sábado, 19 de maio de 2012


A MUDANÇA




Oficializaram o sim diante a uma plateia repleta, convivas em uma festa numa noite quente de dezembro. O pano descia, e a realidade começava. Foram anos de namoro, conheceram-se no verdor da juventude, colegas de mesma universidade, de cursos diferentes. Ela, uma menina inteligente, bonita, morena de estatura baixa, olhos encantadores. Ele uma incógnita a viver seus conflitos íntimos, a começar pela indecisão de saber o que seria quando crescesse, embora já crescidinho. Curtiam-se nas salas privativas da biblioteca, onde requesitavam uma sala para estudos, ambiente propício para o sexo sem terem que pagar um hotel, apesar dos incômodos do chão duro coberto por jornais. A rotina do prolongado namoro encarregou-se de fazer nítidas as diferenças de temperamentos. Ela, exigente, o queria sempre por perto, dentro dos horários. Ele, relapso quanto ao relógio, habitualmente atrasado. Aquela situação o estrangulava, tendo que inventar desculpas repetidas vezes. Viviam, assim, respirando o mesmo ar, restringindo-se de viverem plenamente. Os demais, só os colegas de serviço. Alguém tinha que pedir "um tempo", ter amigos, conversar outros assuntos. O pedido partiu dele, mal entendido, como se fosse um rompimento. Cedo percebera o erro. Ela sentiu-se mal naquela proposta, e reagiu. O mesmo não ocorreu com ele, para quem precisava, apenas, de reaver amizades, sem interesse em outra pessoa. O drama teria início ali, ou será que apenas antecipava um abismo maior entre eles, já existente, mas despercebido por ambos até então? 
Fotos de namorados apaixonados Quando deu por si, ela já tinha olhos para outro. Solta, arejou os pulmões e respirou outros ares. O que poderia ter sido uma situação normal para pessoas bem resolvidas, para ele não foi. Emagrecera a olhos vistos, perdera a paz interior. Tanto fez, que voltaram. Mas as feridas permaneceram, cicatrizes submersas, e presentes. A vida a dois arrastou-se, foi um inferno. Os ciúmes dele, rancoroso do passado, mal se sustinha a irromper nas discussões. E até na intimidade, a sombra do "outro" o incomodava.

Fotos de namorados apaixonados Vagava naquela retrospectiva amarga, enquanto metia as poucas vestes na mala, como um autômato sem direção, os pensamentos atropelados, um misto de derrota e de recomeço incerto, enfim, um ponto final em um enredo já esgotado, sem se importar com o que deixava, livros empoeirados em caixas e alguns na estante. Dele ficaria isso, os livros, provisoriamente, até que arrumasse um local para removê-los. Poderiam ficar em um canto, despercebidos, como sua ausência.
Combinaram assim, ele sairia sem a presença dela, levaria o suficiente para não ficar nu, o mais, móveis, ficariam intactos na casa... Evadiria sem vestígios, ou adeuses. Enterrava-se definitivamente o insepulto cadáver do falido casamento, do qual restaram um álbum de fotografias e uma fita de vídeo cassete na representação de um espetáculo feliz, recordações de um dia que procuraria esquecer.

Debalde a exaustão da convivência sem mais sentido, ainda existia um sentimento de falência no ar. Uma briga íntima no cair da razão, a ideia de que um relacionamento oficializado tinha que perpetuar, de ser para sempre, na tristeza e na alegria, tudo aquilo ainda ecoava nos valores herdados dos pais e avós. Mas nada daquilo servia naqueles momentos, onde a permanência naquela casa chegava ao término, findando qualquer possibilidade de reconciliação. Havia, ainda, que precisar alterar rumos, refazer os passos, recriar caminhos, fazer novas rotinas, reaprender a ser só, quer dizer a assumir realmente a sua solidão, não mais dividi-la com ninguém.
Mesmo com a dor nos acostumamos com ela, fazendo parte dos dias, postergando atitudes, evadindo-se de resoluções, protelando decisões. Porém aquela medida era extrema, definitiva. A mala feita não era apenas uma encenação temporária, como de tantas feitas, de reconciliações posteriores, então vivendo dias prazerosos de inúteis apostas em um futuro melhor. Como a vã possibilidade de reviver o que jaz enterrado, soterrado. Buscava-se o calor do corpo, no sexo, mas encontrava-se a sós ao buscar a alma.
Não foram felizes, iludiram-se. Aliás, não se conheciam, mesmo com anos de namoro e na condição de casados. Enganaram-se. Não havia exatamente culpados, apenas a noção exata de que eram estranhos um com o outro, como navegantes em uma mesma canoa, remando cada qual para um lado, rodopiando em círculos, não indo a lugar algum. Estiveram juntos, coabitando o mesmo teto, mas distantes em objetivos e cumplicidades. Eram alheios nos propósitos. Restava, contudo, uma incômoda sensação, de perda, ou medo do recomeço? Aquilo angustiava, o novo preocupava, exigia coragem de espanar poeiras de velhos conceitos e hábitos.




Sem despedidas, ensaios pronunciados inúmeras vezes, nem sempre em palavras articuladas, mas sentidas, presumidas, em gestos ou insinuações, como a areia caindo, lenta, na marcação de um tempo final. Antes que o ar já rarefeito da convivência desandasse pelo desrespeito, uma atitude, por sofrida que fosse, teria que romper os laços depauperados mas ainda existentes, por tradição ou vã esperança de entendimento. Aquilo, a permanência, doía , mexendo com a autoestima, aprofundando as feridas, arrastando-se interminável como uma sentença perpétua.
Como é difícil o desapego das coisas, mesmo nas condições mais adversas, temos o hábito de nos acomodarmos. O novo assusta, pelo inusitado, por exigir posturas e ações. Reaprender a andar em novos passos pode ser amargo e inseguro pela ousadia que nos cobra. Tudo que nos põe à prova, assusta, espanta velhas ideias sobre tudo e nos coloca em xeque, nos tira do aparente sossego de nossas acomodações, instiga a lutar por uma nova realidade.

 Aturdido nessas emoções desencontradas, cumprindo o combinado, a mala sem saudades, sem a presença na despedida, sem azedumes ou queixas, sem murmúrios, nada para segurar as lágrimas, nenhum sorriso que confortasse, nem arrimos para se apoiar, uma estrada nova a ser seguida, vencida, e só, finalmente, consigo mesmo...
Epílogo do esgotamento de um sonho mal vivido, a liberdade assustava ainda mais que as algemas da comodidade incômoda, por paradoxal que seja.
O táxi na porta, o destino e endereços incertos, uma nova empreitada, reivindicando forças que pareciam ausentes, apenas mais uma história mal vivida a ser recomeçada...



* iLUSTRAÇÕES: MEL ALECRIM, POETISA/CONTISTA, BLOG DO LIMA COELHO, SÃO LUIZ / MA - BLOG DO LIMA COELHO - POESIAS, CRÔNICAS, CONTOS E ARTIGOS.

17 comentários:

Anônimo disse...

Minha admiração por você cresce muito meu caro escritor.
Parece-me um testamento de sentimentos mal vivídos.
Coube-me bem, como se fosse feito para mim.

Lindo teu texto. E que verrossímel
Se me permite vou postá-lo em meu blog.

Abstrata
10 de abril de 2011 11:15

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz:

Em busca de nós, em busca de tudo, tantos tropeços no caminho... importante continuar. Derrotados são os que desistem.

(MURAL DOS ESCRITORES)
11 de abril de 2011

Anônimo disse...

Oi, Ediloy, Bom Dia

O engraçado dessas "mudanças" é que após algum tempo percebe-se que em nada mudamos, cobramos e não gostamos de ser cobrados, se cada um refletisse e respeitasse as diferenças, perceberiam que as mudanças precisam ser internas, no coração... muitos aplausos...

Grande abraço, Meu amigo

Pedrinho Poeta
pedro.poesia@hotmail.com
12/04/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

12 de abril de 2011 09:46

Caro poeta o texto nos fala sobre os inúmeros (contos) reais que se apresentam em "carne e osso" neste nosso cotidiano cruel. No altar tudo é festa tudo é sim, porem na vida a dois as diferenças aparecem e quase sempre não são respeitadas, então a mudança por mais dolorosa que seja se apresenta como ultima e única "opção". Texto realista e muito bem elaborado, meus mais sinceros aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
11/04/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

14/04/2011 21:31 - Capitão Anilto

Por pior que seja deixar uma vida já acomodada, sempre há uma oportunidade de recomeço e uma esperança que dê certo dessa vez...

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

Arretado, doce e bem escrito

Comentário Enviado Por: Eurípedes Em: 19/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

O escritor domina o ritmo do contar estórias

Comentário Enviado Por: Lavínia de Moraes Em: 18/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Entrei no conto. Muito bom

Comentário Enviado Por: José Alcestes Em: 18/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

PUtz, massa demais!

Comentário Enviado Por: OO Em: 18/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Maravilhoso!

Comentário Enviado Por: Ingrid Daniela Em: 18/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Olá, Ediloy, um conto das profundezas do
sentir e do agir humano.

Comentário Enviado Por: Edna Munhoz Em: 18/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Triste e bem escrito.

Comentário Enviado Por: Elisa Em: 18/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

As ilustrações deram muito vigor ao texto, que já é de primeira

Comentário Enviado Por: Talita Em: 17/5/2012


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Arrebentou, Ediloy. Agora essa ilustração do isqueiro que acende um coração é de tirar o fôlego.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 17/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Parece que fazer experiência de vida a dois antecipadamente, também não garante um casamento de sucesso. Que assunto mais complexo esse! Muito bem escrito. Abração

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 21/5/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

14/04/2013 23:18 - Szzamira:

Obrigado amigo poeta pelas sensíveis palavras para o conto "Despertar" li seu conto "A Mudança", pungente mas terno e sensível, parabéns poeta.Um abraço,Szzamira

Para o texto: A MUDANÇA (T2898881)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

21/07/2013 19:33 - Dona Iaiá
Na minha opinião, os contos mais gostosos de se ler são justamente os que retratam cenas da realidade, das pessoas comuns. Contos que, quando lidos, nos fazem lembrar de amigos, parentes distantes, semi-desconhecidos...Eu, particularmente, sou suspeita ao comentar textos assim, pois são meus favoritos! Muito bom, muito tocante, muito psicológico. Parabéns! Grande abraço.

Para o texto: A MUDANÇA (T2898881)

(RECANTO DAS LETRAS)