sexta-feira, 25 de maio de 2012

A DESFORRA


  Ágeis como feras, produto da necessidade a astúcia. O velho tomba ao chão, cabeça temerosa deitada na calçada, medo de reagir, 65 anos, calvície acentuada, a lente esquerda do óculos, partida. Chapéu de feltro, à distância.


 Um monte inerte, inferior a uma criança, porque cônscio da fragilidade e do perigo, da impossibilidade de defesa. O corpo desajeitado não obedeceria uma reação repentina, com o coração sujeito a uma síncope abrupta. Não bastasse a posição deprimente, em decúbito ventral, feito um bêbedo qualquer, o incômodo de um filete rubro a escorrer pelas narinas, espalhando-se pela face toda, manchando a camisa azul-clara, impecavelmente limpa.
Aguardava em suspense o saque. Deveria ter umas poucas notas na carteira, uma foto da neta, o velho relógio de corrente. Nada restava a fazer além de quedar-se, feito fantoche, à vontade dos marginais, aguardando a decisão de seus algozes. Discutiam. Jovens, no máximo três, falando rápido, linguagem cifrada de gírias, não conseguia concatenar os fatos, a audição falhava. Ficou em crise, mergulhado num julgamento tolo de sua inutilidade, aspirando as imundícies da via pública.


 As imagens sucediam-se em sua mente, dando conta da situação. Dispensara o chofer e resolvera fazer um passeio sozinho, há tempos não se dava ao luxo de ficar consigo mesmo. Viera desprevenido de qualquer salvaguarda, afinal o parque sempre foi bem iluminado, não oferecia perigos. Mas, pensava agora, nenhum lugar, exceto nas muralhas da sua nobre residência, ou no carro blindado com motorista, era seguro. Era o tal submundo, aquele que sorvia entretido nos noticiários, pelas manhãs, no saboroso café, seja lendo as histórias policiais mais bizarras ou mesmo mudando com o controle remoto em busca de novos espetáculos na televisão... Aquela escória oferecia sempre espetáculos permanentes! Estranho como se divertia com os escabrosos relatos daquelas vidas tão distantes de seu mundo privado e acolhedor.
Mas agora ali estava deitado na via pública e cercado pelos marginais. Não era um relato acontecido com estranhos, ele estava no centro dos fatos... Arrepiou-se. Pensou rezar em pensamento e viu que não sabia uma oração em seu sentido total, sempre as repetira, enfadado, nas raras cerimônias religiosas. Antipatizava-se com o pároco, sempre recheando os sermões com as questões sociais, da distribuição de renda e da fraternidade...coisas de comuna disfarçado de padre ! Parecia a encarregada do setor de ferramentaria da fábrica, reivindicando pelo emprego de 90 operários a serem dispensados pelo desmonte do setor. A insistência foi tanta, alegações de que seriam famílias vitimadas pelo flagelo do desemprego e da argumentação de remanejar em outras secções, tal a petulância que a própria também acabou inserida no rol dos demitidos. Era o que faltava, aquela fulana tentar ensinar administração de custos na sua empresa! Questão social, sempre ela! Pois que dela cuide o governo, eleito pelos miseráveis, ao empresário bastava garantir os empregos e os impostos, que não eram poucos...


  Quis morrer, simplesmente. Pensou seriamente em uma atitude defensiva e se reteve assustado, procurando alternativas para manter-se vivo, tentando valorizar a própria existência, carcomida e insignificante.
Inerte, infeliz como um animal acuado, sentiu as mãos lhe apalpando o corpo, arregaçando bolsos, invadindo intimidades. Não reteve as lágrimas, mescladas à poeira e ao suor do rosto. A garganta ressequida, engolindo saliva grossa e vermelha, retendo, a custo, um pigarrear. Permanece impassível, paralisado pelo terror e pelo prudente instinto de sobrevivência.
Num ato conjunto o viraram de frente. Maior então a vergonha. Fitando-os, cara-a-cara, uns meninos ainda, donos de sua vida, responsáveis por sua sorte. Toda a existência fragmentada em minutos, a reflexão lúcida, o orgulho ferido. Um final só imaginado pelos deserdados de qualquer chance, como aqueles garotos, personagens párias da sociedade, vivos protagonistas dos hediondos dramas lidos nas manchetes do jornal matutino, leitura saboreada com o café da manhã, no aconchego do lar, imune às ameças do submundo, universo alheio e distante. Mundo proscrito de meliantes, prostitutas, em todos os níveis da escória social.
Repentinamente, invadido pelo pavor da morte, em tudo semelhante a de um suíno, ao pressentir a lâmina do canivete de um deles, teve um grito seco, suplicante, de piedade.
A sua desventura agigantou-se, sentiu-se pequeno. Implorou perdão, como se responsável por tudo aquilo. As faces mutiladas, infâncias abortadas, sonhos miseravelmente desfeitos. O opróbrio a envenenar-lhe a alma, a omissão a corroer-lhe as entranhas da consciência, a casta que em pensamento quis renegar, a vida fausta e cega...
Os rapazes riram do desgraçado, aturdido e envergonhado.
O líquido acre e fétido escorrendo pela face, ardendo nas escoriações: a urina das personagens das páginas policiais, pelo pagamento dos espetáculos saboreados nos cafés matinais...

 * TEXTO ESCOLHIDO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA " O MELHOR DO CONTO BRASILEIRO", EDIÇÃO MAIO/2010, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, CBJE-RIO DE JANEIRO, RJ.   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.


* ILUSTRAÇÕES: MEL ALECRIM, POETISA| CONTISTA - BLOG DO LIMA COELHO -POESIAS,CONTOS CRÔNICAS E ARTIGOS LITERÁRIOS - SÃO LUIZ - MA

 

16 comentários:

Blog do Ediloy disse...

UAU! Adorei o conto, saborei a construção da linguagem e da temática! Em minha opinião, todos os personagens párias da sociedade, os meninos marginalizados o outro, um alienado da verdade . Visualizei o susto do senhor, com certa pena, ao se deparar com a realidade cara a cara. Aquela da qual ele ria confortável em seu mundo. Bem feito pra ele hahahahahaha


Beijos com carinho!
Elisa Maria Gasparini Torres
7 de maio de 2010 13:53

(SITE DE POESIAS)

Blog do Ediloy disse...

03/09/2008 11:55 - José Torquato

Demais mano, sinto como estivesse a acontecer ao vivo e a cores, penso em que escrevo sôbre a velhice neste mesmo recanto. Penso no rei Pelé em seus mil gols o apelo as crianças e a juventude abandonada à época, que hoje são os mestres atrás da carceragem usando e ensinando aos nossos garotos. Penso que a salvação pela educação está
tardia. E nossos brasileirinhos não se levantam para dar lugar aos idosos, fazem lavantar isso sim, as mãos em rendição. Das lições humanitárias de todos os tempos, sobrou só o egoísmo e a desumanidade odienta. Valeu mesmo mano, que Deus te conserve lúcido assim.

( Recanto das letras)

Blog do Ediloy disse...

03/09/2008 10:08 - Marcio Reis:

Excelente texto. O mais detalhista que já li neste site, que já e nossa segunda casa. Parabéns pelo grande talento! Abraços...

(Recanto das Letras)

Anônimo disse...

13 de maio de 2010 20:10

Grande Poeta, Parabéns pór mais esta obra literária maravilhosa que descreveste.
Um grande Abraço

Regis Paiva
Regis Paiva
rd_paiva@ig.com.br
14/08/2010

(SITE DE POESIAS)

Blog do Ediloy disse...

14 de agosto de 2010 15:26

Olha meu amigo, sinceramente, depois de ler um conto desses eu paraliso, estou em transe...rs, sem chance de falar o que quer que seja...rs.. SENSACIONAL... Beijoss

Xama
xama_12@hotmail.com
13/08/2010

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

14 de agosto de 2010 15:27

Meus parabens,seu texto é muito bom, muito bom mesmo

Pastor
altair.poesia@hotmail.com

(SITE DE POESIAS)

Blog do Ediloy disse...

O fato de ler em Si , ja é muito construtivo, e quando nos deparamos com textos deste nivel, é preciso ler, reler, triler
e por ai vai...rs..O coração vai acelerando e adrenalina projeta tudo na mente. Senti as mesmas sensações presente, quando passei por situação parecida aos vinte e poucos anos. Meu coração ainda está descompassado...rs...
"DESFORRA" extraordínário. Íncrível mesmo. Isso é que é talento. Aplausos!

Beijoss
Xama
xama_12@hotmail.com
13/08/2010

(SITE DE POESIAS)
14 de agosto de 2010 15:29
Anônimo disse...
Retratas a nossa realidade. Desnudas a sociedade fausta. Trazes a tona o nosso dia a dia. Mostras o que deveria ser motivo de orgulho de um povo; os opostos. Sim opostos!
A juventude o futuro de uma nação e a velhice um cabedal de sabedoria e de moralidade.Nos meios dos chamados selvagens as crianças são criadas pelas mães e quando jovens os pais os educam a serem responsaveis pela continuação da tribo, não restando espaço para desvio de sonduta
Quanto aos velhos, são os depositários do conhecimento da vida e dá moral e é função deles transmitir aos mais jovens todo conhecimento. Esses são os dois oposto; a juventude o futuro e o velho a tradição e o saber. Mais em nossa sociedade o que acontece?

Parabéns e obrigado pela boa leitura!
ubirajara
caravanapoeta@yahoo.com.br
14 de agosto de 2010 15:30
Anônimo disse...
Bom conto. Sente-se a aflição dele, da brutalidade insana, porém achei um pouco empolado. Parabéns!

22/9/2011 08:03:22 | | Cilas Medi

(ESQUINA DO ESCRITOR)

Anônimo disse...

É assim o mundo cão.

Comentário enviado por Talita em 23\05\2012

Anônimo disse...

Oi,Ediloy, retratos da vida.

comentário enviado por Lenir Sacramento em 23\05\2012

Anônimo disse...

Olá, Ediloy, a crua realidade do nosso cotidiano.

comentário enviado por Rita Teixeira em 23\05\2012

Anônimo disse...

Duro, cortante, porém real.

Comentário enviado por Edna Munhoz em 23\05\2012

Anônimo disse...

Um conto extraordinário, meu caro Ediloy.

comentário enviado por William Porto, em 23\05\2012

Blog do Ediloy disse...

Muito forte, porém real.

Comentário enviado por Jorge Andrade em 22\05\2012

Anônimo disse...

Um conto que dói na alma da gente.

Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 24/5/2012


*Leila Jalul, autora de vários livros, escritora acreana.

Anônimo disse...

Ediloy, você retratou muito bem o que mais dói quando se fica nas mãos de deliquentes: o vilipêndio, a impotência diante da covardia da arma apontada ou mostrada, é o sentir-se impotente na humilhação. Infelizmente, nos dias de hoje, estamos todos expostos a esse tipo de violência. Parabéns. Abração

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 03/6/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Ediloy: É triste ver um homem acuado. Parabéns!

Comentário Enviado Por: Carlos Antonio Em: 04/6/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)