segunda-feira, 22 de novembro de 2010

ESTRANHO CONHECIDO ( CONTO)


A decisão de ali estar foi conflitante, luta íntima, inglória, um reclamo mudo, angustiante, de socorro, sem ,contudo, saber o que o esperava. Foram noites insones, avaliações da vida, sentimentos martirizados em reflexões. Um verdadeiro balanço de seus atos, um reencontro consigo mesmo, um reatar amargo com um passado que julgava superado.

Nos idos tempos, rompera com a placidez insossa de seus dias, renegando a apatia de seu cotidiano, dera uma guinada, um recomeço de rota, viagem sem espaços ao que deixava, em busca de um destino ignorado em novos caminhos. Atrás de si relembrava uma história mal vivida, angustiante, e deu asas a si próprio e ousou caminhar em novas estradas...

Mas, ali estava frente àquela casa que um dia habitou, a qual abandonou sem maiores despedidas, em uma incógnita retirada. Cansara-se de si mesmo naquelas rotinas, os papéis que a vida se lhe apresentara, uma casa para cuidar, mulher e crianças.Sentiu-se asfixiado naquele panorama, como se estivesse morto embora respirasse, refletisse, necessitava de ar puro, outros ares, novas tentativas de seguir andando, naquela situação, definitivamente, não se encontrava. Fora vencido pelo tédio do ir e vir ao modorrento trabalho e voltar para o lar em dias sucessivos e intermináveis. Lida insuportável, maçante. Rompera com isso há anos, evadira-se como um libertino, irresponsável, desatara por si mesmo os laços que o prendiam àquelas penosas obrigações, sem relevar seus compromissos assumidos com o enredo de outras vidas, esposa e filhos.
O que poderiam ter pensado de seus desatinos ? Enlouquecera, talvez, mas aonde andaria, teriam- no procurado ? Nunca soube, partira sem deixar vestígios, bilhetes, telefonemas, nada, assim fizera com a repartição em que trabalhava, simplesmente tomara outro rumo, em busca da ignota e sedutora liberdade. Na verdade procurou apagar seus próprios rastros, não se dando a pensamentos e preocupações que julgava inúteis.

Vagara por outros mundos, assumira outras funções, apenas o nome, por impossível de se mudar, continuou o mesmo.

Andara a esmo, curtindo cada aventura, sabores e dissabores de sua escolha. Mas voltava ao ponto de partida, uma bagagem apenas, uma roupa surrada, as cãs dos cabelos revelando tempos áridos e distantes, face sulcada, vitalidades pretéritas já no ocaso da existência. Um pigarrear incômodo, baços olhos a vislumbrar fronteiriço o lar , teto esquecido.

Lembrar-se-iam dele ? O casal de filhos já estavam adultos, seria a esposa ainda viva? Pensamentos a distraírem-no ante aquela casa, poucos metros o distanciavam até a porta da entrada, temores de tocar a campainha, talvez fosse melhor retornar sob os próprios passos, assumir a sua opção de ser só e independente... Fora-se ainda jovem, resoluto, por que retornar, velho, alquebrado, ao ponto inicial?

Quem levantar-se-ia para advogar suas razões existenciais, rarefeitas de responsabilidades ? Apresentava-se com uma mala, poucas roupas, uma personagem trânsfugas, não o herói que foi à luta e retorna da guerra glorioso de seus feitos, mas o pássaro que alçou alturas, desdenhou o ninho e agora implora calor,abrigo, aconchego.

Chegar até ali havia sido um avanço, ir até a porta, todavia, parecia impossível, as pernas fincadas como cimento no solo, não conseguia se mover , já não tinha as mesmas certezas de outrora, onde, resoluto, debandara. Tinha ciência de sua posição egoísta. Tivera sobre si os cuidados de uma família e não o incomodou o fardo transferido aos ombros únicos da companheira que esposara.

Sentia-se retraído, os próprios pensamentos o martelavam, a consciência o acusava de sua fuga, de sua leviana opção, talvez não resistisse às inevitáveis acusações, legítimas, guardadas em mágoas pelos entes abandonados à própria sorte, sem sequer saberem de seu paradeiro errante. Como devem ter sentido a falta de um pai à mesa, em seus momentos de inseguranças, próprios da infância e da adolescência, onde a figura paterna é um arrimo, um consolo, conjecturava amargo e culpado.


E o que dizer das necessidades experimentadas pela companheira, de repente sozinha a responder pelos deveres e compromissos de uma casa ? E aonde andava ele nesses tempos ? Voando ao léu, sem porto certo, à deriva de si mesmo. Um frio suor porejava nas têmporas, aquilo era demais para ser enfrentado, não se sentia capaz desse encontro íntimo com sua história .Mas permanecia imóvel, atado feito estátua naquele ponto fixo, frente à antiga morada, como em um tribunal sendo julgado por si mesmo.

Absorto em suas reflexões, estatelado onde estava, viu a porta abrir-se, um casal de meia idade, sorridentes, saírem abraçados, em atitudes de companheirismo e amor. Duas belas crianças despediam-se dos velhos, possivelmente os netos, em gracejos e folguedos.

Ao passarem por ele, os olhos dela, curiosos, cruzaram-se com os dele, fitaram-se; sentiu que fora reconhecido, mas ela permaneceu muda, como se questionando de onde o conhecia...instantes breves, ou longos demais, um aceno de despedidas ou a constatação de uma verdade, o casal afastou-se, tendo ela, voltando-se, num átimo, para fitá-lo mais uma vez...

Acabrunhado, encurvado sobre si mesmo, fazia o caminho de volta, rumo ao desconhecido, na esteira da aventura que o seduzira.

Retirava-se aliviado por evitar o confronto com os seus. Melhor a morte inevitável como desconhecido a expor-se diante às vítimas de suas escolhas, na caridade inoportuna e imerecida, a ser reivindicada apenas pelos laços de sangue, distantes do afeto não semeado.

Naquele ninho, outrora abandonado, existia outro pássaro ocupando o lugar negligenciado, e, por certo, assumira seus deveres e colhia o reconhecimento de seus entes familiares.

Quanto a ele, apenas uma sombra, um detalhe do passado...


*Selecionado para figurar na Antologia de Contos Criadores & Criaturas, edit. CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição Janeiro/2011.

12 comentários:

Anônimo disse...

Comentário de Geane Masago:

Caro Ediloy, palavras em vida, muito bom, Gostei, parabens...Bjuss carinhososs, ate... ..

(VERSO & PROSA)

Anônimo disse...

Comentário de Zaymon Zarondy em 28 setembro 2010:

O caminhar pela vida é enriquecedor pelos ensinamentos que deixa. sábios os que sabem usá-los com inteligencia.

(MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

ZZ . Comentário de Mel Racional em 28 setembro 2010:

Um conto muito verídico! São milhares de notícias como esta. De indivíduos que escolhem viver de uma maneira e lá para frente não aguentam mais e pedem para morrer.
Será mesmo que está errado sair de uma situação buscada, mas, que não valeu apena? Pode ser corvarde a maneira encontrada da saída. Mas, foi preciso sair. E aqui como tudo renasce das cinzas...
Muito bom o conto reflexivo! Gostei Poeta!
Um abraço Mel

( MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

Comentário de Silvio Parise em 28 setembro 2010:

Parabéns Ediloy pelo conto, qual, qualifico-o como uma lição de vida. Abraço. ..

(MURAL DOS ESCRITORES)

Anônimo disse...

Caro poeta fico impressionado pela forma que o poeta desenvolve os seus contos em textos escritos com muito esmero. Esta (história) é muito real aja visto que talvez entre nós também viva alguém conhecido e ao mesmo tempo é reparado como um estranho. Belíssimo conto, meus sinceros aplausos.

J.A.Botacini.

Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
22/11/2010

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

O seu relatar literario é sempre de uma imensidade distinta. A coerencia com o real cotidiano incrito é de eminencia fluente. A sequencia dos acontecimentos, a abarcacao dos sentimentos e outras formas de enriquicemento literario estao ao alto nivel de abordagem e ordenacao. O texto é obviamente fantastico. Minhas humildes felicitacoes
O_crime_perfeito
O_CRIMEPERFEITO@HOTMAIL.COM
24/11/2010

(SITE DE POESIAS)

Anônimo disse...

“As famílias felizes são semelhantes e toda família infeliz é infeliz ao seu próprio modo”. Leon Tolstoi

Comentário Enviado Por: Alice Matos Em: 21/1/2011

Anônimo disse...

Um conto de beleza profunda, densa

Comentário Enviado Por: Yole Em: 21/1/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Melancólic, triste, pungente, mas belo conto. Um conto escrito por um escritor de verdade.

Comentário Enviado Por: william porto Em: 21/1/2011

(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Um causo da vida. Muito comum. Bem escrito

Comentário Enviado Por: Fabiana Em: 21/1/2011


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

Profundo. Muito. Gostei do estilo do autor

Comentário Enviado Por: Terezinha Sanches Em: 22/1/2011


(BLOG DO LIMA COELHO)

Anônimo disse...

27/06/2011 23:20 - Fernando A Freire

O teu conto acaba de contrastar uma conhecida expressão de José Américo de Almeida, em "A Bagaceira": NINGUÉM SE PERDE NA VOLTA.Ou, quem sabe, ele não se perdeu, mas se encontrou de uma forma mais autêntica. Continuou fugitivo. Conto de quem sabe escrever conto.Parabéns!

(RECANTO DAS LETRAS)