segunda-feira, 17 de dezembro de 2012





PÁGINA VIRADA


Ao fechar a porta sabia que era apenas uma via, a saída. Ainda os olhos correram pelo ambiente, mudo, buscando lembranças, despedindo-se com o olhar. Imagens rápidas, desenrodilhando extenso filme, em segundos...

Fizeram daquele pequeno espaço um ninho aconchegante, como dois pássaros felizes, naquele recinto recriaram um universo só deles. Restava uma folha em recado incisivo, lacônico, sinalizando o  rompimento, acertado entre eles, como melhor a ambos. Letras pequenas, palavras sincopadas, quase um frio e protocolar recibo de entrega das chaves.

No quarto ainda rescendia, na imaginação, os suores dos corpos entregues e desnudos, após os inúmeros momentos em que se buscaram, nas ânsias dos deleites de pessoas que se querem, se desejam. Naquele silêncio de despedida apenas um recordar rápido, traindo nas saudades o que a realidade cuidou de sufocar.

Como poderia conter, na escassez  de poucas linhas, o que representaram um para o outro ? Como apreender em códigos verbais, o que transcendeu em sentimentos, grafados em palavras, desprovidas de emoções ?

Não sabia precisar em que ponto se perderam, na rotina a morte, o desamor? Em qual esquina da existência o amor feneceu, e se esqueceram como amantes, sendo indiferentes moradores do mesmo teto?  Sem lágrimas ou rancores, laços desfeitos, esgarçados na poeira da convivência, onde avultam as diferenças. Na verdade não saberiam  justificar o distanciamento, de lado a lado, como se renunciassem da relação, desistindo sem lutas. Como tanto vivenciado poderia ser reduzido a quase um bilhete ?

Como haveriam de se ver, em encontros casuais, apenas amigos com uma história de vida em comum, com beijos nas faces? Personagens de um filme vivido a dois, sem reprises, apenas, ao acaso, vagas recordações.

Logo aquele papel seria uma folha amarrotada, descartada do diário de duas vidas, envelhecida,  ofuscada, negligenciada, talvez abandonada num cesto de lixo, descartada, ou em alguma gaveta esquecida. Talvez, por acaso, algum dia, ressurgisse despertando lembranças do que foram. Ai, então, nas letras, nas frases incisivas, trariam,  atuais, intensas e vivas recordações. Lembranças caras, alegrias vividas, marcantes momentos, sentimentos. Contudo, já separados na fronteira do tempo, em  névoas esmaecidas.

Talvez tudo fizesse sentido naquele adeus transcrito, sucinta mensagem, versos cifrados, calando fundo, emoções renascidas em momentos, redemoinhos no sentir, sensações. O presente se distanciando, tornando-se passado, debalde as impressões negando-se ao esquecimento, querendo perpetuar-se, não se perdendo no transcorrer dos tempos, onde tudo vira nada, detalhes.

Se o ideal das palavras conseguisse superar o real dos dias, em redemoinhos no sentir, as sensações do presente permaneceriam, cristalizando o encanto, espantando as adversidades. Pois as escritas enfeitam a vida, infelizmente não mudam o curso das coisas. Como a areia da ampulheta, marcando épocas, não sendo instantes imprecisos, difusos, transitórios, mas a realidade inexorável,  contradizendo devaneios, reclamando providências.

Há outros caminhos a percorrer, cada qual no seu destino.
Separavam  bem mais que a bagagem física. Relembrariam para sempre aqueles instantes, despertados por qualquer razão. Viriam em uma música,  no aroma de um perfume, em uma fotografia, num sorriso desperto em outras faces. Onde tudo se mistura, num mosaico de emoções. Estariam presentes, mesmo na distância. Não se vive impunemente uma paixão. Ela voltaria em noites cálidas, manhãs  ou em tardes ensolaradas, ao avistar as ondas do mar, ou chuvas intensas, ressurgiriam do nada, do acaso, rememorados num misto de coisas, reviradas nos baús da existência, seria o ontem no hoje revivido. Apenas isso, reminiscências.

Há estigmas que marcam a alma, cicatrizes não perceptíveis no físico, indeléveis sinais pessoais, sombra nos olhos, tristeza nas expressões, arquivos íntimos, inescrutáveis a terceiros. Marcas que identificam a dor, suavizada no tempo, retemperada nas experiências da jornada.

Com a capacidade humana de se regenerar, como tecido ferido cicatrizado, reagiriam às intempéries. Restariam lembranças mas ressurgiriam em novas tentativas, tudo ficando como acréscimos de entendimentos, aprendizados. Mais aptos aos espinhos e tropeços,  tolerantes consigo mesmos e com os outros, vivendo novos amores, amadurecidos.

Dor hoje sufoca, amaina amanhã, esquece depois, no transcorrer dos dias, nas azáfamas das rotinas. Tudo passa. Como as águas correntes, levando seixos e pedras, a correnteza leva. O que resta, no fundo, o tempo desgasta, tudo passa.

Resignado, queria que continuasse consigo os momentos bons, as emoções sinceras. O mais esquecessem, os motivos da ruptura silenciosa, afinal tudo perece, estraga, convém que eles, na somatória das vivências, não se contaminassem, não estragassem o passado bom. Sentimentos contraditórios, quem não os têm? Que os superassem descartando nas lixeiras, afinal, o que não faz bem, faz mal, empaca, espinhos de mágoas. No íntimo, bem além das circunstâncias menos felizes, vale o que sentiram um pelo outro. O mal feito não se muda,não dá jeito. Que mudassem ambos, repaginando, alterando conceitos. Crescimento é permuta, tolerância, cumplicidade. Sentia-se leve naquelas considerações em solilóquios na visita última às quatro paredes que habitara.

 Nada que o transcorrer da vida, em constante movimento, não sepulte eventuais dores, ficando, apenas, as boas lições daquele amor acabado, uma página virada para ambos.

* Selecionado para figurar na Antologia de Contos: E O MUNDO NÃO ACABOU, editora CBJE/Rio de Janeiro/RJ, lançamento 20 de fevereiro de 2013. Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.


12 comentários:

Anônimo disse...

Comentário de Albérico Silva de Carvalho:

...poeta, que maravilhoso trabalho, tua estória retrata a vida, quão triste são as estradas paralelas impostas pela vida, que bom são as lembranças...
Ediloy, lê-lo faz benefício para minha alma, quanto deleite festejo, e muitas vezes amigo, atiças as minhas rimas após beber desse poço fecundo que é tua inspiração, parabéns.
Abraço fraterno.

(VERSO & PROSA)
20 de maio de 2011 00:19

Anônimo disse...


19/05/2011 19:09 - Capitão Anilto

Um belíssimo texto. Sempre admiro sua criatividade e precisão ao tratar temas da vida cotidiana. Esse texto é fantástico! A maioria das vezes o amor acaba e se transforma em desamor, por perdemos o momento certo de seguir cada um para um lado. Acomodamonos, e tentamos manter o que não pode mais ser mantido. O amor, com todo o fogo do desejo, pode acabar, mas não é necessário acabar também o respeito, a amizade, a consideração. Precisamos estar atentos ao ponto certo de separaçao, para presevarmos as boas coisas que foram construidas durante a vida em comum. Admiro demais teus textos. Abraços.

Para o texto: PÁGINA VIRADA (T2976334)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

20 de maio de 2011 00:23

Me atrevo a dizer que este é um dos seus melhores contos.
Você descreveu com muita sensibilidade e realismo o fim de uma história de Amor.
Suas observações e conclusões certamente levam o leitor que já passou por essa situação a se identificar com o seu texto.
Parabéns.
Adorei.

Aline Lima
ALINELIMACASTRO@HOTMAIL.COM
20/05/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

20 de maio de 2011 23:31

Caro poeta o tempo passa e a roda da vida gira. As paginas do livro da vida são folhadas e entre tantas, vez ou outra viram-se as paginas e novas folhas vão sendo preenchidas até que um dia tudo, tudo são (paginas viradas). Parabéns pelo lindo conto.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
20/05/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

20 de maio de 2011 23:32

Comentário de Ana da Cruz:

Somos sobreviventes e guerreiros, eternos a partir do sopro do Pai.

(MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

20 de maio de 2011 23:58

Atrevo-me a dizer que nunca houve amor e sim um querer de satisfazer uma fantasia, saciar um desejo e descobrir encantos , que ao serem descobertos foram perdendo a sensação de coisa nova, coisa que os olhos já viram, que as mãos apalparam. O dia de ontem é para mim uma página virada.

Parabéns!!!

ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br

Anônimo disse...


21 de maio de 2011 11:18

Gostei. Já li outros contos seus e gostei também. Parabéns

Comentário Enviado Por: Iara Neves Brandão Em: 26/9/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

26 de setembro de 2011 16:34

Taí, gostei mais da página virada de Ediloy que dos versos de Camões.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 26/9/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

26 de setembro de 2011 16:35

Muito bom. Diferente também

Comentário Enviado Por: Gina Em: 26/9/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

26 de setembro de 2011 16:35

Não é fácil virar as páginas da vida

Comentário Enviado Por: Carla Porto Em: 25/9/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

26 de setembro de 2011 16:36

Achei muito massa o teu conto ter o mesmo nome do soneto de Camões! Uma bela coincidência , com certeza!

Comentário Enviado Por: Helenice Freitas Em: 25/9/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

26 de setembro de 2011 16:37

Ediloy, parabéns! Um conto bem redondo

Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 25/9/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)