terça-feira, 3 de janeiro de 2012

VISÃO DE BELEZAS ( CONTO )


  • VISÃO DE BELEZAS   ( CONTO )



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    trabalhar era para fazer durante o dia, a noite era paralazer e descanso, aquilo estava mexendo com seu metabolismo na inversão dos seus costumes, andava impaciente, intolerante consigo mesmo. Acabava por chegar no horário em que a maioria dos mortais se preparavam para sair, e ele chegando para dormir. Pior de tudo era a perda do sono, depois de cochilar entre uma ligação e outra do plantão no suporte para clientes do banco. Havia sempre alguém para infernizar nas madrugadas, razão pela qual era necessário estar a postos. O fato 
    bom  era o acréscimo no salário pelo adicional noturno, aquilo amenizava um pouco o incômodo, mas não supria o desconforto de alterar os costumes. Tinha o dia de sol quente para dormir e a noite para trabalhar, o difícil era conciliar o sossego com os naturais barulhos da vida cotidiana de um dia claro, movimentado, assim estava se tornando um sonâmbulo...
    Acostumava chegar em casa e ir para a cozinha, se controlando para não tomar café e acabar de vez com o sono, necessário descanso, assim tomava um copo de água, esperava sentir o torpor do cansaço para enfim recolher-se ao leito. Da janela em que estava absorto tomando em goles a água, observava desatento uma sombra humana, que apesar de ainda tão cedo, mexia com a terra de uma floreira de alvenaria no prédio, o pequeno jardim suspenso ficava no parapeito da janela, onde debruçada, revolvia a terra e ajeitava as plantas, belas rosas e margaridas... A cozinha dava visão  para os fundos do prédio fronteiriço.
     Cada louco com a sua mania... pensava esboçando um riso. Esse procedimento era diário, todos os princípios de manhã em que retornava, enervado do trabalho, contando os dias para voltar à sua rotina normal, via sempre aquela figura feminina naquela tarefa de cuidar daquela floreira, que, diga-se, estava exuberante, dando frutos, ou melhor, flores, rosas brancas, vermelhas e amarelas e graciosas margaridas e até crisântemos. A faina acabava já com os primeiros raios de sol, quando os pássaros, em alegre algazarra, vinham visitar aquela florista, como que compartilhando de seus afazeres entretida em sua paciente ocupação diária, até a delicadeza de beija-flores eram vistos, aquilo o entretinha, até que, vencido pelo cansaço, cedia ao sono reparador.
    Nos dias que se seguiram, como um ritual, acompanhava a movimentação daquela mulher, entretida com sua roseira, bem cedo, quase ainda na madrugada, sempre pontual, presente em seu posto.. Acostumara-se em observá-la, aquilo fazia com que esquecesse os incômodos que sentia pela inversão de horários de trabalho e as chateações  suportadas nas noites intermináveis com o descanso incomodado e interrompido, além dos clientes insatisfeitos transferindo a ele, atendente, seus azedumes e mau humores.
    Certa madrugada, chovia, entrou rápido em casa, pegou o copo com água e, pasmo, observou que a mulher, com um guarda chuvas aberto,  protegia o jardim suspenso, tentando evitar que suas flores fossem danificadas pelos excessos da chuva... ali permaneceu, vigilante, até que as águas fossem amainando, virando chuviscos.
    Aquela cena surreal durou algum tempo, onde via-se na torcida por ela vencer as forças da natureza, parecendo um Davi em luta com um Golias, portanto como arma apenas um frágil protetor desafiando a força indômita, até a água amainar e ela fechar o protetor de suas queridas flores... Então foi vencido pelo torpor do cansaço.
    Acompanhava o desenvolvimento das plantas de tenras a adultas, brotando vivas, oásis colorido em contraste com a parede quase cinza de fumaça do edifício. Ela trabalhava incansável em cada nascer do dia claro, e ele passou a assisti-la de longe, até que,  sempre vencido pelo cansaço, adormecesse.
    Estabelecia-se uma nova rotina, a de assistir o trabalho meticuloso daquela estranha mulher, jovem ainda, talvez bela, pois não conseguia vê-la em detalhes, dada a distância. Mas o que o surpreendia era a assiduidade com que ela cuidava daquele espaço florido, parecendo que rejuvenescia a cada dia em esplendorosas cores nas vivas flores, tal o enfeite em uma natureza inexpressiva, até agressiva pois era um paredão escuro, sem pinturas há tempos e enegrecido pela fuligem sedimentada em anos de descaso. Assim, sobressaía naquela paisagem lúgubre a beleza daquele verdadeiro enfeite natural, quebrando a sisudez do cinza plúmbeo.
    Passou a nutrir por aquela pessoa desconhecida uma admiração especial, como se fizesse, sozinha, num  trabalho de formiguinha, toda a diferença.Enaltecia daquele pequeno jardim, como uma desculpa pela presença sombria daquela edificação mal cuidada. E, sem se dar conta, era seu espectador à distância, entretido com seu trabalho diuturno no raiar das madrugadas.
    As férias  do colega se consumiram, ele voltaria ao sonhado horário normal, onde se trabalha com a luz do dia e se descansa nas noites.
    Entretanto, permanecia aquele desejo de apreciá-la em seu trabalho, ganhara um admirador anônimo, jamais percebia que era vista e acompanhada de outra janela, de uma cozinha, por um morador que, por força das circunstâncias, madrugava.
    O tempo se encarregou de as coisas, para ele, voltar à normalidade, sendo a imagem da florista uma lembrança terna que ficou na memória, já não a acompanhava, dormia naquele horário, só acordando mais tarde...
    Numa manhã de domingo, saindo para dar um passeio, enquanto esperava para atravessar a rua, a viu de longe, parecia ser ela. Dava a entender  que tinha dificuldades para transpor a distância entre as duas calçadas, ou seria impressão dele ?  Aproximou-se.
    _ Bom dia, posso ajudá-la em alguma coisa ? Só então observou que ela tateava com um pequeno bastão, próprio para pessoas com deficiência visual. Agradecida, deu o braço para que fosse transposta entre as pequenas distâncias.
    - Sou seu vizinho, do prédio em frente. A via cuidando da sua floreira, sempre bem cuidada, lindas flores...
    - Então, apesar de não enxergar muito, a ouviu satisfeita:  são a minha vida, uma forma que encontrei de saudar sempre um novo dia... muito obrigado !
     Ela se afastava, e ele, lágrimas escorrendo, colhia mais uma flor no jardim das lições da vida...

    *Texto selecionado para figurar em livro Crônicas "E lá vem a esperança..." novembro de 2011, editora CBJE/RJ

    14 comentários:

    Anônimo disse...

    Oi Ediloy, boa tarde

    Obrigado pelo comentário(Zé Quequé) e mais obrigado ainda por essa maravilha que acabo de ler, que delicia, cada vez mais aprecio seus contos e gostaria de dizer-lhe que eles despertaram meu lado escritor, sempre fui mais poeta, mas agora estou sentindo necessidade de me adaptar à criação de pequenas estórias e quem sabe um dia eu possa vir a ser
    um escritor de verdade... muito obrigado

    Grande abraço...
    Pedrinho Poeta
    pedro.poesia@hotmail.com
    21/03/2011

    (SITE DE POESIAS)

    Anônimo disse...

    Boa Tarde Poeta!

    Creia, chorei com o seu conto impossível ficar alheia.
    Achei comovente e uma bela lição, exemplo de que apesar da deficiência de não ter a visão, encontrou um motivo para celebrar a vida seu bem maior. Sou voluntária de um grupo diferente, é isso, então tenho belos exemplos iguais como o do seu conto.
    Aplausos Poeta!
    Bjo
    Carol
    Carol Carolina
    carolinafagundes1@hotmail.com
    21/03/2011

    (SITE DE POESIAS)

    Anônimo disse...

    Fico aqui refletindo: por que tantas pessoas enxergam a beleza mas insistem em fazer da sua vida, um ritual incolor e sem graça? Belo conto! Bjsss
    Elisa Maria Gasparini Torres
    emgari@yahoo.com
    21/03/2011

    (SITE DE POESIAS)

    Anônimo disse...

    Caro poeta posso entender perfeitamente o dilema que vive alguém que tem que trocar o dia pela noite. Durante muito tempo fui um trabalhador noturno e sei com é complicado a adaptação. O nosso relógio biológico se recusa a trabalhar fora do seu padrão normal. O que há de bom como o próprio texto narra é que podemos viver os dois lados da moeda, portanto começamos a ver o vida de forma mais ampla pelo fato de vivermos em dois mundos diferentes. Maravilhoso o seu conto que representa com fidelidade os dias de hoje. Meus calorosos aplausos.

    J.A.Botacini.

    Zezinho.
    Jose Aparecido Botacini
    ze-botacini@hotmail.com
    20/03/2011

    (SITE DE POESIAS)

    Anônimo disse...

    19/02/2011 11:29 - Capitão Anilto

    Um bem elaborado texto, uma lição de vida. Parabens. Participo de um grupo de apoio à pessoas com deficiência e tenho visto exemplos assim de superação, muito bem retratados no seu texto. Abraços.

    (RECANTO DAS LETRAS)

    Anônimo disse...

    Comentário de afonso josé santana em 7 novembro 2010 às 10:33

    Este teu conto fez-me lembrar "Luzes da Cidade" filme com Charles Chaplin, de 1931. Aliás o olhar dele quando a reconhece (e quando ela o vê pela primeira vez) - quase no final do filme - ficou muito marcado. A Câmera fica estática no olhar dele por alguns segundos. É cult. Abraços.

    (Mural dos Escritores)

    Anônimo disse...

    10 de novembro de 2010 00:42

    Comentário de Ana da Cruz em 7 novembro 2010 às 3:05:

    do parapeito da janela
    cultivadas lindas rosas
    vermelhas brancas amarelas

    Multi cor e forma,
    a natureza que nos encanta. ..

    (Mural dos Escritores)

    Anônimo disse...

    Um texto muito bonito, pela lição de vida. Abração

    Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 01/2/2012

    (BLOG DO LIMA COELHO)

    Anônimo disse...

    Parabéns Ediloy, um conto doce e bonito

    Comentário Enviado Por: Gilda Arruda Em: 01/2/2012

    (BLOG DO LIMA COELHO)

    Anônimo disse...

    Oi Ediloy, é lindo

    Comentário Enviado Por: Carla Porto Em: 01/2/2012

    (BLOG DO LIMA COELHO)

    Anônimo disse...

    Um conto cheio de magia

    Comentário Enviado Por: Raquel Mendes Em: 31/1/2012

    (BLOG DO LIMA COELHO)

    Anônimo disse...

    Oi Ediloy, maravilhoso

    Comentário Enviado Por: Rita Teixeira Em: 31/1/2012

    (BLOG DO LIMA COELHO)

    Anônimo disse...

    Um texto lindo, maravilhoso, excelente, o escambal de ótimo.

    Comentário Enviado Por: william porto Em: 31/1/2012

    (BLOG DO LIMA COELHO)

    Anônimo disse...

    Uma doçura.

    Comentário Enviado Por: Ninom Em: 31/1/2012

    (BLOG DO LIMA COELHO)