segunda-feira, 28 de março de 2011

GRITOS NA NOITE ( CONTO )


Quando o silêncio da noite vencia os últimos alaridos dos notívagos, os mais recalcitrantes ao sono entregavam-se ao torpor do cansaço, fechando livros, apagando seus televisores, desligando computadores, aprontando-se para o sono, dando por terminadas as atividades de um dia. Luzes se apagavam, imperando absoluta mudez, como se reservando o sossego no descanso dos mortais. Ao longe, ainda vestígios de alguns carros, o vago ladrar de um cão de distante casario, de resto o manto noturno acolhedor descerrava as últimas resistências dos sonâmbulos.

 Reinando a paz no condomínio, até que impertinentes gritos, das proximidades, da rua,  interrompem a calma, na malemolência dos corpos pesados na sonolência o atrevimento da quebra do descanso, voltando-se aturdidos e acabrunhados, ainda refazendo-se da inusitada perturbação, entre acordados e sonados.
 Os sons em berros chegam indistintos, não era pesadelo, ouvia-se nitidamente. Sim, gritos intermitentes, angustiados, faziam-se ouvir em inaudíveis clamores de socorro. Quebrando a calma, no meio da noite mansa, arrepios gelavam as almas. O sono em abalo brusco, momentos de apreensão, luzes furtivas se acendem, ocultos sob cortinas, olhos curiosos  vasculham a origem daqueles gritos, querendo perscrutarem de onde,sem se exporem ou demonstrarem-se aos demais. De onde viriam aqueles barulhos intrusos e ousados, aviltando o sossego?
Nenhum morador aventura-se a abrir janelas, escondendo-se sob os mantos das cortinas.Em cada expressão o estupefato da interrupção do justo recolhimento, vidas atribuladas, cada qual com sua jornada ao amanhecer a serem cumpridas. Silêncios questionadores, lamúrias repetidas, em pausas angustiadas, apelos constrangedores, azos a especulações tenebrosas, espantando e despertando a todos, que mantinham-se, contudo, encarcerados em suas paredes, ocultos sob cortinas, no quebra luzes de abajures.
Ninguém atrevia-se a uma atitude, apenas espectadores daquelas manifestações estranhas, sons de reclamos angustiados de alguém sendo supliciado. Ligar para a polícia, àquelas horas e ter que se identificar, parecia muito a qualquer daqueles observadores furtivos. Atitudes de medos, encurralados em si mesmos, como vendo alguém da coletividade sendo alcançado por um predador, certo alívio de se saber a salvo e protegido, a si e aos seus, quanto aos demais, Deus que cuide de todos.
 Claro estava que ouviam os reclamos, mas deles não tomavam parte, restando a cada qual seus problemas, o mais que percebiam era o despertar inusitado, incomodados. De onde viriam os lamentos secos, sofridos, angustiados, lentos em insistentes tormentos ? Paralisados em seus cantos, atocaiados, medrosos, ninguém se atrevendo a por as caras de fora, a tomar providências, como se o imprevisto fosse materializar-se a qualquer momento dentro de cada apartamento, fazendo deles vítimas daquele enredo tétrico...
  A cidade grande,  de todos e de ninguém, palco de mistérios, rodeada de imprevistos, casos melindrosos, estórias escabrosas, mortes horripilantes, assaltos e assassinatos... Ocultos atrás daquelas paredes, sitiados em si mesmos, como se temessem ser descobertos por um perigo iminente, na paranóia coletiva de sentirem-se acuados. Sem perceberem pisavam com cuidado, como se não querendo denunciar sua própria presença, assistiam ou buscavam ver o que se sucedia, aterrados e impotentes, suores frios nas têmporas.
 No avançar das horas, superados os sustos momentâneos, embora existentes ainda os lancinantes lamentos, todos buscam o conforto de suas fronteiras de cimento, refúgio no aconchego de seus aposentos, no calor de seus leitos, e desconhecem o que se passa no exterior, algo aliviados de não ser consigo mesmo ou com os seu mais próximos... Aquilo que vinha de fora não lhes pertencia, um outro mundo, outras vidas e realidades. No amanhecer mais um caso , uma nota de jornal na crônica da polícia.
 Passado o susto, o pavor da gritaria estridente já não assusta, são ecos presentes e distantes, recuam cômodos, inúteis ecoam os pedidos de socorro, retraem-se todos de incômodos, acostumados já com a rotina dos sinistros, acautelando-se para não se envolverem. Nada sinaliza que os tormentos alheios tenham cessados, as luzes se apagam indiferentes, cortinas se fecham sonolentas, inúteis os apelos exteriores, surdos aos apelos clementes, como se oriundos de uma ficção, um filme de aventuras que se desliga no controle remoto da TV,  coisas de um outro mundo...

*texto selecionado para figurar na Antologia Crônicas da Cidade, editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição abril/2011

17 comentários:

Anônimo disse...

28/03/2011 19:37 - Capitão Anilto

Uma triste realidade: a desumanização das cidades blindando o coração das pessoas ao sofrimento alheio. A dor dos outros é apenas um incômodo momentâneo, que tira o sossego da rotina diária. Na minha carreira policial ouvi muitas vezes reclamações de pessoas que sofreram com a violência, e diziam que nos momentos de aflição não aparecia ninguem para ajudar, e por vezes fingiam nada ver para não ter de participar. Espírito comunitário? Vizinho amigo? Comunidade participativa? Apenas sonhos utópicos de alguns, que na prática, acabam se resumindo a encontros festivos durante os momentos de calma, e teorias a serem debatidas nos encontros sobre segurança. Na prática, é "cada um por si, e não clamem por socorro. Não sendo comigo, não me interessa..." Abraços.

Para o texto: GRITOS NA NOITE (T2875860)

(RECANTO DAS LETRAS)

Anônimo disse...

Narrativa rica em detalhes, com um ritmo emocionante que fixou minha atenção.
Nas palavras de sua brilhante ficção, a indiferença da realidade foi retratada com maestria.
Obrigada pela leitura.

Aline Lima
ALINELIMACASTRO@HOTMAIL.COM
28/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

... Culto!

...
Simples assim.

Jane Cris Ѽ
janedireitopenal@hotmail.com
28/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Comentário de Albérico Silva de Carvalho:

Ediloy,tive o prazer de ler mais uma trama bem urdida, que se traduziu num conto bem escrito, nos trazendo realidades do cotidiano. Escreves de forma brilhante nos envolvendo do começo ao fim, para no final além das observações, nos deparamos com uma conclusão dígna dos mestres.Parabéns.
Abraços fraterno!

(VERSO & PROSA)

Anônimo disse...

Quem manja manja, quem sabe sabe
Muito bonita a narrativa
Meus parabéns

Diego Luiz Correia
diegolcorreia@yahoo.com.br
29/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Oi, Ediloy, Bom Dia

Narrativa impressionante de um cotidiano(infelizmente) real e perturbador, como sempre, apesar do calafrio que proporciona, principalmente para quem já viveu tal situação, simplesmente fantástico...mil aplausos

Abçs
Pedrinho Poeta
pedro.poesia@hotmail.com
29/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Caro poeta o conto retrata com fidelidade os gritos dos inocentes que quase sempre são ignorados, gritos sofridos, intermitentes que lavram a golpes de foice a alma de alguns enquanto a maioria aumenta o volume da TV para se eximiram da falta de solidariedade. Maravilhoso, oportuno e muito bem construído. Meus sinceros aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
30/03/2011

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

Comentário de Ana da Cruz:

Huhuhu! Até arrepiei. Muito bom! Envolvente.

(MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

As pessoas das metrópoles estão perdendo a indignação e ganhando a indiferença. É tanta miséria, tanta desgraça e tanto o medo que, melhor que se tranquem no mundo restrito às quatro paredes de seus quartos que alardear os sofrimentos que não são os seus.
Os crimes, mormente os da esfera privada, se constituem em verdadeiras armadilhas. O denunciante pode virar criminoso.. Já vivenciei uma situação assim e, quando pensei estar no degredo, cumprindo expurgo, estou vivenciando outra e decidindo se vale a pena virar criminosa outra vez. Se não correr risco, rasgarei minha carteira de cidadã. Questão de escolha! Questão de saber se devo ou não deixar uma criança ser seviciada sexualmente dia após dia com o pleno conhecimento da mãe.

Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 05/4/2011

( VIA BLOG LIMA COELHO - CONTOS,CRÔNICAS E POESIAS)

Anônimo disse...

Um conto forte, mas que proporciona uma leitura que a gente mergulha nela e pena que acaba logo

Comentário Enviado Por: Alcides Em: 05/4/2011

(BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS)

Anônimo disse...

Eu sei dos perigos e, inclusive, da impotência do cidadão, mas é preciso lutar, mesmo que tenhamos que arcar com retaliações.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 05/4/2011

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Anônimo disse...

É isso o que se vê atualmente nas cidades, principalmente as grandes. As pessoas não precisam estar entre quatro paredes para se enclausurar. Elas se enclausuram, à luz do dia, em qualquer calçada ou praça. As maiores violências ocorrem ante seus olhos, mas todos seguem adiante, como se nada estivesse acontecendo. Medo, medo, medo. Os meliantes nos acuam e nos tornam frágeis, medrosos e covardes.

Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 05/4/2011

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Anônimo disse...

É até parece coisa do além, mas é terena mesmo

Comentário Enviado Por: Betina Em: 05/4/2011

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Anônimo disse...

Só a indiferença

Comentário Enviado Por: Núbia Figueiredo Em: 05/4/2011

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Anônimo disse...

Cara, gosto de te ler

Comentário Enviado Por: Mateus Ferreira Em: 05/4/2011

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Anônimo disse...

O Ediloy trabalha bem o enredo dos contos dele. Dá gosto ler

Comentário Enviado Por: Paulo Henrique Em: 05/4/2011

(BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS)

Anônimo disse...

Eu também gosto muito dos contos do Ediloy

Comentário Enviado Por: Iara Em: 06/4/2011

( BLOG DO LIMA COELHO - CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS)