sábado, 7 de janeiro de 2012

NATUREZA MORTA ( CONTO )

Ao avistar aquela paisagem, adentrando o terreno, onde enorme porteira sinalizava os limites da propriedade, sobressaía a construção alta, com sua imponência, apesar do aparente abandono. Seguidos por um rapaz negro que demonstrava conhecer os meandros, não só da fazenda, mas das biografias de seus antigos proprietários e moradores. Contando, aos poucos, de acordo com que a curiosidade fosse solicitando. Vivia ali, plantando e colhendo em pequeno espaço, à troca de cuidar do casarão e dos arredores, cercados de matos.


Assim, pasmos, os visitantes verificaram a existência de um poste com argolas, sobre uma pequena elevação de pedras, existente no adro fronteiriço à entrada, como os utilizados para o suplício humano de negros escravizados. Então, repetindo o que sabia de seus pais e avós, o rapazote esmiuçava o enredo que, de tão repetido, parecia vivê-lo, ao contá-lo em detalhes aos atentos ouvintes. Era a herança que recebeu de seus tiranizados antepassados, narrativas de seus sofrimentos pela dominação branca. Arrepios de compaixão ao imaginarem as dores físicas impingidas aos escravos.

Adentrando o edifício imponente, sem perder a majestade, embora envelhecido nos anos, o ranger da madeira do assoalho, a escrivaninha grande no antigo escritório, com alguns objetos sobre ela. Os janelões rangendo ao serem abertos, como se acordassem após longo sono. O Sol penetrando, denunciando paredes enodoadas pelo tempo e descaso de uma casa abandonada. Imagens em estatuetas de alguns santos católicos, em nichos, revelando religiosidade, uma espingarda enferrujada, chapéus de palha apropriados para se defender de dias quentes. Alguns facões grandes, de abrir picadas em matas, encostados ao lado de uma cristaleira. Nas gavetas, abertas, quinquilharias, algumas moedas do império e notas de papel desvalorizadas 

Andar pelos corredores da propriedade deserta era como viajar em sua história, reacender o seu passado, penetrar na intimidade de seus moradores falecidos. Quartos de portas grandes e janelas de madeira com tramelas, camas que mantinham algum arranjo, véus que cobriam, protegendo dos mosquitos, criados-mudos sisudos, urinóis de ferro esmaltados em porcelanas, sob as camas. 

Vidas paradas no espaço remoto de outros costumes, passeio que lembrava visita a um museu. Moradia de fazenda, rodeada por varanda, alta em referência ao solo, na qual destacava-se um pequeno sino, a chamar a atenção dos visitantes. Tratava-se, explicava o cicerone, de um sinal para chamar os filhos dos aldeões para as aulas, concessão estranha para a época, comentavam os informados. Benesse concedida à filha do patriarca, intercedendo junto ao pai pela devoção às crianças negras.

Só os passos, provocando ruídos, se ouvia naquela incursão de estranhos em visita. Ausências de coisas e pessoas se denunciava, como se recolhida em outra era, gruta inescrutável em tempo moderno, canto conservado em suas relíquias e saudades. Sinais de outras vidas, outrora habitantes, em seus afazeres diários. Divisões de alvenaria registrando vestígios, presenças pressentidas em imagens imaginárias, a andarem pelos corredores, na azáfama de suas rotinas.

A casa de banhos, com suas bacias sanitárias, onde os dejetos, na ausência de canalizações do esgoto, caíam direto na senzala, habitação de escravos e empregados livres, posto que o escoamento dos detritos tinha aquele destino, moradia situada abaixo da casa grande, talvez justificando a altura da edificação.

Sem dúvida, um túnel do tempo, favorecendo devaneios e cenários para remontar a história, num passeio pelo pretérito. Como testemunhas daqueles recuados anos atestavam as colunas que sustentavam a construção, ainda sólida, embora desabitada, revelando sobriedade e resistência às intempéries na conservação. 

Vasculhada em sua intimidade, parecia ganhar vida, possivelmente movida pela imaginação dos presentes, tentando remontar enredos e adentrar naquele universo distante do calendário atual. Gritos mudos, lamentos de vidas exploradas até o limite de suas forças, tangidos como gados da longínqua pátria africana.

Nos ares o barulho impiedoso dos chicotes vergastando carnes em horrores, de dores físicas e morais. Aquelas surdas lamentações pareciam voltar com o vento brando, choros e lágrimas, imprecações e fúrias contidas.

Percorrendo o terreno limítrofe ao quintal, chamava a atenção um esquecido cemitério, assinalados de cruzes de ferro, sepulturas da família senhorial, deserta área invadida por ervas daninhas. 

A propriedade em sua imponência e requinte de outrora, dos brasões de família e de orgulho de casta, restava aos seus donos apenas cruzes encarquilhadas em ferrugens, atestando seus perecíveis restos mortais, na altivez e tristeza, na lembrança inglória e desonrosa de um pelourinho tiranizando seus semelhantes, iguais em espíritos, distintos apenas na cor da pele... Curiosamente, apenas em uma cova havia plantas não daninhas, mas margaridas brancas a cobri-la, aonde repousava a filha, preceptora, que ensinava e intercedia pelos pequenos descendentes dos escravos.

Nas espirais dos tempos, esmaecidas lembranças narradas aos visitantes pelo bisneto de negros escravizados, protagonistas da história escrita com sangue e lágrimas, trazendo à lume, vidas ausentes, naquele cenário de natureza morta...


Selecionado para figurar em livro na Antologia Contos de Outono, edição março de 2012, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ

20 comentários:

Anônimo disse...

Comentário de NELCI BALDESSARI:

Muito bom. Vivo em uma fazenda muito antiga, + de 100 anos. e vejo no seu conto, imagens conhecidas que trato de preservá-las, até mesmo uma antiga, muito antiga biblia, que está em destacado lugar daquela enorme sala de visitas.

(MURAL DOS ESCRITORES)
7 de março de 2011 11:54

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz:

Assim como no filme, A Casa dos Espíritos, as construções mantém memórias e energias dos que lá passaram. Nada é morto. ..

(MURAL DOS ESCRITORES)
7 de março de 2011 11:55

Anônimo disse...

04/03/2011 19:52 - Eliana Schueler

Oi Ediloy! Adorei seu conto. Senti até o cheiro das paredes emboloradas e a atmosfera envelhecida do casarão. Muito bom, parabéns!

Para o texto: NATUREZA MORTA (T2828558)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

7 de março de 2011 11:56

Um conto que viaja no túnel do tempo, descrevendo com detalhes o que restou de um passado de infortúnios cheio de memórias gravadas no espaço físico daquele local e ainda sentimentos, lembranças que nunca irão se apagar!
O leitor consegue sentir a atmosfera já vivida num passado distante!
Parabéns pela riqueza de detalhes em tua narrativa!
bj Taís

Taís Mariano
taismsdos@hotmail.com
08/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

8 de março de 2011 11:07

Parabens pela narrativa de uma verdade cruel e hoje passada, e por mostrares que também dá lírio no lodo. A história da sinhasinha traz um toque de santidade.

Parabens meu jovem!

ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br
08/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

8 de março de 2011 11:08

Boa Noite Poeta!

Mas que conto poeta!
Quantas lembranças tristes guardadas num só lugar.
Seu conto está lindo com certeza mas eu não gostaria de visitar um lugar assim, é demais e ainda ouvindo as explicações do guia, com minúcias.
Parabéns poeta!
Bjos

Carol
Carol Carolina
carolinafagundes1@hotmail.com
08/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

8 de março de 2011 11:09

Nossa, vc pegou "Senzala e Casa Grande", "A hora das Bruxas", juntou com seu principal ingrediente que é o dom do conto e descreveu algo belo, cheio das emoções dos laços que já se partiram, mas deixaram impressões indeléveis na alma e na história de uma pessoa. BJss

Elisa Maria Gasparini Torres
emgari@yahoo.com
08/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

8 de março de 2011 17:44

Caro poeta aqui na região onde eu moro podemos encontrar varias historias como esta. Temos muitas propriedades que na época áurea do (café) ainda no tempo da escravidão e posteriormente a migração (Italiana) que veio para substituir os escravos negros. A seu conto esmiúça com muita propriedade fatos que ainda hoje estão presentes nas rodas de viola na minha região. Eu mesmo tenho um fato para contar, na propriedade onde nasci o único vestígio da passagem humana que restou foi os (alicerces) da casa onde fui parido tento a minha finada avó como parteira. Muito lindo seu texto, em vários momentos da leitura causou-me fortes emoções... Meus mais sinceros aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
08/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

8 de março de 2011 17:45

09/03/2011 21:41 - Maria Mineira

Sua descrição foi impecável. Tanto que leva o leitor a percorrer cada ponto do cenário, da paisagem...Muito bom mesmo. Abraço.

Para o texto: NATUREZA MORTA (T2828558)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

10 de março de 2011 12:23

13/04/2011 18:24 - Millarray

Maravilhoso texto, merecida seleção.

Para o texto: NATUREZA MORTA (T2828558)
14 de abril de 2011 00:13

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

Gostei muito !

Comentário Enviado Por: Maria Helena Bretas Em: 06/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

achei um conto bem narrrado e bem escrito

Comentário Enviado Por: Iraneide Soares Em: 05/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Gostei muito mesmo

Comentário Enviado Por: Jorge Andrade Em: 05/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Valeu amigo! Um conto especial

Comentário Enviado Por: Madalena Pires Em: 04/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Uma história muito realista, relembrando tempos de casarões tão belos, mas que abrigavam almas danadas ainda em vida. Parabéns

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 04/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Gostei. Bastante

Comentário Enviado Por: Wanice Em: 04/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto bem intimista sobre a escravidão. Muito bem escrito. Parabéns

Comentário Enviado Por: Irene Romero Em: 04/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Forte, pesado, difícil, mas literatura de primeira

Comentário Enviado Por: Viviane Lucena Em: 03/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Caro Ediloy, um ano de 2012 pleno de algrias e obrigada pela companhia em 2011

Comentário Enviado Por: Bárbara Heliodora Em: 03/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Valeu mestre! Bem escrito. Redondo, redondo

Comentário Enviado Por: Liliana Cintra Em: 03/1/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)