terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A HERANÇA ( conto )

Eneida observava da janela do segundo andar, sem ser notada, o caminhão aberto levando a mudança do terceiro irmão, o último a deixar a residência com sua família. Na expressão de sua face a emoção da vitória, vencera a todos eles, um a um.

Herdeiros de uma velha mansão, relíquia das áureas épocas, em que seus bisavós, imigrantes italianos, amealharam riquezas com o cultivo do café. Naquela casa residiram quatro gerações de sua família. Não conseguiram acompanhar as mudanças econômicas, perderam as terras, restando apenas aquela residência, imensa.

Nunca se esquecera, voto vencido, sequer deram ouvidos às suas argumentações, decidiram os irmãos, à mesa, juntamente com suas esposas, a retirada dos retratos dos antepassados das paredes, julgavam ultrapassado na modernidade suas exposições. Não perdoava as observações pejorativas ouvidas naquela noite, a de que a lembrança daqueles rostos davam ao lugar uma aparência de museu, coisa lúgubre. Deviam aos mais velhos, sobretudo aos bisavós, já que os descendentes posteriores colecionaram derrocadas, aquela moradia a acolhê-los.

Conservadora, jamais se consorciara ficando como a única solteira, dentre outros três irmãos homens. Todos moraram naquela propriedade, ali nasceram seus sobrinhos. Pensou em censurá-los por considerarem as fotografias com descasos, mas, precavida, vencida na sua opinião, não dada a manifestações polêmicas, acatou a decisão majoritária. Os quadros foram para o sótão, embalados cuidadosamente por ela.

De vida regrada, hábitos modestos, guardava suas economias, a aposentadoria do serviço público, quase inteira. Participava das despesas na proporção dividida por cada pessoa habitante da casa. Raramente saia, ficava muito tempo ocupando-se nos vários cômodos, dispensara empregados por não ter como mantê-los. Passar os dias perambulando pelos três andares, era a sua vida. 

Temia a fragilidade financeira de seus irmãos, não afortunados em suas tarefas, vivendo constantemente desempregados. Não raro, em discussões conjugais, ouvia os reclamos de suas esposas, reivindicando que se desfizessem daquele “mausoléu” e dividissem a parte de cada um. Assim, poderiam tentar a sorte com algum negócio próprio, já que a idade chegava para todos, minguando as oportunidades de empregos, seletivos e prioritários aos mais jovens. Momentos em que se sobressaltava em tormentos íntimos. Amava aquele teto, dava-lhe uma sensação de proteção e aconchego, sentimentos não partilhados pelos demais, que, na verdade, consideravam aquilo um elefante branco. 

Esconjuravam, irmãos e cunhadas, a permanência naquela moradia. Com sua aparência decrépita, por falta de manutenção, e, apesar disso, destacava-se com imponência  no bairro, já rodeado por espigões comerciais. Fora tombado pelo patrimônio histórico, os isentando dos impostos municipais, todavia, afastava qualquer pretendente de comprá-la.
 Exceto ela, os demais maldiziam aquela medida, destarte tentaram desfazê-la, sem êxitos. Poderiam vendê-la, contudo, o futuro comprador não poderia alterá-la em suas características históricas, afastando interessados na especulação imobiliária, a desejarem no chão, demolida.

Mas vivia a apreensão de ter que abrir mão do casarão, era minoria na decisão, bastaria que alguém se aventurasse a comprá-lo. O tempo parecia conspirar contra ela, pois os irmãos, ora um ou outro, entregavam-se ao desespero, não obtendo trabalho e cogitando livrar-se da casa, como última alternativa de terem uma saída, um capital inicial. As suas cunhadas, aparentando maior insatisfação, os estimulavam a livrarem-se do problema e terem uma chance de reerguerem-se, pretextando a venda.

Certo dia, o primeiro irmão, aparentando ansiedade, confessou que tinha um negócio a fazer, parecia muito bom, retorno garantido, mas teria que investir uma importância que não tinha. A conversa deu-se na cozinha, com sua esposa, onde ela também se encontrava. O valor que falavam não era muito expressivo, suas economias eram bem superiores ao que pediam. Nenhum deles sabiam de suas posses, todos os salários e depois  a aposentadoria economizados, corrigidos em aplicações, por anos.  Não se envolvia em assuntos privados dos irmãos, apenas a conversa a interessou quando o mesmo, contrariado, manifestou desejo de vender a sua parte naquela herança. Alegava ter um patrimônio, porém estava de mãos atadas, reclamava consigo mesmo e com sua esposa. Estava amarrado, sem conseguir realizar nada, impedidos de disporem do espólio.

Temia sempre a investida dos outros herdeiros sobre a propriedade, já tinha tido uma experiência cruel com os quadros, foi voto vencido. Se eles resolvessem desfazer do imóvel, por qualquer valor, poderiam achar interessados, apesar das restrições. Caso isso ocorresse,  ela estaria em situação minoritária e perderia qualquer chance de prevalecer a sua vontade. Num repente, contrariando sua aparente neutralidade em assuntos tais, como se no íntimo aguardasse aquele momento, sugeriu interesse em ficar com a parte do irmão, mediante a quantia de que necessitava. Evidentemente com documentos e a aquiescência dos demais, a figurarem na cessão de direitos como testemunhas, tudo registrado em cartório de registro de imóveis. Mulher bem informada, sabia das implicações e dos direitos envolvidos na compra.

Mal acreditando no que ouviam, marido e esposa exultaram, afinal, mudariam daquela casa e tentariam um negócio próprio, parecia um sonho para eles, e, secretamente, atendiam os desejos dela. Olhavam agradecidos, aparentemente ela lhes estendia as mãos, os ajudavam.

  De si para si, contabilizava não mais uma quarta parte, mas a metade da participação na herança, no mínimo não disporiam de suas partes sem seu expresso consentimento. Ou seja, os restantes dependiam exclusivamente dela para intentarem qualquer transação sobre o imóvel.

A partir de então, questão de tempo, já não tinha tanta pressa, ninguém haveria de se aventurar a comprar as partes dos demais.  Os acontecimentos, previsíveis, ocorreram, onde ela foi considerada como a benfeitora também dos outros irmãos, ajudando-os em suas recorrentes desventuras. Estes, pressionados por suas esposas, desejando novas oportunidades, acabaram fascinados pelo  socorro, embora por valores bem inferiores aos pagos na primeira compra. Eneida tornava-se a detentora da totalidade daquele bem.

Observava a derradeira das três mudanças.   A casa, já enorme, ficava ainda  maior, silenciosa com suas paredes e histórias. Aos irmãos figuravam como um grande negócio, visto que não viam como se verem livres da propriedade, reclamando reparos, e tolhida em seu valor pelas restrições legais.

Da janela, observava os últimos móveis sendo colocados na carroceria do veículo, os sobrinhos e a cunhada atarefados no entra e sai buscando suas mobílias. Todos pareciam felizes com o recomeço de uma nova vida, ela sorria na paz de sua solidão. 

Na parede, voltavam ao panteão os antepassados ressurgidos do ostracismo, anistiados pelos cuidados da descendente, tendo como pretensão futura dela, colocar-se entre eles, com seu retrato, imortalizada na família.

 Eneida aboletou-se finalmente na rota poltrona, num canto da sala, respirou fundo e pensou aliviada em sua imensa casa, só sua

Nos corredores, apenas os ruídos dos seus passos miúdos, ou, vez ou outra, dos ratos no sótão e no porão, e os arrulhos dos pombos nas calhas encarquilhadas no teto.



SELECIONADO PARA FIGURAR EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS PAINEL 2012 DE AUTORES BRASILEIROS, EDIT. CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, edição ABRIL 2012

20 comentários:

Anônimo disse...

15/05/2011 21:17 - Iranilda Resende

Muito interessante seu conto. Você é muito detalhista e descreve com perfeição os acontecimentos.Adorei!

Para o texto: A HERANÇA (T2970598)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

Caro poeta o seu texto sintetiza com muita propriedade fatos que infelizmente estamos vendo em nosso cotidiano. Tantos os bens materiais como os bens físicos estão se perdendo por conta da frieza perante a falta de preservação da (memória) patrimonial tanto do estado como dos cidadãos. Tão poucos constroem para tantos outros usufruírem sem nada fazerem por merecer. Muito bom o conto, parabéns.

J.A.Botacini

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
16/05/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Um conto marcante. Uma obra de ficção que dialoga com a realidade, a velha história de depredar os patrimônios de família, e muitas vezes , acredito eu, q o emprego dessas pessoas seja o de herdeiro e só, eles são graduados nessa condição, nenhuma outra motivação, e muitos nem sentem vergonha! Q injustiça, ainda mais com a senhora q nunca aproveitou a vida, só a casa kkkkkkk! Bjsss

Elisa Maria Gasparini Torres
emgari@yahoo.com
16/05/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

A fidelidade à lembrança e a família é coisa do passado.Hoje o importante é o momento, o sucesso, pouco importa a tradição. Reminescência é coisa de museu. A sociedade tem por valor a aparência, o título e a riqueza material, de resto é perda de tempo.
O que será da humanidade no futuro com uma história sem conteudo e um passado sintético?

Belo texto!!!
ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br
16/05/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Contista Ediloy,

Adorei o seu conto, muito bem escrito, consistente, com um clima de surpresa até o fim, prende a atenção, entretanto, se me permite imaginei, por pura inspiração do conto, um pequeno parágrafo, que complementaria e daria um resumo final ao apropriado conto. Se não for do seu agrado espero que me perdoe . . .
- Eneida aboletou-se finalmente na rota poltrona, num canto da sala, respirou fundo e pensou finalmente em sua imensa casa, só sua . Habitada totalmente por ela e sua alma caseira, na leve companhia de inofensivos e desinteressados pombos e ratos . . . -

Fred DeMenezes
fredbut@oi.com.br
17/05/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Boas festas Ediloy e obrigada por seus contos em 2011

Comentário Enviado Por: Keila Azevedo Em: 20/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Na vida real contece muito assim também

Comentário Enviado Por: José Ribamar Em: 20/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Ediloy, acho que devido a histórias como essa é que nos dia de hoje, muita gente distribui, em vida, o que tem. A Avenida Paulista, em São Paulo, deve ter muitas dessas histórias. Lá restam, talvez, uns três casorões. O resto virou arranha-céu.
Feliz Natal.

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 20/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Herança eu sempre acho um tema maldito, como o conto revela.

Comentário Enviado Por: Maria Aparecida Damasceno Em: 20/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Adorei. Uma estória que acontece muito. Herdeiros são em geral serpentes peçonhentas

Comentário Enviado Por: Paula Moreira Em: 19/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto retilíneo, para dentro, mas belo.

Comentário Enviado Por: Mirtes Trinta Em: 19/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Vivi isso, Ediloy. O casarão foi demolido e transformou-se num acanhado posto de gasolina. Ninguém ficou mais pobre ou mais rico com a decisão tomada. Ficaram sem história para contar aos netos e sem retratos que lembrassem os rostos dos verdadeiros donos do antigo casarão. A discórdia se instalou entre os irmãos. Somente ela permaneceu.

Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 19/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um mestre nesse tipo de narrativa, a resistência em favor das tradições. Lindo seu texto, cara.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 19/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Gostei. Meio fechadão, mas a personagem principal assim o exige

Comentário Enviado Por: Joice Em: 19/12/2011

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Anônimo disse...

Uma narrativa intimista e muito boa. A gente entra na cena.

Comentário Enviado Por: Mabel Em: 18/12/2011

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Anônimo disse...

Jose Anilto dos Anjos
Para: Ediloy Ferraro

Os textos de Ediloy Ferraro, sempre densos e carregados de sentimentos, nos induz à reflexão sobre o complexo entrelaçamento das relações humanas. Em "A Herança" somos convidados a pensar em prudência e respeito à memória dos antepassados, e na ilusória euforia do dinheiro fácil. Parabéns, Ediloy, pelos seus textos tão bem-elaborados.

(Via Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE)

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