quinta-feira, 22 de março de 2012

ELEGIA AO DEFUNTO ANÔNIMO ( CONTO )



Lá estava estendido, parecendo bicho acuado, um riso profundo, um vago no olhar, uma história vulgar, como tantas.



Ferida feia, monte inerte, um contratempo ao trânsito caótico, esparramado na via pública como em um abraço no chão de betume, redenção de um ébrio em fim de uma noitada intensa.... O piche preto, face a face, um beijo no asfalto. Peito desfraldado, imberbes cabelos, alourados sujos, filetes rubros empastados... Um sonho estranho, uma fita de cinema ou crônica policial. 


Das atenções alvo comentado, enfim por uma vez notado, percebido, no incômodo que seu corpo dilacerado, exposto, visível, deplorável, apresentava aos olhos de todos... para alguns condolências, noutros repugnâncias, mas, para o certo ou errado, tinham que vê-lo , não havia como escapar, estava denunciado como um morto anônimo, mais um, a ser retirado do caminho. Mas estava na passagem, reclamando providências, existindo por fim na inexistência, era alguém que pedia, em reclamos mudos, socorro.


Incomodava, era um semelhante, quisessem ou não, também um mortal.


Curiosos na anatomia do corpo decrépito, a veia saltada no pescoço – será que gritara ao morrer ?


Turba mansa aturdida, seguindo passiva, imersa em si, evasiva, nada mais era que um contratempo, incidente de percurso, já acostumados.
No curso da massa caminham, seguem unidos, desconhecidos, em suas rotas , distraídos. Onde a morte de um mendigo, não era fato anormal, mas algo corriqueiro, banal.


Metidos, enfiados em si mesmos, sufocados na pressa de chegar a algum lugar de nome lar, onde frente à televisão vão cochilar e acreditar, esquecer se esquecendo. Postergando anseios para depois, adiando a vida para um amanhã talvez. Fazendo contas, projetando planos, dilatando sonhos. Arquitetando no hoje um futuro além, em diálogos sussurrados, comendo fatos, boatos em arrotos. Falas mal digeridas, desatentas, confundidos em alienados apetites.


Como toda rotina, despertam amanhã, reiniciam a marcha – morto, qual morto ? O de ontem, ah, já sei !


Reiniciam a caminhada, ilhados em si, solitários na multidão,apressados, compassados, compenetrados, atolados nos coletivos, aturdidos em seus caminhos e destinos


Na sua solidão de cadáver, reconheceu o cuidado de um transeunte, por compaixão ou para encobrir aquele escândalo, abriu um jornal e o cobriu, sentia-se reverenciado naquele dúbio gesto, para tirá-lo das retinas enjoadas ou preservá-lo na sua intimidade...


Tantos olhares atraiam a sua andrajosa figura semi nua, ofuscada até então, tantos comentários, inquirições sobre os fatos que culminaram com aquela tragédia, nunca fora o centro de atenção alguma, nem mesmo de si tomava ciência, a vida era como se apresentava, uma busca insana para abrigar-se em algum vão de marquise,fugindo da chuva ou do frio, um pão seco que fosse para acalmar o estômago, nada além...


Ah, se soubesse, sonhasse viver, que tantas pessoas, transeuntes e motoristas, parariam para vê-lo, desejaria ter vivido mais, talvez como alguém menos insignificante...da vida não um trânsfugas à deriva de si mesmo, imerso na insanidade de seus dias, na falta de objetivos e de esperanças... Sem um teto e entes queridos, na fartura de suas carências.


Talvez viver como vivem tantos, os tidos como normais, sendo alguém na multidão, ter sido mais que uma sombra, a estender as mãos imundas para colher esmolas, dadas não pela caridade espelhada na solidariedade humana, mas para se desvencilhar de sua figura repulsiva. Tantas vezes o poupavam de pedir, atiravam as moedas temendo que se aproximasse, não precisava pedir, dispensavam ouvi-lo...as moedas caiam pelas calçadas, e as recolhia, até que somadas representasse algum valor para se comer algo. Que alguém, por caridade, pudesse comprar para ele, pois não o deixavam entrar em lugar algum, pelas rotas vestes e odores que exalava. Então, mesmo com o dinheiro para pagar era expulso, como um animal empesteado, um ser desprezível e abandonado.


Ah, talvez o mundo não lhe fosse assim tão indiferente, tampouco causasse repulsas como imaginava...se tivesse imaginado que olhariam para ele, teria tentado viver mais, não sendo apenas um mero número, um a mais, que era...


*publicado em livro na Antologia Seleta de Contos, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, julho de 2012.  Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

* Publicado no Blog do Lima Coelho - Contos, Crônicas, Poesias e Artigos Literários, SÃO LUIZ-MA, (6milhões de acessos na internet).

18 comentários:

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz em 26 fevereiro 2011 às 20:19:

Apenas um atropelado, que ninguém sentiu falta, um indigente que talvez nem tenha um enterro... ..

(MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

1 de março de 2011 22:45

Amigo Poeta.
Brilhante como sempre.
Teu texto prende a atenção, mostra uma sequência de fatos e idéias que nos levam a refletir.
Lamentei junto como o seu pobre personagem pela vida desperdiçada.
Senti o peso do olhar impiedoso do mundo. E me perguntei
quantas vezes lancei esse mesmo olhar para o próximo.
Obrigada pela oportunidade de reflexão.

Aline Lima
ALINELIMACASTRO@HOTMAIL.COM
28/02/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

1 de março de 2011 22:47

Poeta Ediloy!

O seu conto retratou o cotidiano da vida de quem vive nas ruas.
Só chama a atenção depois de morto não por ser uma criatura de Deus, mas por estar atrapalhando o caminho.
Deu para escapulir uma lágrima enquanto lia, é deveras triste mas infelizmente real.
Parabéns poeta!

Abraço!
Carol Carolina
carolinafagundes1@hotmail.com
28/02/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

1 de março de 2011 22:48

Caro poeta esta narrativa destaca alem do trágico fato o quão mórbido é a curiosidade humana. O texto nos revela também que por vezes os indivíduos só são tem algum valor quando estão representados numa linha curva de um gráfico onde as estatísticas são mais importantes do que a própria existência humana. Maravilhoso seu conto, ele infelizmente expressa o cotidiano de forma nua e crua, parabéns... Pelo lindo texto. O seu talento nesta modalidade literária é incomparável.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
27/02/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

1 de março de 2011 22:48

Olá Poeta! Não sei se conseguiria ter a sua sensibilidade em questão as razões sociais que assolam esse país. Sou emotiva para as catástrofes. Choro com tragédias e crimes hediondos. Mas ainda não consigo me sensibilizar sem saber a causa e o motivo do que leva o ser humano a decadência ou a falta de solidariedade descrita no texto. Gostei muito. Abçs!

Lucélia Lima
lualmarques@hotmail.com
04/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

4 de março de 2011 16:23

Honrável POETA.
Não vou discutir o mérito, por que isso já foi feito, com muita competência. Mas a forma...
Essa gratificante obra, que você, modestamente chamou de "conto", não é senão, misto de poema, crônica, conto...
A intensidade com que você mergulhou na psiquê da sociedade, retratando a "nossa" hipocrisia e indiferênça...
O texto é inusitado e unico na forma; além de expor obscenamente, toda a miséria da alma humana.

Obra-Prima.

Bruno
andreebrum@ig.com.br
05/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

21/05/2011 11:43 - anabailune

Que beleza de conto! Alguém que viveu e morreu anonimamente, mas que de repente tem seus inevitáveis cinco minutos de destaque, que não chegaram a ser de fama, pois que continua sendo apenas mais um... você é um excelente contista, realmente ahistória prende a atenção, pois ficamos desejosos de saber quel o desfecho desta cena do cotidiano, que hoje em dia, torna-se cada vez mais comum, mas que pelo menos, aqui pode ser retratada com uma certa poesia.

Para o texto: ELEGIA AO DEFUNTO ANÔNIMO (T2983958)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

8/06/2011 18:05 - Zé Beto

A poesia e a tragédia caminham neste belo e pungente conto. Você leva o leitor caminhar ao redor daquele corpo gélido com poesia e reflexão. Parabéns Ediloy.

Para o texto: ELEGIA AO DEFUNTO ANÔNIMO (T2983958)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

Humanismo puro

Comentário Enviado Por: Patrícia Gurgel Em: 21/3/2012


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

De muito sentimento humano. Muito humano

Comentário Enviado Por: Edna Munhoz Em: 21/3/2012


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Fiquei deprê

Comentário Enviado Por: Janaína Amorim Em: 21/3/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Nooooossa, deu um nó na garganta

Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 20/3/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Estranho. Mas acontece assim mesmo

Comentário Enviado Por: Paulo Henrique Em: 20/3/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Triste, porém real

Comentário Enviado Por: Helenice Freitas Em: 20/3/2012


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Sei não, mas na minha opinião Ediloy escreveu uma reflexão profunda em forma de ficção. Achei arretado seu texto, camarada.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 19/3/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Muito forte, por demonstrar a correria, o desdém de quem passa

Comentário Enviado Por: Janaína Amorim Em: 19/3/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Ediloy: Parabéns pelo texto bem elaborado. Um show!

Comentário Enviado Por: Carlos Antonio Em: 23/3/2012

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Paulo Giovaneti Martins:

...tá um corpo estendido no chão!

(VIA FACEBOOK)