Sentou-se estirando as pernas, relaxado na posição de descanso. Os olhos injetados denotando noites insones e irregulares pareciam vagar alheios aos burburinhos das ruas e aos alaridos dos transeuntes e biscateiros. Os cabelos revoltos jogados para trás displicentemente, como a impedir que cobrissem o rosto, marcado e sofrido.
A cabeça tomba, aos poucos, cedendo ao cansaço. o peito inundado pelo suor, transpirando no tecido da camisa, imprópria para o calor da tarde.
Acorda sacudido pela algazarra de uma briga entre dois moleques; discutem pela gorjeta de um senhor, que se afasta em passos rápidos. Espreguiça-se ignorando o resultado da peleja e atendo-se à pequena multidão estarrecida frente às vitrines de uma grande loja, esperando, ao que tudo indicava, pela remarcação de preços anunciada em placas luminosas, de liquidação.
Pronto estava a retornar ao sono, ausentando-se da pândega que animava os consumidores, quando deteve-se ao se sentir observado. Era uma moça loura, de corpo esguio, maneiras delicadas, olhos grandes e claros, a fitá-lo com insistência, numa ternura a que não estava habituado.
Puxou a gola do paletó surrado e ocultou-se fugindo do olhar tão insistente e incômodo. Sentiu-se oprimido naquela situação, como envergonhado de si mesmo.
Não compreendia como a sua andrajosa figura despertasse a atenção de tão meigo olhar. Irritou-se. Mostrar-lhe-ia as faces intumescidas e maceradas pela vida errante, os sapatos mastigados, o hilariante traje que o cobria... ela haveria de repudiá-lo com terror até às náuseas. Deixá-lo-ia esquecido, imerso em seu mundo, na sua intimidade.
Reluta no seu íntimo e arrisca um furtivo olhar; ela lá estava, insistente. Novas tentativas, o mesmo quadro, a mesma postura atenta. Vencido, baixa os olhos querendo sumir dali, não se move. O medo de ser repelido arrefece. Ganha coragem e a fita, tal como é, embevecido, num transe hipnótico...
Absorto ao rítmo tresloucado do centro nevrálgico da Paulicéia, um homem ama. Namora à distância aquela fada, que não o renega e lhe endereça tanta atenção e graça.
A tarde se finda. O movimento dos que retornam à suas casas, transeuntes, balconistas do comércio e bancários, vai se escoando, a cidade vai diminuindo o seu fluxo humano. Os coletivos trafegam, sentido centro subúrbios, lotados.
O fascínio do mendigo desconhece o tempo. Nos olhos o brilho da intensidade dos que têm sede de viver. Sua musa permanece inalterável, a olhá-lo fixamente. Ele, extasiado com a expressão desperta num sorriso inédito naquele semblante cético, é feliz. Já não é o mesmo que buscava na letargia do sono o engano do estômago faminto. Percebe-se cantarolando uma canção, a princípio tímida, depois ousada, em bom tom.
Levanta-se, chega perto dela, a voz rouca enchendo as ruas adjacentes semi-desertas despertando a curiosidade de alguns retardatários, a olha detidamente, querendo aprisionar na memória aquele encanto, depositando naquele último olhar de despedida todo o carinho, de que jamais supusera possuir.
Afasta-se, resignado, em passos largos.
Um vendedor, trajando uniforme laranja, adentra a enorme vitrina e começa a desmontar a manequim.
(publicado no jornal literário "Mosaíco", n° 01, abril de 1985, na PUC/SP)
* texto selecionado para figurar na Antologia de Contos Ab-Absurdo da CBJE, Rio de Janeiro, edição Junho/2010
29 comentários:
26/08/2008 01:20 - João Cyrino
Amei demais o texto!Não consigo nem sintetizar em palavras o quanto gostei!Maravilhoso!Você prende o leitor,sua narrativa nos envolve...A mensagem do txto é maravilhosa...Como demorei para te encontrar no Recanto...Meus parabéns!ADOREI!
(Recanto das Letras)
Parabéns grande poeta, pelo excelente conto.
Um grande abraço
Regis Paiva
Regis Paiva
rd_paiva@ig.com.br
15/07/2010
Que bom que o pobre não sofreu na vida mais uma desilusão.
Um belo conto de um espírito criativo, parabéns!
ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br
16/07/2010
Ai, que dor no coração! Na verdade, como um trovador, o vagabundo ama a quem lhe é impossível. Um conto muito doce! Bjssssss
Elisa Maria Gasparini Torres
emgari@yahoo.com
16/07/2010
Belíssimo conto, querido Poeta!
Grande e especial abraço!
Rose Felliciano
rttania@yahoo.com.br
16/07/2010
Parabéns caro poeta pelo lindo conto, meus sinceros aplausos,
J.A.Botacini.
Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
17/07/2010
O sonho chega a extremos que podem ser vistos como insanidade, mas também como sede de viver e fruto para as artes, como o lindo texto que você resgatou. Quem, em silêncio, não delira? Abs!
Francisco Abel Mendes d`Almeida
abelpuro@ig.com.br
18/07/2010
Mural dos Escritores
Portal Revista da Rede Sócio-Cultural de Escritores
Ana da Cruz Conferir a publicação no blog 'A DAMA E O VAGABUNDO (CONTO)'
O amor nos faz capaz de generosidades e também de sonhos... EDILOY ANTONIO CARLOS FERRARO nos surpreende em "A DAMA E O VAGABUNDO (CONTO)"
Publicação adicionada por EDILOY ANTONIO CARLOS FERRARO:
Sentou-se estirando as pernas, relaxado na posição de descanso. Os olhos injetados denotando noites insones e irregulares pareciam vagar a...
Link da publicação do blog:
A DAMA E O VAGABUNDO (CONTO)
Comentário de José Antônio de Azevedo:
Muito bom!. O seu estilo maneiro e a sua forma concisa de descrever as personagens, tanto neste como no conto "Despedida" demonstra uma facilidade capaz de prender o leitor ao texto. Mais uma vez, parabéns.
(Mural dos Escritores)
Comentário de Ana da Cruz:
Lindo! Prende a leitura e encanta do princípio ao fim. ..
(Mural dos Escritores)
Comentário de Su Angelote:
atrás Uma verdadeira fábula. Menina!!!!! Perfeito.
(Mural dos Escritores)
Comentário de José Lourenço Florentino:
Que genialidade!...
Conto espetacular!!!
(Mural dos Escritores)
Novo comentário de O_crime_perfeito ) na poesia "A DAMA E O VAGABUNDO ( CONTO)":
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Dificil reconhecer os caminhos quando os olhos estao vedados. Dorida fica a alma quando ve que tudo na passava duma miragem. Mas se nunca possui entao nunca perdi. Belissimo conto grande poeta. Espero m deliciar com mais contos seus.
--
http://sitedepoesias.com/poesias/59592/comenta
Um pobre coitado que teve seu momento príncipe
Comentário Enviado Por: Rita Teixeira Em: 17/11/2011
(BLOG DO LIMA COELHO)
Um conto na justa medida de criatividade, jogo e cenas. perfeito. bem difetente do estilo habitual do autor, prá mais rebuscado. Mas para mim é o melhor conto dele que já li.
Comentário Enviado Por: Charles Lamounier Em: 16/11/2011
(BLOG DO LIMA COELHO)
Nota mil. Meeeeeeeeeeeeeeesmo
Comentário Enviado Por: Ester Nolasco Em: 16/11/2011
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A benção menino Ediloy
Comentário Enviado Por: Goreth de Tabuí Em: 16/11/2011
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Muito bem bolado e articulado. É lindo, apesar de triste.
Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos Em: 16/11/2011
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Achei massa
Comentário Enviado Por: Paula Moreira Em: 16/11/2011
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Parece comum, mas é muito criativo com esse lance do manequim. Adorei.
Comentário Enviado Por: Gracinha Em: 16/11/2011
(BLOG DO LIMA COELHO)
É lindo!
Comentário Enviado Por: Talita Em: 16/11/2011
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Oi Ediloy, maravilha
Comentário Enviado Por: Elcana Batista Amorim Em: 16/11/2011
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Muito bonito. Parabéns
Comentário Enviado Por: Cleonice Nunes do Rego Em: 16/11/2011
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Beleza de conto
Comentário Enviado Por: Luana da Silva Em: 16/11/2011
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Um conto bem redondo. Curto, preciso e bonito. Um quê de nostalgia também, mas bem colcoada
Comentário Enviado Por: Ingrid Daniela Em: 16/11/2011
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Caro Ediloy, gosto muito do seu texto. E este, não por acaso, está especialmente bonito.
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 15/11/2011
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Gostei muito, talvez a dama seja mais fascinante que o vagabundo. Uma dama dessas, caro Ferraro, só na literatura.
Comentário Enviado Por: william porto Em: 15/11/2011
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Oi Ediloy, beleza de conto
Comentário Enviado Por: Iraneide Soares Em: 15/11/2011
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Muito criativo
Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 15/11/2011
(BLOG DO LIMA COELHO)
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