quarta-feira, 20 de junho de 2012


Olhar de fantasia

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Ao avistar a propriedade, depois de exaustiva peregrinação pelos arredores, dera-se conta do malogro, desiludido por ter se esforçado tanto, adiando compromissos para ter uma folga para visitar aquele lugar, ermo, pobre, deixado em herança pela velha tia. A irmã de sua mãe o tinha à conta de um filho, que não teve. Casada, não conseguiu engravidar, enviuvando, permaneceu solitária. Vivera como eremita, nunca os visitou, embora, amiúde, correspondia-se através de cartas, sempre enaltecendo a propriedade que habitava, narrando, ufana, de suas belezas.
Abriu desalentado a mala, buscando conferir através daquela última carta, a descrição do local que herdara, tão diferente do que testemunhava. Aquilo reclamaria tantos cuidados que não estava ao seu alcance, tampouco seria sua prioridade fazer investimentos inesperados, fugindo ao seu orçamento. Achava-se na condição de aborrecido com o favorecimento. Deixara-lhe um incômodo. Na expressão preocupada buscava entender com indulgência a parente querida.





Lendo aquela missiva, cogitava se não estivera a idosa delirando. A sua narrativa dava conta de um mundo fantasioso, tão diverso da realidade que presenciava. Muito tempo na solidão, provavelmente construíra um universo particular para se refugiar, embora vivesse na penúria daquele sítio abandonado. Dando azo às cogitações, procurava vasculhar o íntimo da sitiante solitária, buscando entendê-la em sua visão de belezas diante a uma situação nada propicia a tais encantos inexistentes.
O mato reinava sobre toda a extensão do terreno, a casa velha, desprovida de algum conforto, mantinha-se de pé, porém teria, praticamente, de ser reconstruída, dada a precariedade de sua conservação. A pobre  vivera reclusa por tantos anos, nunca revelando suas condições, aparentando ser feliz  naquela paragem desértica e esquecida. Sobrevivia da pensão do marido, falecido há anos, e da aposentadoria de professora do primeiro ciclo escolar. Por certo não dispunha de recursos para contratar empregados o que se via no aparente abandono.



  Poderia entendê-la em sua necessidade de fuga,  devaneava. Afinal, amargos seríamos não fosse a visão idealizada e afável, colorindo paisagens áridas e hostis, num verniz suportável. A solidão  a teria feito construir uma outra realidade, vivendo nas minúcias ocultos recantos, tingindo de cores lindas a vida nem sempre bela das mazelas sofridas. Tentativa de ver pelos olhos íntimos, complacentes, as agruras vividas. Formas de se situar na realidade, enfrentando íngremes caminhos, maltratados, nas visões da alma, adocicados, tolerados. Sua mente a teria levado, desatenta, alheia à rotina frugal, com certeza voou, aspirando carícias inexistentes. Maneiras de se conviver consigo mesma, em doce loucura. Visões encantadas, não decifradas, nos matizes invisíveis aos olhares crus da realidade.
Habitando aquela propriedade decrépita, isolada, como se fosse um castelo, na leitura única de seu universo, sensações e emoções tão delas, no único recanto a ensejar vida e beleza, o roseiral aprumado. Rosas belas, em cores vivas, em contraste com a natureza morta daquele chão ressequido e triste. Tonalidades sensíveis, naquelas flores, assumindo derivadas cores dos delírios próprios da florista morta. Sua existência apagada, rediviva em suas criações, adornadas no belo daquelas pétalas exuberantes de afagos aos olhos  de quem as contemplasse.
Aquilo trazia às suas cogitações pessoais, inquirições sobre o mistério, das diferenças entre iguais no padrão dos costumes. A descrição maravilhada naquela correspondência, a narrar com minúcias e belezas, o que apenas aos olhos dela existia, além do roseiral, nada confirmava beleza àquele quadro de abandono e desleixo. O belo pode estar no feio, a felicidade no triste e na tela vazia de imagens, o arco Iris, tudo dependendo da referência e da ótica de quem vê.
Sentado na varanda, sem saber como agir, dando asas às suas cogitações, tentando buscar razões para entender a ex- moradora, possivelmente vivendo nos derradeiros tempos entre duas situações distintas. Ora com os pés no chão das asperezas, noutras, vagando em sintonia com suas necessidades de achar aconchego no onírico dos sonhos. Razões para cogitações eram propícias ao ambiente, reclamando, antes, atitudes e não devaneios. Aquilo o constrangia, o obrigando a pensar em soluções rápidas, não dispunha de muito tempo, conseguira breve licença para cuidar daquela situação e ultimar providências.
Buscava captar no ar das paredes as sensações impregnadas por sua única habitante, por longos anos. Dado a devaneios, suas ilusões em fixos olhos no infinito, da noite que se avizinhava, com o horizonte decorado por majestoso arrebol, tingindo de um amarelo com tonalidades rubras, demonstrando o dia sob sol inclemente, que se despedia.



  Os sons da mata passaram a habitar o ambiente, grilos e coaxar de sapos, ou seriam rãs?, chegavam do brejo próximo ao riacho, com a cantoria de suas águas passando audíveis, quando tudo era silêncio. A lua cheia, por companhia, nimbando de luz prateada ao derredor.
Decisões reclamando urgências. A gleba não poderia ficar à deriva, logo poderiam tomar conhecimento do falecimento da dona, do abandono, podendo  ser invadida. Talvez fosse uma solução, abandonar o que não poderia cuidar, deixar a quem viesse contribuir com o seu trabalho, colhendo frutos, tratando a terra, produzindo alimentos. Socializando o que deveria ser de todos.
Oscilava em dúvidas, não querendo menosprezar o legado do qual a tia, com tanta ternura, quisera presenteá-lo. Se fosse para abandonar não teria deixado por escrito sua intenção, passando-lhe seu castelo de sonhos, na crueza da realidade, reclamando decisões.



  Na estrada visualizara crianças, com mochilas rotas às costas, dirigindo-se para a escola municipal, distante três quilômetros. Alguns vinham em lombos de animais, a maioria fazia o trajeto, ida e volta, a pé. Ás vezes suas figuras sumiam na poeira, sempre que passava algum carro.
Resoluto, enfim, tinha achado a melhor solução, trazia, além da pequena mala de curta permanência, um ramalhete de rosas, colhidas no roseiral cultivado pela florista sonhadora.



 Por escrito, lavrava a sua intenção de doar a terra para a construção de uma escola rural, encurtando o caminho dos filhos dos colonos para se educarem, deixando assegurado de que o roseiral seria mantido e cuidado. Por fim, teria o estabelecimento de ensino o nome da professora falecida, como homenagem.
Sobre o túmulo, depositava as diletas amigas, em tributo, retribuindo o zelo de anos, enfeitando sua sepultura com a graciosidade e beleza das flores tão queridas por sua tia.




* PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA CONTOS DE MAGIAS  E ENCANTAMENTOS ,EDITORA CBJE-RJ, EDIÇÃO JUNHO-2012.
* PUBLICADO NO BLOG DO LIMA COELHO- CONTOS, CRÔNICAS, POESIAS E ARTIGOS LITERÁRIOS - SÂO LUIZ - MA ( com mais de 5milhões de acessos). ILUSTRAÇÕES DE MEL ALECRIM, POETISA E CONTISTA. 

13 comentários:

Anônimo disse...

amei ler, dá pra você escrever um livro e tanto ok uma simples admiradora Leda

ledatj@gmail.com
03/06/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

3 de junho de 2011 18:06
Anônimo disse...
Ediloy, que maravilha e sensibilidade! Quando você escreve sobre os dilemas humanos, dos seres comuns, parece que acaricias pétalas de flores com suas palavras! Bjss

Elisa Maria Gasparini Torres
emgari@yahoo.com
03/06/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Caro poeta nem sempre os olhares conseguem ver a mesma beleza numa mesma paisagem. Para um olhar critico até mesmo o (verde) pode lhe arder os olhos. É por isso que a beleza esta nos olhos de quem vê. Parabéns pelo maravilhoso texto.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
02/06/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Gostei. Parabéns !

Comentário Enviado Por: Joelma Andrade Em: 20/6/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Ediloy, você é um craque na arte de escrever. Detalhe: esse rio da fotografia está limpo. Milagre.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 20/6/2012

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Anônimo disse...

Os olhos do amor distorcem a realidade.


Comentário Enviado Por: Paula Moreira Em: 19/6/2012

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Anônimo disse...

Ediloy, adorei o gesto do protagonista de doar o sítio para o povo do lugar fazer uma escola

Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos Em: 20/6/2012

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Anônimo disse...

Belíssimo, Ediloy!
Belíssima a grandeza do entendimento de que a terra é dos que dela precisam.
Meus cumprimentos. Sempre!

Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 20/6/2012

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Anônimo disse...

Diferente e bonito

Comentário Enviado Por: Luciana Cintra Em: 20/6/2012

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Anônimo disse...

Oi Ediloy, gostei
Comentário Enviado Por: Violeta Em: 20/6/2012

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Anônimo disse...

Oi Ediloy, um encanto

Comentário Enviado Por: Estela Em: 20/6/2012

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Anônimo disse...

Ediloy, um conto lindo e sensível. Depois de reviver os sonhos e delírios da personagem, homenageou-a como se pode homenagear uma professora: doou as terras para a construção da escola, com a exigência de que o roseiral fosse mantido. Talvez por isso, sabedora da sensibilidade do sobrinho, ela deixou a ele a herança dos seus sonhos. Parabéns.

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 21/6/2012

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Anônimo disse...

Gostei muito.

Comentário Enviado Por: Bárbara Heliodora Em: 24/6/2012

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