quarta-feira, 9 de março de 2011

I M O R T A L I D A D E ( CONTO )







Acácio tinha uma conversa agradável, embora apreciasse cervejas, nunca foi inconveniente em seus raros excessos, não fazia o gênero do bêbado insuportável. Sempre discreto, cuidando com o dizer correto e bem soletrado das palavras, com um vocabulário acima da média, nunca dizia gírias, renegava o chulo e o vulgar, sem ser, contudo, esnobe ou um pernóstico metido a intelectual. Naquele dia, todavia, dissertava de forma reflexiva, parecendo, por vezes, que não tinha interlocutores, e se encontrasse sozinho, falando consigo mesmo.



- O que é a imortalidade ? Levantou o copo e o colocou sobre a mesinha, sem beber, absorto em sua própria fala. Saiu-se com essa pergunta, imprópria, diga-se, para o ambiente festivo das festas carnavalescas, que tomava as ruas adjacentes, com suas balbúrdias e as marchinhas de carnaval envolvendo a todos, quisessem ou não. Trazia um tema filosófico, existencialista, para o seio da conversa que se pretendia leve, de acordo com o ambiente.


-Todos seremos imortalizados, por momentos que sejam, seremos lembrados quando de nós nada mais existir que cinzas... ( continuava na sua fala, repito, como se não estivéssemos ali, ou seja, eu não estivesse presente)


- Não estou certo ? ( parecia, por fim, dar-se conta que não estava só)


Lembrar-se-ão de nós ( adorava o uso do pronome na forma de mesóclise), seja num repente, numa fugaz lembrança...qualquer detalhe que nos particularize, então seremos ressuscitados naqueles fugidios instantes, mesmo que somente nas lembranças de alguns contemporâneos retardários no tempo...

- Entraremos na conversa qual fantasmas ressurgidos, chamados às pressas, e, tal qual chegamos, inusitados, de volta retornaremos para o ostracismo da inexistência, assim que findar o assunto. Voltaremos ao nada, até que sejamos relembrados, possivelmente por atos menores, visto não sermos celebridades científicas, artistas, políticos ou outros que, para o bem ou mal, marcaram suas pegadas... De nós, talvez se lembrem, de fatos corriqueiros, assim “lembrou-me fulano” que sempre dizia isso, ou a forma de agirmos, de nos expressarmos, de andarmos, pormenores retirados das lembranças de algum nostálgico que nos conheceu...

- Não estou certo ? Você está tão calado... ( mas continuava falando sozinho, parecendo que a presença de mais alguém fosse apenas um detalhe, um pretexto para suas divagações existencialistas)


Não podia atinar o que o levava a navegar tão abstraído naquele tema inadequado para o momento, quando o que pretendíamos era apreciar o movimento feminino dos blocos que desfilavam pelas ruas próximas.


Não pretendia interrompê-lo, pois estava compenetrado em suas teorias sobre a vida humana, pós morte. Eu o ouvia atento, refrescando os lábios, com a cerveja espumante e gelada, convidativa naquele início de noite de verão, acompanhado de amendoins limpos e salgados, como tira gosto. Ocupava-me a mastigar e a ouvi-lo, pacientemente, pois não era um sujeito vulgar a discorrer sobre asneiras, antes, um leitor contumaz, bem informado, com assuntos embasados e interessantes. Aquele tema era profundo, não diria, contudo, oportuno para o momento, mas...

- Nada mais seremos que reles lembranças, ofuscadas, vagas, esmaecidas nas memórias de alguns...


Na tarefa de mastigar os grãos oleaginosos, percebi certa amargura, de leve tristeza naquelas entonações, parecia um falar distante, profético e também poético, dramatizados involuntariamente nas entonações da voz. Parecia que não me cederia apartes, envolto em suas elucubrações, aparentando falar para um público invisível aos meus olhos. Temia ser indelicado, embora não houvesse cerimônias entre nós, amigos de tantos anos, apenas que a narrativa, por séria, não merecia ser contrariada ou alterada em seu rumo... Ficava a devanear, enquanto o observava em suas digressões filosóficas e tristes.

- Ei, vai ficar falando de seu amigo falecido até quando ?


( amistosamente, Paulo, sacudia-me os ombros, tirando-me de minhas reminiscências)


- Estamos tomando a nossa cerveja, veja o que você está perdendo, olha o mulherio, meu caro !


Acácio tinha razão, seríamos imortalizados por instantes, nas lembranças dos amigos retardatários... (sorvia uns goles, experimentando amarga nostalgia...)




*TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA OUTRA VIDA, EDITORA CBJE, da CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, RIO DE JANEIRO/RJ, EDIÇÃO DE ABRIL DE 2011.

11 comentários:

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz em 7 março 2011 às 0:10:

A mesma história tem muitas versões, mas é verdade que guardamos nos corações aqueles a quem amamos e os levamos. ..

(MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

Boa Noite Poeta!

O poeta está muito bem na arte de escrever contos.
Que bom que sejamos lembrados após nossa morte mesmo que sendo por alguns instantes e por um amigo somente.
Acredito que vai valer a pena ter passado por aqui.
Um bonito e inspirado conto.
Bjo
Carol
Carol Carolina
carolinafagundes1@hotmail.com
10/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Teu conto me levou a refletir sobre o brevidade da vida, os momentos que podem ser eternizados, na maneira como permanecemos vivos ao sermos lembrados, citados. E especialmente no que faço para merecer ser lembrada, ou ainda se quero realmente ser lembrada.
Mais uma vez me proporcionou uma deliciosa leitura.
Parabéns e obrigada.

Aline Lima
ALINELIMACASTRO@HOTMAIL.COM
09/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Caro poeta; esporadicamente seremos lembrados pelos amigos nas mesas de um bar ou talvez quem sabe pela ex. pessoa amada, e ou por um credor sem escrúpulos que não êxitará em difamar o falecido. Diz um velho ditado que “toda a pessoa quando morre vira santo”. A imortalidade passa a ser uma questão de (ponto de vista) principalmente pelo fato de, que, nem sempre conseguimos agradar todas as pessoas. De qualquer forma é preferível ser lembrado do que cairmos nas malhas do esquecimento. Mais uma vez nos brindaste com um lindo e bem elaborado (conto) que nos faz refletir sobre a nossa curta existência nesta conturbada vida terrena. Meus calorosos aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
10/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Olá Poeta!
(...)
- Nada mais seremos que reles lembranças, ofuscadas, vagas, esmaecidas nas memórias de alguns... (...)

Perdi um irmão a 4 anos atras num acidente de moto, ele só tinha com 27 anos, ele é imortal na minha memória, mas acredito que para os amigos ele é vaga lembrança, por isso acredito na vida eterna através de um Deus Todo Poderoso a imortalidade é uma coisa surreal. Mas nada impede de termos carinho pelas pessoas que partiram e acreditar na imortalidade do pensamento que nos detem por minutos ou até mesmo por horas em relação a quem partiu. Seja como for amigo Poeta, a morte é dolorida propriamente para quem fica do que para quem se vai. Ficamos com as mémorias essa nunca apagam. Abçs e fique com Deus!

Lucélia Lima
lualmarques@hotmail.com
11/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

A imortalidade é um tema difícil, mas o conto o aborda bem

Comentário Enviado Por: Iraneide Soares Em: 30/3/2011

(BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS)

Anônimo disse...

Ediloy, gostei imensamente do teu conto. Mete um pouquinho de medo, mas é muito bom.


Comentário Enviado Por: Paula Macedo Em: 30/3/2011

(BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS)

Anônimo disse...

É assim mesmo: "- Nada mais seremos que reles lembranças, ofuscadas, vagas, esmaecidas nas memórias de alguns..."

Comentário Enviado Por: Odete Em: 30/3/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Valeu, Ediloy!

Comentário Enviado Por: Ninom Em: 31/3/2011

(BLOG DO LIMA COELHO - CRÔNICA, CONTOS E POESIAS)

Anônimo disse...

Meio deprê, mas como gostei!

Comentário Enviado Por: Dorinha do Anil Em: 01/4/2011


(BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS)

Anônimo disse...

Isabel Cristina Silva Vargas / Pelotas-RS
Para Ediloy Ferraro


Para seu conto "Imortalidade" só tenho um adjetivo ."PERFEITO" no conteúdo e na forma.
Abraço.
ENVIADO EM: 06/07/2011

(comentário publicado na CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ)