domingo, 1 de novembro de 2015





( 75º texto publicado em antologia de contos pela CBJE, Rio de Janeiro-RJ, lançamento novembro de 2015)

O lance certeiro

  
Aneraldo tinha por hábito relacionar tudo de sua vida à sua paixão futebolística, assim, pela tabela do campeonato, ele resvalava da segunda para a terceira divisão em sua atividade profissional... há exatos oito meses sem marcar gol, ou seja, finalizar a partida, concluir um negócio. Não havia torcida a favor de sua posição, mas, cobradores, quantos ! Não fossem alguns bicos de locação estaria fora da disputa há muito.

Apostara suas fichas naquela venda, tudo parecia perfeito, os lances elaborados, faltando finalizar e mandar a bola para dentro da rede, questão de detalhes... Tinha faro apurado, sabia quando a maré estava a seu favor, os dribles do destino acenavam auspiciosos, sem negativismos, mudou a sintonia do rádio do carro do noticiário sempre com assuntos nebulosos, só falando em crises de vários setores da economia...Queria livrar-se da aura escura daquele ambiente catastrofista, a torcida dele para ele, era favorável ao arremate triunfal, à volta por cima, ao lance certeiro...

Tamborilava os dedos no volante do carro, minimizando a ansiedade na música suave, otimista, como o povão na arquibancada vibrando pelo timão, seu Corinthians de devoção. Olhou despercebido pelo mostrador de combustível, na reserva. Como ele, parecendo estar no banco, à espera de ir para o jogo. Dava para chegar ao destino, depois veria o que fazer, teria que ter a paciência de um vencedor, a bola estava em seu pé, pronta para o arremesso que o tiraria da zona de rebaixamento...

Cumprimentou efusivo o porteiro do prédio, parecendo adentrar a arena da partida, envaidecido de sua performance, sentindo-se olhado pela multidão a saudar seu campeão... Chegara antecipado ao apartamento a ser mostrado para a sua futura ocupante, seu troféu ardorosamente esperado pela campanha vitoriosa de seu tino comercial. A partida estava ganha, os filhos concordaram com o preço, e o espaço era também o que desejava a senhora mãe que vinha assinar o contrato,e para conhecer sua futura moradia, venda à vista, comissão grossa em conta, assovios de olés da fictícia torcida...

Adentrou o imóvel, com o sol exuberante daquela tarde inundando os ambientes, arejando os pulmões de atleta pronto a entrar em cena e fazer sua partida triunfal, os ponteiros do relógio davam conta de sua antecipação na chegada, exatos quinze minutos antes, coisas de jogador cioso de seus compromissos, pronto para o aquecimento no campo.

Correu os olhos pelos cômodos, impecavelmente limpos, como a grama rente esperando pelo certame inesquecível... Toda aquela disfarçada ansiedade, no silêncio da atmosfera, o banheiro ostentando um rolo de papel higiênico dupla face, um convite ao desafogar, equilibrando seu ritmo, antes de entrar e ser ovacionado pelo seu público. Aquilo tudo era um convite implícito para uma boa defecada, a intenção já comunicada ao cérebro, no descer das calças, ainda restavam dez minutos...

Assoviava e ria consigo mesmo, levantando-se e apropriando-se do papel deixado pelo antigo inquilino em oportuna ocasião. Porém, há sempre poréns, a descarga da hidra estava travada, imóvel. Pensou em forçá-la mas ateve-se do inconveniente, caso ela estivesse com problemas, seria um incômodo imprevisto na porta do lance derradeiro... E agora, deixaria seu resíduo a boiar no vaso ? Como justificar aquilo aos pretendentes compradores ?  Rápido correu à área de serviço, e nada havia para colher água, nenhuma vasilha por improvisada que fosse.  Pânico na reta de chegada, como uma cãibra na musculatura da perna do artilheiro...

O melhor a fazer era recolher aquilo com as próprias mãos, afinal era dele mesmo, o que não poderia era correr o risco de impedimentos na grande área. Feito isso, embalado o volume repugnante, restava dar fim àquilo, e rápido...  Pressionado como se estivesse com o juiz de apito na boca aguardando a ação.

Da janela da sala, do 10º andar daria na porta de entrada do edifício,nem pensar; foi então para um dos quartos, cairia nas árvores do estacionamento, com sorte ficaria retido nas folhagens...

A jogada deu zebra na finalização...Coisas do destino, bola do pênalti chutada fora na decisão.

O seu volume feito um pequeno pacote, como um chute arremetido, não teve a rede desejada, e desabou sobre o vidro dianteiro do veículo de seus esperados clientes, que estacionavam o carro; e, indignados, com a fezes esparramada e mal cheirosa, saíram esconjurados, abandonando rápido o local, desistindo do negócio...

No caminho de volta, bandeira de seu time em baixa, sentiu o carro falhar. O combustível acabou próximo a um córrego, terreno ermo, duas traves improvisadas, de madeira, um campinho amador na várzea, era como se sentia como jogador....Então concluiu que fora, efetivamente, rebaixado na classificação...

5 comentários:

Anônimo disse...

19/09/2015 20:04 - Gerson Carvalho:

Belíssima metáfora futebolística da vida. O azar faz parte dela. Parabéns.

(Recanto das Letras)

Anônimo disse...

04/08/2015 16:22 - Tomás Santos

Muito bom! Um encanto te ler. Adorei, adorei! Abraço!

(Recanto das Letras)

Anônimo disse...


03/08/2015 17:47 - Ronaldo Rhusso [não autenticado]

Meus aplausos pelo excelente uso de cada alegoria futebolística! Conto excelente!

Anônimo disse...

Gostei muito de ter lido, apreciei!


Abraço poético e uma boa tarde!

Blogger: http://poesiaesonetosdegcrs.blogspot.com.br/2015/08/pai.html

Gerson Clayton Rodrigues dos Santos
gersoncrs41@gmail.com
10/08/2015

(Site de Poesias)

Anônimo disse...


Hilário! Parece uma comédia de erros com o Ben Stiller! Pobre Aneraldo...

Lucila Guedes
lumaguedes@ig.com.br
04/08/2015

(Site de Poesias)