sexta-feira, 25 de junho de 2010

A DAMA E O VAGABUNDO ( CONTO)

Sentou-se estirando as pernas, relaxado na posição de descanso. Os olhos injetados denotando noites insones e irregulares pareciam vagar alheios aos burburinhos das ruas e aos alaridos dos transeuntes e biscateiros. Os cabelos revoltos jogados para trás displicentemente, como a impedir que cobrissem o rosto, marcado e sofrido.

 A cabeça tomba, aos poucos, cedendo ao cansaço. o peito inundado pelo suor, transpirando no tecido da camisa, imprópria para o calor da tarde.

 Acorda sacudido pela algazarra de uma briga entre dois moleques; discutem pela gorjeta de um senhor, que se afasta em passos rápidos. Espreguiça-se ignorando o resultado da peleja e atendo-se à pequena multidão estarrecida frente às vitrines de uma grande loja, esperando, ao que tudo indicava, pela remarcação de preços anunciada em placas luminosas, de liquidação.

Pronto estava a retornar ao sono, ausentando-se da pândega que animava os consumidores, quando deteve-se ao se sentir observado. Era uma moça loura, de corpo esguio, maneiras delicadas, olhos grandes e claros, a fitá-lo com insistência, numa ternura a que não estava habituado.


Puxou a gola do paletó surrado e ocultou-se fugindo do olhar tão insistente e incômodo. Sentiu-se oprimido naquela situação, como envergonhado de si mesmo.

Não compreendia como a sua andrajosa figura despertasse a atenção de tão meigo olhar. Irritou-se. Mostrar-lhe-ia as faces intumescidas e maceradas pela vida errante, os sapatos mastigados, o hilariante traje que o cobria... ela haveria de repudiá-lo com terror até às náuseas. Deixá-lo-ia esquecido, imerso em seu mundo, na sua intimidade.


Reluta no seu íntimo e arrisca um furtivo olhar; ela lá estava, insistente. Novas tentativas, o mesmo quadro, a mesma postura atenta. Vencido, baixa os olhos querendo sumir dali, não se move. O medo de ser repelido arrefece. Ganha coragem e a fita, tal como é, embevecido, num transe hipnótico...

Absorto ao rítmo tresloucado do centro nevrálgico da Paulicéia, um homem ama. Namora à distância aquela fada, que não o renega e lhe endereça tanta atenção e graça.

A tarde se finda. O movimento dos que retornam à suas casas, transeuntes, balconistas do comércio e bancários, vai se escoando, a cidade vai diminuindo o seu fluxo humano. Os coletivos trafegam, sentido centro subúrbios, lotados.

O fascínio do mendigo desconhece o tempo. Nos olhos o brilho da intensidade dos que têm sede de viver. Sua musa permanece inalterável, a olhá-lo fixamente. Ele, extasiado com a expressão desperta num sorriso inédito naquele semblante cético, é feliz. Já não é o mesmo que buscava na letargia do sono o engano do estômago faminto. Percebe-se cantarolando uma canção, a princípio tímida, depois ousada, em bom tom.

Levanta-se, chega perto dela, a voz rouca enchendo as ruas adjacentes semi-desertas despertando a curiosidade de alguns retardatários, a olha detidamente, querendo aprisionar na memória aquele encanto, depositando naquele último olhar de despedida todo o carinho, de que jamais supusera possuir.

Afasta-se, resignado, em passos largos.


Um vendedor, trajando uniforme laranja, adentra a enorme vitrina e começa a desmontar a manequim.




(publicado no jornal literário "Mosaíco", n° 01, abril de 1985, na PUC/SP)


* texto selecionado para figurar na Antologia de Contos Ab-Absurdo da CBJE, Rio de Janeiro, edição Junho/2010

29 comentários:

Anônimo disse...

26/08/2008 01:20 - João Cyrino

Amei demais o texto!Não consigo nem sintetizar em palavras o quanto gostei!Maravilhoso!Você prende o leitor,sua narrativa nos envolve...A mensagem do txto é maravilhosa...Como demorei para te encontrar no Recanto...Meus parabéns!ADOREI!

(Recanto das Letras)

Anônimo disse...

Parabéns grande poeta, pelo excelente conto.
Um grande abraço

Regis Paiva
Regis Paiva
rd_paiva@ig.com.br
15/07/2010

Anônimo disse...

Que bom que o pobre não sofreu na vida mais uma desilusão.

Um belo conto de um espírito criativo, parabéns!

ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br
16/07/2010

Anônimo disse...

Ai, que dor no coração! Na verdade, como um trovador, o vagabundo ama a quem lhe é impossível. Um conto muito doce! Bjssssss

Elisa Maria Gasparini Torres
emgari@yahoo.com
16/07/2010

Anônimo disse...

Belíssimo conto, querido Poeta!
Grande e especial abraço!

Rose Felliciano
rttania@yahoo.com.br
16/07/2010

Anônimo disse...

Parabéns caro poeta pelo lindo conto, meus sinceros aplausos,

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
17/07/2010

Anônimo disse...

O sonho chega a extremos que podem ser vistos como insanidade, mas também como sede de viver e fruto para as artes, como o lindo texto que você resgatou. Quem, em silêncio, não delira? Abs!

Francisco Abel Mendes d`Almeida
abelpuro@ig.com.br
18/07/2010

Anônimo disse...

Mural dos Escritores
Portal Revista da Rede Sócio-Cultural de Escritores

Ana da Cruz Conferir a publicação no blog 'A DAMA E O VAGABUNDO (CONTO)'
O amor nos faz capaz de generosidades e também de sonhos... EDILOY ANTONIO CARLOS FERRARO nos surpreende em "A DAMA E O VAGABUNDO (CONTO)"


Publicação adicionada por EDILOY ANTONIO CARLOS FERRARO:

Sentou-se estirando as pernas, relaxado na posição de descanso. Os olhos injetados denotando noites insones e irregulares pareciam vagar a...


Link da publicação do blog:
A DAMA E O VAGABUNDO (CONTO)

Anônimo disse...

Comentário de José Antônio de Azevedo:
Muito bom!. O seu estilo maneiro e a sua forma concisa de descrever as personagens, tanto neste como no conto "Despedida" demonstra uma facilidade capaz de prender o leitor ao texto. Mais uma vez, parabéns.

(Mural dos Escritores)

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz:

Lindo! Prende a leitura e encanta do princípio ao fim. ..

(Mural dos Escritores)

Anônimo disse...

Comentário de Su Angelote:

atrás Uma verdadeira fábula. Menina!!!!! Perfeito.

(Mural dos Escritores)

Anônimo disse...

Comentário de José Lourenço Florentino:

Que genialidade!...
Conto espetacular!!!

(Mural dos Escritores)

Anônimo disse...

Novo comentário de O_crime_perfeito ) na poesia "A DAMA E O VAGABUNDO ( CONTO)":
--

Dificil reconhecer os caminhos quando os olhos estao vedados. Dorida fica a alma quando ve que tudo na passava duma miragem. Mas se nunca possui entao nunca perdi. Belissimo conto grande poeta. Espero m deliciar com mais contos seus.

--
http://sitedepoesias.com/poesias/59592/comenta

Anônimo disse...

Um pobre coitado que teve seu momento príncipe

Comentário Enviado Por: Rita Teixeira Em: 17/11/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto na justa medida de criatividade, jogo e cenas. perfeito. bem difetente do estilo habitual do autor, prá mais rebuscado. Mas para mim é o melhor conto dele que já li.

Comentário Enviado Por: Charles Lamounier Em: 16/11/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Nota mil. Meeeeeeeeeeeeeeesmo

Comentário Enviado Por: Ester Nolasco Em: 16/11/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

A benção menino Ediloy

Comentário Enviado Por: Goreth de Tabuí Em: 16/11/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Muito bem bolado e articulado. É lindo, apesar de triste.

Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos Em: 16/11/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Achei massa

Comentário Enviado Por: Paula Moreira Em: 16/11/2011

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Anônimo disse...

Parece comum, mas é muito criativo com esse lance do manequim. Adorei.

Comentário Enviado Por: Gracinha Em: 16/11/2011

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Anônimo disse...

É lindo!

Comentário Enviado Por: Talita Em: 16/11/2011

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Anônimo disse...

Oi Ediloy, maravilha

Comentário Enviado Por: Elcana Batista Amorim Em: 16/11/2011

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Anônimo disse...

Muito bonito. Parabéns

Comentário Enviado Por: Cleonice Nunes do Rego Em: 16/11/2011

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Anônimo disse...

Beleza de conto

Comentário Enviado Por: Luana da Silva Em: 16/11/2011

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Anônimo disse...

Um conto bem redondo. Curto, preciso e bonito. Um quê de nostalgia também, mas bem colcoada

Comentário Enviado Por: Ingrid Daniela Em: 16/11/2011

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Anônimo disse...

Caro Ediloy, gosto muito do seu texto. E este, não por acaso, está especialmente bonito.

Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 15/11/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Gostei muito, talvez a dama seja mais fascinante que o vagabundo. Uma dama dessas, caro Ferraro, só na literatura.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 15/11/2011

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Anônimo disse...

Oi Ediloy, beleza de conto

Comentário Enviado Por: Iraneide Soares Em: 15/11/2011

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Anônimo disse...

Muito criativo

Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 15/11/2011


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