quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A B S O L V I Ç Ã O ( CONTO )



Naquela efeméride funesta, compareceram muitos. Por diferentes razões ladeavam o cadáver, ornado com as flores a rodearem-no, emprestando um solene ar de despedidas ao defunto.  Aparência estranhamente angelical, maquiado, cercado de lírios brancos, antes recordando uma criança inocente  e não a um adulto na meia idade. Quatro grandes velas, em chamas bruxuleantes, erguidas em castiçais de metal, delimitavam as extremidades do ataúde. À cabeceira, a imagem com um Cristo Crucificado, como se olhando o inerte corpo velado, esperando-o de braços abertos. 

Na imperturbável calma ambiente, cada qual trazia seus pensamentos para com o homenageado. Raras lágrimas verídicas verificavam-se. Contudo, guardavam respeitoso silêncio. Se as mentes, todavia, fossem ouvidas abertamente, por certo as impressões não seriam as mais recomendáveis, mas, na hipocrisia da mudez, compunham um cenário apropriado para o evento.

Cada qual mergulhado em suas cogitações, só propícias nestas ocasiões em que a efemeridade da existência e das ilusões ficam latentes no íntimo de todos. Diferentemente das alacridades de qualquer festa, das inúmeras patrocinadas pelo então anfitrião, aqueles momentos convidavam, compulsoriamente, às reflexões menos levianas.

Nenhum comentário ouvia-se, as pessoas traziam vestes sóbrias, aparentemente enlutadas. Nas feições  denotavam recolhimento, como se estivessem em secretas orações. Cada um no inescrutável de seus recônditos íntimos analisavam livremente o sucedido, nem sempre amáveis ou tolerantes.

No segredo de cada consciência, reviviam-se cenas onde o morto, vivíssimo, se movia, em atitudes imponentes e reprováveis, sendo julgado naqueles momentos, onde a ira da incompreensão,  sem censuras e testemunhas, cobrava ajustes e acertos, no desdém da compaixão humana.

Ora avultava o inescrupuloso e frio capitalista, onde o lucro era sempre a meta, não importando os fins. Ou o renegado bastardo, reconhecido à força da lei, reivindicando parte na fortuna legada. Mulheres enlutadas, além da esposa oficial, diversas outras ocultas, muitas consorciadas ainda com seus esposos ali presentes ao funeral, traziam lembranças de aventuras inesquecíveis com o féretro velado, boa vida e generoso com as amantes.  Os filhos, displicentes, pareciam cumprir uma encenação ensaiada, onde tinham que manter a postura de recato e discrições.
A cônjuge, aparentando equilíbrio, ereta, parecia vagar em reminiscências distantes, o véu leve e escuro, retratando os pêsames vivenciados.
A mãe do falecido era a exceção, realmente lamentava em breves soluços, a ausência do filho.
Cumpriam à risca o figurino desenhado para a ocasião, como se aguardassem, pacientemente, o passar das horas para o sepultamento, e livrarem-se dos incômodos daquela cerimônia fúnebre. 
Muitos não arredavam o pé dali, antes, pareciam fazer questão de demonstrar consternação pelo velório de um suposto amigo. Na vaidade da ostentação significando os privilégios do gozo da intimidade de importante homem da sociedade, interesse almejado pela maioria dos presentes.
Orações foram ouvidas, apenas com a regência do padre, especialmente convidado para a missa de corpo presente, ainda assim repetidas palavras, desprovidas de real emoção ou devoção.

Se pobre fosse o legado material, por certo gozaria o despedido de raras lembranças. Ao pó veio e ao pó retornaria, esquecido simplesmente. Pelo menos não ouviria nos recessos de sua memória imortal, as zombarias e maldições dos que ficavam. Raras defesas, isentas de vantagens, a advogarem a sua passagem. No mais, figurava como um homem ardiloso, sagaz e nada escrupuloso em suas ambições de dinheiro e poder, não conhecendo limites  e valores éticos.
O estar ali, no meio das atenções, diverso de uma manifestação de solidariedade e respeito,  figurava-se no centro de um tribunal em julgamentos, onde as mentes, gozando o benefício do sigilo, arbitravam penas pesadas, já que a justiça terrena, por compadrios e influências, o livraram de qualquer condenação.

Nada como o tempo passado, a esmaecer biografias carregadas. Honrarias e discursos encomendados ao sabor do protocolo das conveniências. Últimos atos encenados no palco da efêmera vida, de acordo com os usos e costumes, aquinhoados  em moeda corrente.

Enterrado o corpo, os despojos no ritual da despedida, como notícia envelhecida, a vida continua para os que ficam, para os que vão, resta o ostracismo das vagas recordações. Para o falecido, os enganos de sua trilha, absolvidos, relevados, amortecidos no esquecimento. Anistia recebida pelo desprezo, não por méritos e reconhecimentos, mas pela ausência definitiva.
Águas passadas, esmaecidas as memórias, resta na lápide a imagem santificada. De fraca e pecadora, só menções boas, cada vez menos real, até cair em vagas lembranças, ressuscitadas em mito santo, a figura de carne e de vícios...
Morta, por fim, a face humana.  

texto selecionado para figurar na Antologia Contos do Fim do Mundo, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, agosto/2011   Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora.

14 comentários:

Anônimo disse...

12/04/2011 09:10 - Célia Rodrigues

O ser humano,na sua fragilidade e inevitável mortalidade,o seu fim e sua inércia,descritos com muitíssima sutileza e arte.Parabéns!Grande abraço.

Para o texto: ABSOLVIÇÃO (T2900342)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

12 de abril de 2011 11:01

Caro poeta o texto narra com pujante fidelidade todos os acervos que cercam a ultima despedida do corpo presente à sua definitiva e eterna morada. Num misto de tristeza, indignação e até mesmo de indiferença todos vão de alguma forma traçando o perfil do falecido, e, sob
indulgências fervorosas vão os presentes pouco a pouco absolvendo o falecido de seus supostos pecados enquanto outros vão em mente dividindo os seus soldos patrimoniais. Fantástico texto, meus mais sinceros aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
12/04/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

12 de abril de 2011 17:45

omentário de Silvio José:

Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito sabiamente compuseram:
"[...]
Por isso é que eu penso assim
Se alguém quiser fazer por mim

Que faça agora
Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga
Para aliviar meus ais
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais".

Que os contos venham. Valeu.

(VERSO & PROSA)

Anônimo disse...

13 de abril de 2011 00:08

Oi, Ediloy, Bom Dia

Não sou muito chegado a velórios, justamente pelos motivos que Vc descreveu de maneira tão clara e real. O que somos quando estamos dentro de um ataúde prontos para sermos entregues aos vermes? Essa pergunta deveria ser feita à nossa consciencia todos os dias para entendermos que esse momento(morte física) é o mais significativo de todos, pois ´perdemos nossa máscara terrena e vamos encarar a verdadeira vida(espiritual) sem maquiagem...
Muitos aplausos..

Grande Abraço
Pedrinho Poeta
pedro.poesia@hotmail.com
13/04/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

14/04/2011 21:29 - Capitão Anilto

Como dizem alguns, todos são bons depois de mortos...

Para o texto: ABSOLVIÇÃO (T2900342)

(RECANTO DAS LETRAS)

Cleide disse...

Acredite firmemente no seu gênio criador, nas forças ativas da mente, e nas maravilhas do AMOR.....parabéns meu poeta, beijos.

Cleide

Anônimo disse...

Bem escrito, mas achei meio confuso. Tive de ler duas vezes para entender melhor


Comentário Enviado Por: Vlater Santos Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um conto filosófico. Muito bem enredado

Comentário Enviado Por: Bárbara Heliodora Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Muto bem escrito, mas basta por hoje de defunto. Resultado: não vou almoçar, só tomar uns usísques,

Comentário Enviado Por: william porto Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

A grande lição, para mim, do conto do Ediloy é "Honrarias e discursos encomendados ao sabor do protocolo das conveniências"

Comentário Enviado Por: Alice Matos Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Velório de rico a família deseja que termine logo para abrir o testamento e começar a briga

Comentário Enviado Por: HH Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Parabéns, mestre

Comentário Enviado Por: Depaula Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Muito gostoso de ler. Não tive dificuldades para compreender o conto

Comentário Enviado Por: Vitória Caldas Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Aqui em Tabuí cada velório é uma celebração. Eu gosto de ler sobre esses velórios das roças mineiras.

Comentário Enviado Por: Goreth de Tabuí Em: 29/8/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)