pelo tema que é muito fustigante...

J.A.Botacini

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
22 de agosto de 2009 14:43

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...


Amigo Poeta, na ansiedade de nossas utopias irrealizadas abortamos nossos vôos poéticos e somos atropelados pela realidade, e nossos versos nos contradizem quanto ao nosso sentir que a finitude nos apaga os rastros, numa luta desigual queremos transcender nosso tempo de modo natural e dar nossa contribuição para vida.

Fraterno Abraço!


Gilberto Brandão Marcon
gilbertomarcon@uol.com.br
22 de agosto de 2009 16:23

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...


Forte "explosão" de cansaço em tom de desabafo!
Há dias assim que o cansaço dos dias fazem nascer
na pontas dos dedos poema tão belos como este.
Escrita sublime, como sempre.
Gostei muito

Meu carinho e admiração, sempre.

Gloria Salles
sallesgloria@yahoo.com.br
22/08/2009

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...


caro poeta, seu talento tem se tornado cada vez mais apurado. Belo poema, tocante ! Um abraço com minha admiração.

Úrsula Avner
ursula@uai.com.br

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

22 de agosto de 2009 18:26
.
Nossa! Bela é sua maneira de expressar..
beijos doces
ciganita

Ciganita
soraiassantiago@hotmail.com
22/08/2009

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

22 de agosto de 2009 20:37

Fortes colocações, assim como são os dias e as loucuras destes nossos dias.

Um abraço


HSERPA
hserpa@globo.com
22/08/2009

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Ediloy vire esse disco, homem de Deus! Você quer me matar de assombração, esse negócio de morte é de lascar. Mas como você escreve bem paca eu leio. Abraço.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 14/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um belo conto. Parabéns !

Comentário Enviado Por: Josilda Brandão Em: 14/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Graaaaaaaaande Ediloy e quanta inspiração.

Comentário Enviado Por: Rebeca Ferreira Em: 14/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto excelente

Comentário Enviado Por: Mara Em: 14/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto bem escrito. Parabéns !

Comentário Enviado Por: Margarete Almeida Em: 14/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Parabéns, Ediloy

Comentário Enviado Por: Fernando Santana Em: 15/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto interessante enquanto narrativa

Comentário Enviado Por: Yolanda Em: 15/8/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)