sábado, 10 de dezembro de 2011

O SEGREDO DE UMA DÚVIDA ( CONTO)


  Lá vinha o Valdevino, coxo, arrastando sua perna esquerda, como se puxasse um fardo, atormentado em claudicantes passos. Com o tempo acostumara-se com a deformidade, não congênita, adquirida por uma fatalidade, da qual pagaria para sofrer uma amnésia e esquecê-la para sempre.
 Com o andar manco já se habituara, afinal a capacidade humana em se adaptar às situações é surpreendente. Parecia que sempre teve aquela anomalia, não se pejava de seu andar irregular, embora se sentisse cansado. Seu caminhar  lento, carregando sua cruz, não visível, mas presente em todos os momentos, remoendo as lembranças, pesadelos pessoais à luz do dia.

 Antes fosse uma cicatriz, possível de ser camuflada em qualquer parte do corpo, onde as vestes  cobrissem e não despertassem atenções.  Talvez até convivesse melhor com aquilo, afinal, pensava, não há quem não tenha suas marcas, ocultas ou aparentes, a cruciarem os seus dias.

 Assim que a tragédia ocorreu em seu torrão natal, voltando à vida normal, pediu transferência de local de trabalho, mudou de  cidade, e foi embora. Então, apenas os parentes, que vinham de vez em quando, já que ele evitava retornar, conheciam o real do acontecido. Guardavam silêncio para não melindrá-lo com recordações infelizes. Para os demais, fora vítima de um acidente de trânsito, não se recordava dos detalhes, pois apagara, só despertando com os primeiros socorros. Finalizava a prosa enxerida, mudava de estação, alterando as atenções. Inadvertidamente, somos atrevidos com as chagas alheias.
 Do que já vivemos, enterramos o que não interessa, mas as marcas, naquele caso, eram muito evidentes, físicas, visíveis. Como a relembrá-lo permanentemente, não lhe dando tréguas.


 Preferia não rever os que conhecera de infância e adolescência, de tudo sabiam, o enojava imaginar a lembrança involuntária que todos teriam ao vê-lo. Sua atitude passada, torpe e injustificável, o envergonhava. A ele bastava a inclemência de ser o seu próprio juiz.
 Era  trauma íntimo, onde a outros figuraria como relés curiosidade, levando-se em conta de que os dramas alheios, geralmente causam comentários maledicentes, julgamentos levianos.
 Contudo, driblando as adversidades dos olhares atrevidos, ao ficar à sós as cenas retornavam como num filme repetido inúmeras vezes. Evitava assistir na televisão cenas de amor, a remetê-lo em saudades e mágoas de pura descrença, ou pior, que focalizassem brigas e tiros. Experimentava suores a empapá-lo inteiro. O trauma era latente.

 Rapaz criado em pequena cidade, cedo começara a namorar a então noiva, e tudo parecia perfeito. Concursado em serviço público, tinha estabilidade no emprego. Era só questão de alguns acertos financeiros para poderem se casar, como pretendiam. Conheciam-se desde crianças, eram feitos um para o outro, no dizer de todos, inclusive no entender dele próprio.
 Não percebera nenhuma mudança de comportamento nela, parecia feliz com o casamento próximo, o relacionamento corria normal. A noiva, para concluir um curso, viajava todas as noites para uma cidade próxima, maior e com melhores recursos. Alguns jovens da localidade faziam o mesmo percurso, buscando a conclusão de seus estudos.
 Alegando que as aulas as vezes se estendiam até tarde, na outra cidade, ficava em casa de uma colega,  retornando cedo, no dia seguinte. Isso ocorria em dois dias da semana, habituara-se com isso.

 Amâncio era um dos amigos mais próximos, conheciam-se desde a infância, entre eles não havia segredos. Ele próprio empreendia viagens para fins de estudos noturnos. E dele veio uma suspeita que mudaria o rumo de sua vida...
 Com muito jeito, escolhendo as palavras visando amenizar a notícia, contou-lhe que a sua noiva era vista com freqüência com um dos professores, e que seria interessante que ele, vez ou outra, a acompanhasse, pretextando qualquer coisa.
Na verdade, queria que ele mesmo visse, não gostava daquela posição de delator, mas, também, não admitiria a possibilidade de vê-lo no papel de enganado. Poderia ser ou não, melhor que ele averiguasse. Achou por bem que o próprio tirasse suas conclusões, fazendo seu juízo. Achava que agindo assim estava sendo correto com a amizade de tantos anos. Levantada a questão, lavava as suas mãos.

 A princípio sentiu-se incomodado com a insinuação no ar, ofendera-se calado pela honra da amada colocada sob suspeitas. Não poderia dar ouvidos à maldade alheia, mesmo que viesse de alguém de confiança como Amâncio. Engoliu a seco, disfarçou para não aparentar melindres. Plantada estava, contudo, a desconfiança.
 Não confirmou com o amigo que seguiria seu conselho, aliás, tentou aparentar tranqüilidade, em respeito à noiva e a si mesmo. Mas eclodia em seu íntimo, como um vulcão adormecido, em lavas incandescentes, o veneno inoculado nas próprias veias.
 A partir de então,  já não era o mesmo, pacato e bem humorado como todos o conheciam. Mantinha-se silencioso, como encolhido em si mesmo. A custo mantinha sua postura frente à noiva, tentando aparentar naturalidade. A olhava atento nos olhos, a conhecia e não lhe percebia dissimulação. Suas noites, todavia, não eram mais de sono solto, confortante. Angustiava-se amiúde com a possibilidade de ser traído.
 Resolveu que a seguiria. Iria sozinho, nem mesmo o amigo confidente tomaria conhecimento. Precisava ver com os próprios olhos, porém não queria colocar a lealdade da futura esposa em dúvida para ninguém. Acontecesse o que fosse não era dado a escândalos.

Nos dias em que ela pernoitava na outra cidade, ele a seguiu. Manteve-se à distância, nos arredores da escola, observando o movimento dos estudantes, entrando e saindo. Ao término das aulas a viu em companhia do tal professor, conversavam normalmente, não demonstrando maiores intimidades, apenas seguiam na mesma direção, a do carro dele, pois ela não dirigia.
 Ao vê-la entrar no veículo, como se fizesse com habitualidade, impacientou-se, controlando-se para não se declarar aos dois. Voltaria em outras oportunidades, precisava ter mais elementos para não ser leviano e precipitado. Afinal, não contava que ela aceitasse carona com ninguém, principalmente com um homem, e àquelas horas.

 Seu estado psíquico era de um desvairado, não atinava com seus botões. Ora  a entendia, tudo tratava-se de um cordialidade, apenas um obséquio de alguém favorecendo a outra pessoa, para, no mesmo instante, entrar em verdadeira confusão mental, imaginando o pior. A traição, então, se delineava medonha aos seus olhos.
 Várias foram as incursões dele, sorrateiramente, a vigiar o par. De pessoa afável e cortês, transfigurou-se açoitado pelas dúvidas, ao ponto de adquirir uma arma de fogo, comprada de um estranho.

 Das noites insones que passava a se angustiar com suas apreensões, começou a esboçar uma vindita, exigiria de ambos satisfações, sob a mira do revólver, fazendo ver que ele não era o ingênuo que poderia aparentar.
Amargurado pelas desconfianças, inábil com a arma, postou-se frente à frente com o casal, surgindo inesperado das sombras, em atitude de desespero e ameaçador.
 Da noiva, surpresa e assustada, negando qualquer envolvimento, rogando bom senso, ouviu-se um grito e um desmaio.
 Apenas um disparo foi ouvido, contra a própria perna. Inexperiente com o artefato mortífero, atrapalhou-se com o grito de espanto da moça, tempo que teve o professor, em defesa, atracado com ele para desarmá-lo, ferindo-se com a própria arma.
 Foi socorrido pelo suposto amante, que o deixou em um pronto socorro para as medidas de urgência no sangramento. Alegou que o encontrara no caminho, perdendo sangue.
 Não registrou a ocorrência, seria uma confissão, tentativa de homicídio, além de temer falatórios e não ter porte de arma. No íntimo agradecia não ter acertado ninguém, além de si mesmo.

 Nunca mais procurou por ela, tampouco soube se realmente eram amantes. As palavras dela clamando inocência não surtiram efeito. As evidências, em sua alucinação, falavam mais alto. Preferia acreditar que agira em desatino pela traição, antes instigado pela mente insana, que por provas conclusivas.
  Mudou-se da cidade, envergonhado com sua sina, herdando a indesejável deformidade física.

 A crença de que fora traído, de si para si, atenuava o ato tresloucado, não o justificava. A hipótese da inocência dela agigantava seu desatino, doía-lhe muito mais, a teria perdido inutilmente.  Mas, no íntimo, a dúvida persistia incômoda.

 Era visto caminhando lento, com seu segredo, sua dúvida, e a perna arrastada, imerso em seu  inferno pessoal...



13 comentários:

Anônimo disse...

04/12/2011 09:40 - Fernando A Freire
Ó desespero parece anular o senso moral do indivíduo, estreitando o seu mundo e sua visão. Não são raros os mutilados intimamente, os que sofrem quietos uma dor incessante, os que mudam de rumo, os que perdem o prumo... Muitas vezes, a razão de um crime está escondida lá num passado aparentemente esquecido, mas que incomoda e a qualquer momento aflora. O ser humano consciente parece ser dominado mais pelo seu subconsciente. O imaginado defeito moral do teu personagem se transformou, em definitivo, num incômodo defeito físico. Como visto, decorre do temor da censura no seu meio social. Como sempre, um conto inteligente. Meu abraço.

Para o texto: A DÚVIDA DE UM SEGREDO (T3366663)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

Oi, Ediloy,

Caramba, a sensação que fica desse conto é de dúvida com certeza(rsrsrsrs) mas é uma delícia a situação, o suspense que envolve o leitor e mais ainda aquele sentimento comum a todos nós no desejo que a traição fosse revelada e assim justificaria o desfecho, mas Vc consegue driblar tudo isso e prender nossa atenção de uma maneira ímpar(que raiva)...Grandes aplausos

Abçs
Pedrinho Poeta - Pitangueiras-SP-
pedro.poesia@hotmail.com
02/12/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

É, caro poeta, nos meandros da mente humana se escondem segredos que a própria razão desconhece. Um (ego) ferido pode desencadear reações adversas sobre as quais o indivíduo deixa de ter controle de si mesmo, e, quase sempre é punido por ele o (ego).
Muito bem elaborado o texto, meus sinceros aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
01/12/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Muito bom, Ediloy

Comentário Enviado Por: Keila Azevedo Em: 10/12/2011

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Anônimo disse...

Muito bem escrito. Triste, porém

Comentário Enviado Por: Ninom Em: 10/12/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um texto da pesada, de um mestre da escrita. Ainda bem que o tiro não atingiu os países baixos. Ediloy, você é mesmo o cão chupando manga na arte de escrever.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 10/12/2011

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Anônimo disse...

Gostei muuuuuuuuuuito

Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 11/12/2011

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Anônimo disse...

O perneta recebeu um castigo pela violência praticada.

Comentário Enviado Por: HH Em: 11/12/2011

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Anônimo disse...

Tá valendo Ediloy

Comentário Enviado Por: Rosilda Borges Em: 11/12/2011

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Anônimo disse...

Um conto trriste, mas como literatura é dez. Dramas humanos bem postos

Comentário Enviado Por: Hilda Canário Em: 11/12/2011

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Anônimo disse...

Ediloy, adorei

Comentário Enviado Por: Zilá Em: 11/12/2011

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Anônimo disse...

É triste, realmente. E fica mais triste porquanto possível. Essas coisas acontecem.
Muito bom, Ediloy!

Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 11/12/2011

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Anônimo disse...

Gostei e meus parabéns!

Comentário Enviado Por: Juraci Santana Em: 12/12/2011