domingo, 10 de abril de 2011

A MUDANÇA ( CONTO )



Enquanto metia as poucas vestes na mala, como um autômato sem direção, os pensamentos atropelados, um misto de derrota e de recomeço incerto, enfim, um ponto final em um enredo já esgotado, sem se importar com o que deixava, livros empoeirados em caixas e alguns na estante. Dele ficaria isso, os livros, provisoriamente, até que arrumasse um local para removê-los. Poderiam ficar em um canto, despercebidos, como sua ausência.

 Combinaram assim, ele sairia sem a presença dela, levaria o suficiente para não ficar nu, o mais, móveis, ficariam intactos na casa...evadiria sem vestígios, ou adeuses. Enterrava-se definitivamente o insepulto cadáver do falido casamento, do qual restaram um álbum de fotografias e uma fita de vídeo cassete na representação de um espetáculo feliz, recordações de um dia que procuraria esquecer.

 Debalde a exaustão da convivência sem mais sentido, ainda existia um sentimento de falência no ar, uma briga íntima no cair da razão, a idéia de que um  relacionamento oficializado tinha que perpetuar, de ser para sempre, nas alegrias e nas tristezas, tudo aquilo ainda ecoava nos valores herdados dos pais e avós. Mas nada daquilo servia naqueles momentos, onde a permanência naquela casa chegava ao término, findando qualquer possibilidade de reconciliação. Havia, ainda, que precisar alterar rumos, refazer os passos, recriar caminhos, fazer novas rotinas, reaprender a ser só, quer dizer a assumir realmente a sua solidão, não mais dividi-la com ninguém.

 Mesmo com a dor nos acostumamos com ela, fazendo parte dos dias, postergando atitudes, evadindo-se de resoluções, protelando decisões. Porém aquela medida era extrema, definitiva. A mala arrumada não era apenas uma encenação temporária, como de tantas feitas, de reconciliações posteriores, então vivendo dias prazerosos de inúteis apostas em um futuro melhor.

 Não foram felizes, iludiram-se. Aliás, não se conheciam, mesmo com anos de namoro e na condição de casados. Enganaram-se . Não havia exatamente culpados, apenas a noção exata de que eram estranhos um com o outro, como navegantes em uma mesma canoa, remando cada qual para um lado, rodopiando em círculos, não indo a lugar algum.  Estiveram juntos, coabitando o mesmo teto, mas distantes em objetivos e cumplicidades. Eram alheios nos propósitos. Restava, contudo, uma incômoda sensação, de perda, ou medo do recomeço ?  Aquilo angustiava, o novo preocupava, exigia coragem de espanar poeiras de velhos conceitos e hábitos.

 Sem despedidas, ensaios pronunciados inúmeras vezes, nem sempre em palavras articuladas, mas sentidas, presumidas, em gestos ou insinuações, como a areia caindo, lenta, na marcação de um tempo final. Antes que o ar já rarefeito da convivência desandasse pelo desrespeito, uma atitude, por sofrida que fosse, teria que romper os laços depauperados mas ainda existentes, por tradição ou vã esperança de entendimento. Aquilo, a permanência, doía , mexendo com a autoestima, aprofundando as feridas, arrastando-se interminável como uma sentença perpétua.

 Como é difícil o desapego das coisas, mesmo nas condições mais adversas, temos o hábito de nos acomodarmos. O novo assusta, pelo inusitado, por exigir posturas e ações. Reaprender a andar em novos passos pode ser amargo e inseguro pela ousadia que nos cobra. Tudo que nos põe à prova, assusta, espanta velhas idéias sobre tudo e nos coloca em xeque, nos tira do aparente sossego de nossas acomodações, instiga a lutar por uma nova realidade.

 Aturdido nessas emoções desencontradas, cumprindo o combinado, a mala sem saudades, sem a presença na despedida, sem azedumes ou queixas, sem murmúrios, nada para segurar as lágrimas, nenhum sorriso que confortasse, nem arrimos para se apoiar, uma estrada nova a se seguida, vencida, e só, finalmente, consigo mesmo...

 Epílogo do esgotamento de um sonho mal vivido, a liberdade assustava ainda mais que as algemas da comodidade incômoda, por paradoxal que seja.

 O taxi na porta, o destino e endereços incertos, uma nova empreitada, reivindicando forças que pareciam ausentes, apenas mais uma história mal vivida a ser recomeçada...

5 comentários:

Anônimo disse...

Minha admiração por você cresce muito meu caro escritor.
Parece-me um testamento de sentimentos mal vivídos.
Coube-me bem, como se fosse feito para mim.

Lindo teu texto. E que verrossímel
Se me permite vou postá-lo em meu blog.

Abstrata

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz:

Em busca de nós, em busca de tudo, tantos tropeços no caminho... importante continuar. Derrotados são os que desistem.

(MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

Oi, Ediloy, Bom Dia

O engraçado dessas "mudanças" é que após algum tempo percebe-se que em nada mudamos, cobramos e não gostamos de ser cobrados, se cada um refletisse e respeitasse as diferenças, perceberiam que as mudanças precisam ser internas, no coração... muitos aplausos...

Grande abraço, Meu amigo
Pedrinho Poeta
pedro.poesia@hotmail.com
12/04/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Caro poeta o texto nos fala sobre os inúmeros (contos) reais que se apresentam em "carne e osso" neste nosso cotidiano cruel. No altar tudo é festa tudo é sim, porem na vida a dois as diferenças aparecem e quase sempre não são respeitadas, então a mudança por mais dolorosa que seja se apresenta como ultima e única "opção". Texto realista e muito bem elaborado, meus mais sinceros aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
11/04/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

14/04/2011 21:31 - Capitão Anilto

Por pior que seja deixar uma vida já acomodada, sempre há uma oportunidade de recomeço e uma esperança que dê certo dessa vez...

(RECANTO DAS LETRAS)