segunda-feira, 13 de junho de 2011

A JANELA ABERTA ( TEXTO P/TEATRO - 1 ATO EM 5 CENAS)



(LUZES DE SIRENES POLICIAIS E DE AMBULÂNCIA

VOZ EM OFF:    Atenção há dois feridos graves no interior do ônibus, parece que um meliante ainda está dentro do veículo, ficou preso na catraca em atitude suspeita , os demais evadiram-se do local...

(BARULHO DE UMA CELA SENDO ABERTA)

- Fique ai, que é o seu lugar !!!    ( empurrando o homem para dentro)

( encolhido, como se estivesse alheio ao que acontece) – Que será isso ? Meu Deus, deixei a janela aberta, se chover de novo, perdemos tudo como antes, por que fui esquecer de fechar a
janela ?

(olha ressabiado pelo local e senta-se, tímido, com as pernas cruzadas no peito, a cabeça baixa, como se falasse sozinho:

- Maria saiu cedo, levou a Aninha, hoje é dia de passar a roupa na casa da dona Matilde, pelo menos terão uma refeição completa, vai chegar tarde, tenho que voltar antes    da chuva, a janela ficou aberta...

- ( preso 1 se aproxima) – Ô chapa, qual foi a bronca ?

(silêncio)

- Curió, panaca, qual a tua bronca ?

-Sei não... ( respondeu assustado)

( Com voz ameaçadora)- Se fazendo de bobo, ou tirando uma com a minha pessoa, desgraçado fudido ? 

- Não senhor, não sei o que está dizendo...

-Quer dizer que está aqui de anjo, caiu do céu ? ( gargalhadas compartilhadas pelos outros 3 na cela)

( tremendo, sem saber o que responder)

- ( preso 2) – Deixa o traste, mano, o bicho ta mijando de medo...um bosta !

(risos) ( preso 1) -    Cuzão !    Bunda mole, viado !

- Toma ! ( preso 3 estende um cigarro) – fuma, que bom, relaxa, tu tá tremendo como vara verde, daqui a pouco tem um treco aqui e vai dar trabalho...e olha que eles não tão nem ai com a gente...

- Obrigado, moço, não fumo...
(preso 1) – Não fuma, não bebe, será que mete ? ( gargalhadas)

(ameaçador) – Tu quer falar o teu nome ou vamos te chamar de cuzão mesmo ?

-Antonio Francisco da Silva...

(gargalhadas) – Tu tá fudido, entrega rápido as coisas, quero ver a língua solta com os meganhas... Eles nem vão ter trabalho contigo, um merda ambulante...
Esses cuzões se borram e dão com a língua nos dentes, alcagüetes de merda ! ( levanta a mão como se fosse agredir)

( Preso 2 ) - Relaxa, Mano, o cara ta apavorado, não vê ?

(Preso 1, insistente, pega o homem que está sentado e o levanta devagar) – Tem que me dizer, o que tu fez, cagão ?    Aqui não caem anjos, só gente escolada, do crime, tá sabendo ? Então vai dizendo logo tua bronca, que tô perdendo a cabeça...

(Antonio) - Não sei ao certo... por favor, estou falando a verdade, me trouxeram para cá, pensei que me tiraram do ônibus para me socorrer mas me botaram na viatura, ninguém quis saber o que tinha para dizer...

- (Preso 1, sarcástico) – Jura, Não diga ! Ta ficando engraçado, ajuda a passar o tempo, e olha que temos todo o tempo do mundo para ouvir a tua versão dos fatos....des-em-bu-cha !!!

- Moços, eu juro que não sei ! 

( Preso 1) – Será que vai ter que tomar porradas para soltar a merda da língua ?

(vacilante) : - Eu estava no ônibus, não tinha o dinheiro todo para a passagem, acho que deixei uma moeda em casa, na pressa, além da janela que deixei aberta, sai sem o dinheiro todo da condução...mas o ônibus estava cheio e já ia longe de casa, então falei com o cobrador e ele concordou em me deixar passar por baixo da catraca... mas , quando tentava passar, houve uma confusão, tiros, todos correram de dentro do ônibus e eu fiquei preso na catraca, no chão...
Ouvia gritos e janelas sendo quebradas, todos queriam sair, eu fiquei preso na catraca, não entendi o que estava acontecendo... 
Depois chegou a polícia, me tiraram de lá, pensei que iam me socorrer, mas me algemaram...haviam atirado no cobrador e no motorista, foi um assalto... Os dois estavam    debruçados, um na direção e o outro sobre a caixa, sangue escorrendo...
Acho que me confundiram com um dos assaltantes e estou aqui... eles vão ver que houve um engano, sou um trabalhador, desempregado mas trabalhador, entendem ?
...preciso voltar para casa antes que chova, a última chuva inundou tudo e perdemos todas as nossas coisas, estamos dormindo no chão...eu deixei a janela aberta...

(silêncio quebrado pelo preso 2) – Cara, tô acreditando na tua narrativa, tu se fudeu de verde e amarelo, os dois, motorista e cobrador abotoaram os paletós, o povo se escafedeu do local, quem vai testemunhar a teu favor ?

(preso 3) ...pobre é assim, cagado de arara, sai para buscar um trampo e arranja encrenca mesmo sem querer...

(Antonio, alheio como se falasse para si mesmo): - Alguém que estava lá me viu e sabe que não atirei em ninguém, nem sei como se atira...ainda por cima a janela ficou aberta...
´
( Preso 1) – a casa tá caindo em tua cabeça, curió de merda, e você    pensando nesta porra de janela aberta?!...

( Antonio) ...se chover inunda, o barranco fica nos fundos e a água desce, por que esqueci aquela janela aberta, meu Deus ?!

( Preso 4)...deixa ele em paz, o cara ta pirando, é o principal suspeito de um latrocínio e ainda se preocupa com uma janela que ficou aberta, deve ser fome... escuta, quando tempo faz que tu não come ?

- (Antonio) ...tô acostumado a ficar sem comer, nem sempre dá para a comida não, principalmente quando não tem nem bico para fazer...vim atrás de uma vaga em uma construtora, faço qualquer coisa como ajudante de pedreiro...
( Preso 1) – Toma um naco de pão, fudido, quase te arrebento de porradas, mas não é da nossa turma não, teu terreno é outro, cara...

( Antonio aceita) – Obrigado, moço, fiquei tão apavorado que deixei a minha marmita lá no ônibus...um arrozinho com ovo e um pouco de farinha mas que dá pra quebrar o galho... a minha companheira hoje trabalha em casa de uma senhora,que deixa ela levar a menina, então comem bem, almoço e janta 

(preso 2) – tu sabe ler ?

(Antonio) Pouco mas sei...

(preso 4) – Te cuida, não vá botando sua assinatura em qualquer papel que te botarem na frente, pode estar assinando bronca grossa, aí, tu que entrou de gaiato nessa história,acaba fichado como criminoso...

(Antonio) – Por Deus, moço, sou honesto...

(preso 2) – Tá se vendo que sim, cara, mas as evidências... torça para que achem mais alguém que participou desse assalto e o cara tenha coração para não te fuder junto, senão...

(preso 3, conciliador) – Este mundo nosso não te serve, não sobreviveria a isso, cara... se pedirem para assinar tente ler o papel, se não entender peça explicações, sem tiverem um pouco de paciência te darão um pouco de atenção, do contrário... para eles todos os que caem aqui são bandidos...

( guarda bate na grade) – Quem é Antonio Francisco da Silva ?

( LUZ CAI)

CENA -2

(Sentado frente ao escrivão que bate a máquina)

- Seus pertences, algumas moedas, a identidade e uma carteira profissional em branco como documentos ?

- Sim, senhor...

- Trabalha ?

- Sim, senhor, no momento estou desempregado, mas...

- E quando trabalha faz o que ?

- Serviços gerais na construção civil, ajudante de pedreiro...

- Nome da empresa ?

- Faz tempo, não lembro não, fui contratado por empreiteira...

- Nenhum registro ? ( folheando a carteira de trabalho)

- Tinha, mas a água estragou tudo com a inundação...tirei uma profissional nova...olha, senhor, deixei a janela do meu barraco aberta...

- Que é que tem ?

- Vai chover e inundar de novo e acabar com o pouco que a gente tem...na pressa de sair de madrugada deixei a janela escancarada, a noite foi muito quente, barraco de madeira, deixei a janela aberta para ventilar e esqueci...

- Ninguém em casa ?

- Só a noitinha, minha companheira e minha filha voltam do trabalho, até lá a janela...

- ( mostrando impaciência) – Já sei, está aberta !

- Sim, Senhor, e pode inundar o barraco...

- O que você acha que eu posso fazer ?

- Deixar eu ir até lá fechar a janela, te juro que depois eu volto...

- Não me venha com essa conversa, pensa que está falando com algum idiota ? Ou acha que estou brincando em serviço ? Você está em uma delegacia, sob ordem de autoridade policial !

- Senhor, se ver meus documentos, vai ver que não tenho nada com o ocorrido...

- Sabe quantos Antonios Franciscos das Silvas existem em relatórios policiais ?

- Não senhor...

- Deixa para lá !

- Os meus documentos, os números não são iguais aos outros...

- Não quer dizer muito, há muita falsificação, temos que conferir tudo, isso leva tempo... além do que a questão não é apenas de conferir documentos mas de se apurar responsabilidades no caso...

- Será que chove antes ?

- (pausa em que o escrivão olha para Antonio, como não acreditando)

- ...a janela está aberta...

(exasperado) – Por ora é só, você volta depois, Guarda !

- Que bom, então posso ir embora, a janela...

- Embora da minha sala e de volta para a cela. Até prova em contrário você é suspeito de ter participado da morte de dois homens... é bom refrescar sua memória e colaborar com a investigação...você foi o único detido em flagrante no local dos homicídios. Está claro que não fez isso sozinho, é melhor dizer o nome dos outros e agilizar os trabalhos, para o seu próprio bem.

( o guarda retira Antonio)

- (Escrivão) – Cada nóia que me aparece...a Janela Aberta !!!

( CAI A LUZ)

( cena 3 ) Barulho de cela sendo aberta, Antonio entrando.

( Preso 1)...Olha quem tá de volta, o paraíba encrencado, pareceu que os “hômis” não acreditaram na tua inocência...estou certo, companheiro ?

- (Antonio) – É questão de tempo, vão ver que eu não tenho nada com esses crimes, sou homem de bem, trabalhador...só espero que dê tempo de fechar    a janela antes da chuva...

-(preso 3) – Filhos da puta, vão te dar um cansaço, isso se não te incriminarem para encerrar o caso... fazem isso para darem uma satisfação pública, foda-se se é inocente ou não, assim é que as coisas acontecem...

(Antonio, assustado) – Me incriminar como ?! Eu só estava no chão, embaixo da catraca, aquele lascado do cobrador, pobre como eu, escorrendo sangue...

-(preso 3) – São escolhas, meu caro curió. Quis guardar a grana do patrão e levou balas, o outro, o motorista, quis se fazer de herói e hoje são os mais novos presuntos no cemitério...

( Antonio, benzendo-se) – Deus meu, que mundo...pobres homens trabalhadores que lutavam para ganhar o pão com dignidade, o que serão de suas famílias ?

(pausa, os presos se olham constrangidos)

(Preso 1) – Prefiro que a minha família desista de mim, me esqueça... não quero ver minhas filhas pequenas sendo apalpadas em revistas me visitando e minha companheira descuidada e maltratada para sustentar sozinha ela e as filhas...me esqueçam, melhor acharem que eu morri do que saberem e sentirem vergonha de um pai bandido, elas nada tem a ver com minhas escolhas... Na vida tudo tem um preço, paga-se caro por más escolhas, ninguém nos induz ao erro, caminhamos por ele. Tinha cansado da vida operária, salário merreca, uniforme, horários, carnês de prestações, vidinha medíocre, coisas contadinhas, mês após mês, ano após ano... Certo dia resolvi que poderia ter sucesso mais fácil e me armei de um revólver e fiz um assalto, não parou ai, me acostumei a tomar do que trabalhar por um salário. Uma vez as coisas não foram como sempre, houve resistência, era eu ou ele... depois ficou comum acabar com a vida alheia, esqueci escrúpulos, adotei a marginalidade...até executei por encomenda, ficava com a bronca para mim e silenciava pois recebia para isso... 

(Preso 2) – Quanto a mim já não agüentava a vida de caixa de supermercado, o dia todo suportando a clientela,consumo de um monte de futilidades, enquanto me sobrava uma cesta básica, muito dinheiro na mão entregando ao superior e eu colecionando moedas para comprar uma camisa nova e o sapato com buraco tapado por dentro por um papelão...dei adeus àquela vida e tomei outros rumos, mais intensos e vibrantes...ninguém fica só nos entretantos, quem sai na chuva acaba se molhando todo...esqueci, ou me esqueceram, irmãos, desgostosos de minha virada, ainda bem que a mãe já é falecida e o meu pai velho demais para ter noção do que está acontecendo comigo... cochilava nos bancos da escola noturna depois de um dia exaustivo de trabalho, aprendendo como ser alguém na vida...não resisti e descambei de vez. Furtos, assaltos, estelionatos e homicídios...

( Preso 3) – Porra, Paraíba, você tinha que trazer esse papo de família...todos temos e é nossa cruz na consciência... 
Cedo percebi que o caminho era estreito, penoso demais, olhava para os meus familiares, pessoas dignas, honradas, envelhecendo dia a dia e vivendo com uns trocados, sonhando acordados, com um futuro incerto...
Era uma rotina de bater cartão e receber merrecas para mal sobreviver...
Gostava de uma gata, menina honesta, responsa, parecia gostar de mim, planos para se ter um teto e criar nossos filhos,coisa bacana que todos os jovens que amam têm...
Acontece que nunca fui muito de estudar, nem terminei o primeiro grau, promoção na empresa nem pensar...ela gostava de estudar e seguiu em frente, foi saindo do meu mundo e vivendo em outro, até me trocar por um futuro mais promissor... Era muita merda junta, cara, muita humilhação para suportar, não pude vê-la feliz com outro, fiz loucuras e acabei com os dois... fugi e continuei na trilha dos desesperados, fugindo de minha vida estreita e me sujeitando a fazer cada vez mais asneiras para sobreviver, até cair de vez...

(Preso 4) ...Comigo foi diferente, meu meio não era pobre, tive possibilidades e estudo, me prostitui por vaidade, daí para o tráfico não foi difícil...garoto bem apanhado, bonito, corpo malhado, percebi que era atrativo para mulheres ricas e carentes de conforto íntimo conjugal, generosas com seus afetos contratados. Sempre adorei o bom viver, a boa comida e o regalo da boa vida, preguiçoso sem ter que saber o que é ganhar o pão de cada dia trabalhando...depois entrei em outro meio, a prostituição masculina, bem paga pelos meus serviços e sigilos, há coroas que pagam em ouro por sua companhia e seu segredo...passar pó em altas rodas era o de menos, afinal a alta sociedade adora exibir aos seus convidados, o charme de anfitriões, a exibição da melhor farinha do mercado, grana grossa, toma-lá-dá-cá... Para tudo há um tempo, para quem vende o próprio corpo, ele passa mais rápido...não me acostumei com a idéia de ser trocado por rapazes mais jovens e viris...em desentendimento com um dos meus clientes cativos, o assassinei...aguardo nesta cela a minha sentença.

( o carcereiro bate na barra da cela)    - Quem é Antonio Francisco da Silva ?

- Sou eu !

O delegado quer vê-lo...

(Preso 3) – Vai, Paraíba, fechar a tua janela, cuidado para não fechar suas portas na vida !

(Preso 2) – Até nunca mais, cabra inocente !

( Preso 4) – Que este dia diferente ao seu meio tenha serventia para tu valorizar tua vida difícil mas digna...

( Preso 1 ) – Vá na paz de quem merece !

(Antonio) – Adeus !

(CAI A LUZ)

( CENA 4 – diante à mesa do delegado)

- Antonio Francisco da Silva ?

Sim, doutor, sou eu...

(Delegado) Você estava naquele coletivo da madrugada onde dois homens, o motorista e o cobrador, foram assassinados, não é ?

- Estava sim, senhor...

(delegado) – Encontrava-se preso na catraca,não é ?

- Sim senhor...

- Por que não fugiu com o povo ?

- Pedi ao cobrador para me deixar passar, vi que havia esquecido uma moeda e o dinheiro não dava para a passagem...depois começou uma confusão, os tiros, a correria, fiquei entalado sem ter condições de me levantar...

(delegado, abrindo uma gaveta) – Isso lhe pertence ?

- Sim senhor, é a minha marmita, escrevi o nome no fundo dela porque na obra às vezes não tinha armário para guardar e evitava que um peão comesse a comida do outro...

(delegado) – Pois você deve muito a esta marmita, seu atestado de idoneidade... provou que estava a trabalho.

... com a prisão de 2 assassinos e a morte de 1 deles, ficou comprovado que não há nada que o comprometa nesse caso... o senhor está livre, pode pegar as suas coisas...

(Antonio) – Doutor delegado, poderia me fazer um empréstimo ?

(delegado) – Empréstimo ?

(Antonio) – Sim senhor, para completar a condução de volta, faltam R$ 0,25 centavos...

(tirando uma moeda) – Pode ficar com esta...vá em paz !

( Antonio) -    Doutor ?

(Delegado) – Mais algum pedido ?

(Antonio) – Seu troco, o senhor me deu R$ 0,50 e eu preciso só de R$ 0,25

( CAI A LUZ) ( cena 5, no barraco)

( Antonio, extasiado) – Deus meu, ainda bem que a chuva não chegou antes de mim e posso fechar a janela que deixei aberta, obrigado Meu Pai Amado...

( liga a pequena TV de 14 polegadas, abre a marmita e começa a comer assistindo o noticiário);

Presos 2 assaltantes e morto um deles que resistiu à prisão pelo assalto ao ônibus da linha 333 onde morreram o motorista e o cobrador na madrugada de hoje...

                                                         FIM 

* Este texto está registrando na Biblioteca Nacional de direitos autorais, registro sob n° 494.5467, livro 935, folha 144. Publicação ou encenação somente com expressa autorização do autor.

* TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA 1° ANTOLOGIA DE CONTOS PREMIADOS, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO, OUTUBRO/2009


Um comentário:

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz:

uma beleza de peça. parabéns ao autor.

(MURAL DOS ESCRITORES)