sábado, 30 de abril de 2011

SONHO CINDERELA ( conto)







Incômoda chuva a me deter num boteco, espremido, observando desatento o universo ao redor.  Justificar estar ali, só consumindo alguma coisa, além do transtorno do guarda-chuva molhando o chão do bar. Nem pensar em comer aqueles quitutes secos, velhos, que, aliás, eram visitados por pequenas moscas.

 Café morno, distraído, mal servido, na azáfama do empregado tendo que atender diversos pedidos simultâneos, quanto a mim, um refugiado naquela embaixada, sitiado pelas águas copiosas que desabavam. Espera sem sentido, chuva intermitente, alternando chuviscos com bátegas, inibindo aventuras de sair naquele tempo instável.

 Esperar haveria, já me conformava.  Olhava desalentado para meu companheiro, indesejável  mas necessário, um trambolho, diria. Carrego, atado a mim, sem ele me encharco de vez, já que ele me assegura a proteção superior do corpo, deixando à própria sorte do joelho para baixo, nunca usei galochas, porém o uso delas se justificaria naqueles momentos. Menino, as via no quarto de meus avós, de borracha serviam para revestir externamente os sapatos, impedindo que se molhassem, hoje caiu em desuso, peça antiquada.
 
 Embaça a vista opaca no diáfano copo americano do café passado em coador de pano, já que o de máquina expressa me causa ânsias. Encolho-me no vão do balcão, tentando manter-me alheio ao burburinho das gentes que se apinhavam fugitivas da inimiga comum, a chuva. Espera sem sentido, água fina e rala, ou em nutridas gotas, intervalo do nada.
 
  Ah, como chateia aquele mudo companheiro, úmido e escuro. Em tempo indefinido, prudente tê-lo, contudo sua presença é um enfado. Em troca da proteção, devo carregá-lo, aberto ou fechado, trabalhando ou descansado, sina cruel. Por vezes o esqueço em algum lugar, basta o tempo abrir, faço isso sem remorsos, apesar do prejuízo.

  Como sou dado às cogitações surreais, acusava em pensamentos aquele traste de roupa preta com esqueleto de varetas, culpando-o pelos males do mundo. Estranho, quando não há ninguém, criamos fantasias, dando asas à imaginação e vozes aos inanimados, quase inicio uma polêmica com aquele pobre. Fomos salvos, eu e ele, por alguém de carne e osso e muita necessidade de conversar. Por pouco não me achariam um louco em brigas com o guarda-chuva, quieto e pendurado em seu lugar.

  O rapaz tinha expressa vontade de partilhar seus anseios. A mim, entre a raiva nutrida por um interlocutor passivo a parecer soberbo em sua indiferença, melhor ceder os ouvidos a um mortal, afinal, lembrava,  aquilo era um intervalo do nada, inútil e despropositado.  Como diz o ditado popular: melhor ouvir que ser surdo.

 Veja o senhor... ( começou o rapaz, tentando estabelecer um diálogo, que antes era um monólogo.)
 Ela é bonita, atraente, uma fofura, mas...prostituta, (baixou levemente a voz não querendo chamar a atenção de mais ninguém) não dama que se leve à sério, entende ?
 Se ela tivesse me tido que me queria apenas por também ser sozinha, eu aceitaria, quer dizer, apenas para rápidas relações, afinal ninguém é de ferro e a carne é fraca ( sorria, como se desculpasse).
 
Pagar não é o problema, era só pôr preço e tava negociado, desde que não fosse o olho da cara, não sou rico, embora, repito, ela é um pitéu,  digo, uma gostosura de potranca... ( olhando-me inibido) quero dizer, uma formosura de mulher, o senhor entende, é homem vivido. Para mim (  dizia com certo orgulho) nunca pôs preço, foi por amor sempre.

 Mas observei que a danada pretende algo mais, não se satisfaz com minhas visitas amiúdes, já quer estabelecer compromissos, horários, cobrando-me satisfações de onde andei e com quem andava... ah, vi que a coisa tomava outro rumo !  A droga é que ela me fascina, aquele quarto dela é o céu na terra, leva-me às alturas dos prazeres... Deveria ter observado que o brilho no olhar dela não era o mesmo dispensado para qualquer um,  eu a encantava sem querer fazê-lo, é a tal química, coisa de pele... ( preocupado comigo em me fazer entender)  nos entendemos sexualmente, certo ?  ( creio ter acedido com a cabeça, indiferente, evitando interrompê-lo, não que o enredo me cativasse, mas pior seria emitir opinião em assunto a mim tão estranho )  

 Pois então, aquilo que começou como um transa despreocupada, passou a ser cada vez mais freqüente, praticamente todos os dias. Também sou responsável, não nego. Imagina que até roupas levei para me trocar e de lá sair para o trabalho ! É bom ter a atenção dela e a roupa limpa e lavada, eu resido em república, cada qual cuida de suas vestes, lavando e passando. E também, ao sair do trabalho, ligo, caso ela atenda está dado o sinal de que está livre, a minha espera, sem nenhum cliente. Então ela não atende mais ninguém, ficamos juntos o resto da noite.

 ... um instante só...
( foram as últimas palavras direcionadas a mim ,virando as costas para atender o celular que estava no modo silencioso, vibrava sem emitir sons.)

 Pude observar que se justificava, dando a localização de onde estava e porque demorava, tratando carinhosamente de meu bem à voz impositiva, dando satisfações e que não demoraria muito, apenas esperava a chuva amainar... Não esperou, saiu com a garoa forte e sumiu sem se despedir.

  Voltei no tempo, satisfeito com minha atitude no passado, quando, num romance rápido, também senti que encantava a minha parceira, mas sabia que a postura era uma falcatrua, disfarce romântico e oportuno.

 Soturno, irônico e despudorado, antes que a noite se fosse como um sonho e a carruagem reluzente fosse abóbora, vesti-me num átimo, seco e lacônico, e a deixei livre ( ou nos deixamos), antes que fosse tarde.

 E num rasgo de satisfação íntima, em fingida dignidade, sai do bar e enfrentei renitentes chuviscos, aberto e protegido pelo meu fiel escudeiro.

 

 
TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CRÔNICAS DO COTIDIANO, EDIÇÃO JUNHO 2011 - EDITORA CBJE/RJ

domingo, 24 de abril de 2011

CRIADOR & CRIATURA (conto)

Cansado de sua lida, encomendas de fregueses, querendo assim, ou assado... ele sempre obedecendo, construindo com afinco esmerado o que lhe pediam, no intuito de agradar e de sobreviver com seu trabalho.

Contudo, sonhava com uma obra prima, não a simples escultura de imitadas figuras, cópias de célebres estátuas. Enfim, como artista, queria ser imortalizado, reconhecido por seu trabalho, por seus 




traços únicos, peculiares... “ficou igualzinho ao fulano ou sicrano”, isso não queria mais, parecia uma máquina reprodutora, sem identidade,manuseando  com a alma alheia. Quem haveria de dizer: este trabalho foi do Aristeu ? Nunca, pois apenas copiava o que lhe mandavam, precisava sobreviver, ganhar o pão de todo dia. 

Ao passar sob uma escultura em um jardim, disse a si mesmo, quero brilhar,  se faço réplicas perfeitas por que não fazer uma com a minha imagem ?

Assim, entre uma encomenda e outra, garimpava uma pedra imensa, da altura de sua estatura, haveria de se sobressair com algo de sua própria lavra, com seus traços próprios, envaidecido com seu talento. Que adianta reproduzir célebres esculturas ? Jamais lhe dariam o crédito, seria apenas e eternamente um copiador de talentos alheios

Então passou a dividir o tempo, entre a obrigação dos pedidos e o deleite de criador, na obra que pretendia imortalizá-lo, fazendo uma réplica em pedra sabão de si mesmo.

Acertos aqui, uma aparada ali, da pedra surgia, paulatinamente, o contorno de uma figura humana, em pose encenada, com as mãos abertas, como a receber a ovação do público. Assim se imaginava, ao receber os previstos elogios de admiradores, e, quiçá, da municipalidade, a quem pretendia doar a peça para exposição pública. Além de ser o autor, retratava a si mesmo, numa autoimagem , seria a esperada recompensa, a glória de um artista, enfim reconhecido.

De olhos abertos, sem conseguir pregar os olhos, delirava na imaginação da escultura pronta, nos detalhes que imprimia à pedra que lhe daria a forma, algo perfeito, a recriação de si mesmo.
E levantava no meio da noite, prazeroso, sono desperto, avançando nas madrugadas, polindo, acertando, corrigindo imperfeições, moldando o manequim. 
Mantinha a pedra encoberta por um lençol, longe das vistas de terceiros, como se fosse uma encomenda reservada de algum freguês que preferisse o sigilo. E ficava entre a pequena loja e a sua oficina, nos fundos da casa, esperando fechar o estabelecimento para voltar ao ofício que o magnetizava há tempos, roubando horas a fio em seu ofício de escultor.

Aquilo passou a ser uma obsessão, um prazer nunca antes experimentado, embora amasse seu ofício e fosse primoroso em cada encomenda. Aquela escultura  era especial, ele próprio sendo imortalizado naquela pedra, projetando-se no futuro, sobrevivendo ao tempo, quando já não mais estivesse vivo. 

Com a benevolência dispendida à  própria imagem, a construía em traços leves, suaves, feito uma tela na maestria de um pintor com seus pincéis e tonalidades. Avultava um Ser angelical, de expressões sublimes, distanciando-se do modelo, enxergados com os olhos da indulgência de si mesmo, onde não cabiam os sinais das intempéries registradas no corpo, produto de uma jornada sofrida. 

A obra tornava-se distinta do autor, de tão perfeita não assemelhava-se como a réplica de si  pretendida. Não haviam sequer vestígios dos marcantes sulcos na face, tampouco as mãos estendidas tinham as veias saltadas, antes pareciam aveludadas.
As orelhas miúdas e proporcionais destoavam das vistas no operoso trabalhador, caídas e exuberantes.  A cabelereira farta no boneco nada tinha das entradas calvas do escultor. A cada martelada caprichada, nascia um outro Ser, belo e diferente de seu criador.

Por fim, orgulhoso do trabalho de meses, decidia torná-la pública.
A princípio, ficaria exposto no pequeno atelier, depois, de acordo com as impressões dos visitantes, ofertaria à municipalidade, cioso de ter concebido uma peça de esmerada arte ao se projetar nela.

Como  tinha a imagem as mãos abertas, assim que o primeiro freguês adentrou a loja, pendurou o guarda- chuva em uma delas, na outra mão colocou o chapéu, julgando ser para tal fim que ali se encontrava... Nenhuma palavra sobre a escultura, embora pacientemente esperasse o artista pelos elogios imaginados. Assim sucederam com vários outros visitantes, no correr dos dias. Ou confundiam com objeto para recepcionar guardas-chuva e chapéus, ou passavam indiferentes por ele.

Resolveu mudá-la de posição, não mais ficaria logo na entrada, a colocou no centro da loja. Pior, pois caiu em completo esquecimento. Exceto por uma beata que insistiu que tratava-se de um Santo, que não conseguia lembrar-se do nome, martelando com o velho para que dissesse quem seria, citando o extenso rol dos canonizados católicos... 

Cada vez que fechava o estabelecimento, olhava com os olhos desalentados para a escultura, como se visse nela um filho ingrato, a desconhecer seu pai. Nenhum olhar sobre sua arte o reconheceu nela, nenhuma manifestação sobre sua obra que o identificasse, naquele esforço aprumado em tantas noites insones.

Sentava em um banco, aos pés da escultura, procurando entender o que dera errado. Com afinco esmerado esculpira a própria imagem, segundo a sua visão. A fizera majestosa, nela se mirando, como a si se admirando. Do simples cascalho da pedra bruta, fizera luzir aos poucos, extraindo da inerte matéria um ente ideal, mas estranho se lhe ficava...


 Ele com suas feridas, marcas da vida, era o contraste com a arte esculpida, apenas um imperfeito mortal na concepção idealizada e distante de si mesmo...


Selecionado para figurar na Antologia de Contos de Grandes Autores Brasileiros, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, setembro 2011

quarta-feira, 20 de abril de 2011

SAUDADES EM REVOADAS




andorinhas revoadas
marcha sincronizada
nos ares destacadas

voam em debandadas
anunciam chuvas
buscam outras plagas

em seus bandos
encantos felizes
saudades deixadas

lágrimas de quem as vê
partindo,
ficando... 

*SELECIONADA PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS N° 79, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, JUNHO 2011

quinta-feira, 14 de abril de 2011

RAZÃO E FUGA


Trago comigo, prevenido,
antídotos contra a razão
ela me escalpela, maltrata,
lembrando o que não quero



Feito mãe aborrecida
pegando na contramão
cobrando juízo
puxando as orelhas

A por- me nu diante a mim

fugitivo em debandada
assovios traindo temores
devaneios em refúgios



Abrindo as janelas
sol vibrante
vida estuante
ela lá está, de prontidão...

M E T A M O R F O S E (CONTO)





Ao entrar, a moça seminua, em gestos, insinuou que o jovem se despisse e ficasse à vontade, embora delimitado o tempo, o pagamento dava-se por intervalos preestabelecidos. Pacientemente, esperava-o, tenso pelo inusitado de ver-se nu diante a uma mulher, a primeira de sua iniciante vida sexual , atrapalhava-se com o despir-se, enredado nos cadarços do sapato, envolvido com as calças presas às pernas. Displicentemente, olhando evasiva pela janela, cigarro acesso à mão, aguardava paciente o cliente atrapalhado desembaraçar-se.

 Aquele talvez fosse o maior dos constrangimentos experimentados por aquele rapazote, as faces ruborizadas lembrando um menino encrencado. Por que, raios, tinha sempre que se atrapalhar para tirar as roupas, e por que ela não o ajudava, ao invés de permanecer impassível, distante, olhando por aquela janela, como se ele não estivesse ali ?  Afinal, por que não poderiam começar assim mesmo, o importante não era tirar os sapatos, eles não iriam participar do romance, bastaria abaixar as calças...

Enfim, despido, de meias, parecia um frango novo e depenado, envergonhado de sua inexperiência, observado por aqueles olhos vivazes e displicentes, como se ele estivesse disponível e não ela. Queria terminar o quanto antes e sumir dali, cheio de pejos e autocensuras, as emoções desencontradas não demoraram a se manifestar, arrefecendo os desejos do cliente, ainda mais envergonhado de sua visível impotência. 

Algo haveria de quebrar o gelo, senão seria perda de tempo, dinheiro gasto à toa. Será que ela não lhe daria uma ajuda, o carinho de uma carícia, algo que reativasse seu desejo maculado pela timidez ?  
O que estaria ela pensando a seu respeito, um frangote inexperiente, abatido pelas circunstâncias, ferido de morte antes da batalha ?

Os olhos desesperados falavam tudo, um mudo pedido de socorro. Nem poderia imaginar um eventual fiasco de sair dali sem concluir seu intento, seria uma derrota, um trauma inesquecível, sua falência masculina, um duvidar de sua capacidade sexual.

Um meneio de sorriso dela, entendendo o embaraço, nem precisava perguntar se era a primeira experiência, estava evidente que sim. Não seria o primeiro de seus clientes novatos, alunos de sua maestria profissional, tinha a malícia e vivências necessárias para levá-los ao paraíso, no divisor de águas entre a inocência infantil  à fase adulta, liberta e libertina de aventuras.

  Aproximou-se daquele  jovem  arrepiado, uma criança crescida e assustada. Onde os desejos misturavam-se com o terror de ser visto em pelo,  exposto e envergonhado. Tantas confusões mentais o atormentavam naqueles minutos decisivos, o temor de ser julgado um fraco na sua primeira tentativa, vencendo a si mesmo, se conhecendo.

O calor da proximidade, o hálito de canela da cigarrilha, misturado ao perfume suave, o contato da pele feminina e quente, quebravam resistências, fazendo-o renascer nos anseios que o trouxeram ali.

Como um boneco, sem saber exatamente como agir, cedeu ao abraço da meretriz, enlaçando-a, também, como se dançassem, embora não tivesse nenhuma música sendo ouvida.

 Nus, enlaçados, a suavidade da fêmea encostada em seu peito, justaposta a ele, dando-lhe um abrasador desejo de possuí-la. Derretia-se o gelo, incendiava-se a luxúria, despertava o homem no menino.

Ato contínuo, lição assimilada de imediato, assumia o controle da situação, despida de vez a incômoda timidez, na posição viril de macho, tomando a dianteira, apertando-a freneticamente.
Vulcão em erupção em lavas incandescentes lábios que  buscam, insaciáveis,  correndo dos seios, ao ventre, buscando senti-la inteira , sedento de incontrolável desejo, como degustando, literalmente, aquele momento tão aguardado, cheio de mitos e fantasias.

Acompanhou-a deitando-se ambos, embrenhados, como se fossem antigos amantes, na volúpia do prazer. Ela o conduzia pela experiência e ele sentia-se no maior dos gozos, como em um parque de atrações de brinquedos radicais.

 Os doces seios da  fêmea, enriçados e túmidos de tesão,antes apenas imaginados, alimentavam os apetites com os cheiros dos suores dos corpos, nas mãos atrevidas, curiosas, devassando em incursões íntimas as genitálias. A mente juvenil alçava voos, na conquista da sereia idealizada. Era toda sua, um brinquedo interativo, a responder lascivamente as carícias, num mergulhar de sensações...

Paraíso profano, impudico, sem censuras e limites, apenas o deleite de corpos tensionados em desejos, êxtases, sonhos, delírios...
Quatro paredes como testemunhas do intercâmbio entres Seres que se roçam, entrelaçam, permutam fluídos, transpirações, odores, se acoplam, completam, se inteiram.

Entes no cio, em gemidos, sussurros, entregues se deixam sem pudores. Se  desejam, se comem, se mexem, invertem, inventam,
 se consomem, deleitam-se, aproveitam e compartilham.

 Embolam-se, mesclam-se, deliciados, exaustos, satisfeitos, em delíquios palpitantes, adormecem...

O despertar da breve prostração reparadora, letárgico, as mãos sobre o corpo feminino e quente, o fez feliz, satisfeito. Antes, estar com uma fêmea era apenas imaginação na masturbação freqüente, suavizando as exigências hormonais da idade, em rebuliços. Deixara atrás de si medos e receios, vencera o tabu da timidez de ver-se  nu diante a uma mulher, no anseio de possuí-la, estágio que divisava fases de sua vida, do menino curioso ao homem ousado, conquistador.

 Semelhante a um  laboratório de experiências, por aquela porta entrou um garoto assustado e tímido, por ela sairia um homem realizado e confiante...


domingo, 10 de abril de 2011

A MUDANÇA ( CONTO )



Enquanto metia as poucas vestes na mala, como um autômato sem direção, os pensamentos atropelados, um misto de derrota e de recomeço incerto, enfim, um ponto final em um enredo já esgotado, sem se importar com o que deixava, livros empoeirados em caixas e alguns na estante. Dele ficaria isso, os livros, provisoriamente, até que arrumasse um local para removê-los. Poderiam ficar em um canto, despercebidos, como sua ausência.

 Combinaram assim, ele sairia sem a presença dela, levaria o suficiente para não ficar nu, o mais, móveis, ficariam intactos na casa...evadiria sem vestígios, ou adeuses. Enterrava-se definitivamente o insepulto cadáver do falido casamento, do qual restaram um álbum de fotografias e uma fita de vídeo cassete na representação de um espetáculo feliz, recordações de um dia que procuraria esquecer.

 Debalde a exaustão da convivência sem mais sentido, ainda existia um sentimento de falência no ar, uma briga íntima no cair da razão, a idéia de que um  relacionamento oficializado tinha que perpetuar, de ser para sempre, nas alegrias e nas tristezas, tudo aquilo ainda ecoava nos valores herdados dos pais e avós. Mas nada daquilo servia naqueles momentos, onde a permanência naquela casa chegava ao término, findando qualquer possibilidade de reconciliação. Havia, ainda, que precisar alterar rumos, refazer os passos, recriar caminhos, fazer novas rotinas, reaprender a ser só, quer dizer a assumir realmente a sua solidão, não mais dividi-la com ninguém.

 Mesmo com a dor nos acostumamos com ela, fazendo parte dos dias, postergando atitudes, evadindo-se de resoluções, protelando decisões. Porém aquela medida era extrema, definitiva. A mala arrumada não era apenas uma encenação temporária, como de tantas feitas, de reconciliações posteriores, então vivendo dias prazerosos de inúteis apostas em um futuro melhor.

 Não foram felizes, iludiram-se. Aliás, não se conheciam, mesmo com anos de namoro e na condição de casados. Enganaram-se . Não havia exatamente culpados, apenas a noção exata de que eram estranhos um com o outro, como navegantes em uma mesma canoa, remando cada qual para um lado, rodopiando em círculos, não indo a lugar algum.  Estiveram juntos, coabitando o mesmo teto, mas distantes em objetivos e cumplicidades. Eram alheios nos propósitos. Restava, contudo, uma incômoda sensação, de perda, ou medo do recomeço ?  Aquilo angustiava, o novo preocupava, exigia coragem de espanar poeiras de velhos conceitos e hábitos.

 Sem despedidas, ensaios pronunciados inúmeras vezes, nem sempre em palavras articuladas, mas sentidas, presumidas, em gestos ou insinuações, como a areia caindo, lenta, na marcação de um tempo final. Antes que o ar já rarefeito da convivência desandasse pelo desrespeito, uma atitude, por sofrida que fosse, teria que romper os laços depauperados mas ainda existentes, por tradição ou vã esperança de entendimento. Aquilo, a permanência, doía , mexendo com a autoestima, aprofundando as feridas, arrastando-se interminável como uma sentença perpétua.

 Como é difícil o desapego das coisas, mesmo nas condições mais adversas, temos o hábito de nos acomodarmos. O novo assusta, pelo inusitado, por exigir posturas e ações. Reaprender a andar em novos passos pode ser amargo e inseguro pela ousadia que nos cobra. Tudo que nos põe à prova, assusta, espanta velhas idéias sobre tudo e nos coloca em xeque, nos tira do aparente sossego de nossas acomodações, instiga a lutar por uma nova realidade.

 Aturdido nessas emoções desencontradas, cumprindo o combinado, a mala sem saudades, sem a presença na despedida, sem azedumes ou queixas, sem murmúrios, nada para segurar as lágrimas, nenhum sorriso que confortasse, nem arrimos para se apoiar, uma estrada nova a se seguida, vencida, e só, finalmente, consigo mesmo...

 Epílogo do esgotamento de um sonho mal vivido, a liberdade assustava ainda mais que as algemas da comodidade incômoda, por paradoxal que seja.

 O taxi na porta, o destino e endereços incertos, uma nova empreitada, reivindicando forças que pareciam ausentes, apenas mais uma história mal vivida a ser recomeçada...

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A PROSTITUTA E A MENINA ( CONTO)


MANGUE - CÂNDIDO PORTINARI, 1929


Recebera  tantas considerações, enaltecida como uma preciosidade, parecendo parte do patrimônio da cidadela, talvez para desculparem as poucas distrações que ofereciam  aos visitantes, avultava a figura na conta de um atrativo excepcional.  Desde que chegara a trabalho naquele vilarejo, bastou tornar-se mais íntimo de alguém para que lhe descrevessem aquela mulher como uma deusa, instigando-o para conhecê-la, ao vivo e em cores.


Aquele era o dia.  Encontrava-se naquele local bizarro, com decoração berrante e de mau gosto, em tonalidades fortes, parecendo realmente o palco de um prostíbulo, como era. Cortinas vermelhas, papéis de parede em detalhes chamativos,  impróprios, diria para si mesmo, algo desdenhando daquele local, onde as mulheres, exageradamente maquiadas, o olhavam curiosas e convidativas. A música também combinava com o cenário chinfrim, burlesco.


Enfim, a avistava, destacava-se das demais, sim, era  a mais atraente e bela, pensou em levantar-se e aproximar, mas se deteve, ao vê-la ladeada por um homem a acompanhá-la a uma mesa privativa. Pelo jeito, naquela noite, estaria ocupada.


As noites sucessivas sempre chegando atrasado, não conseguindo estabelecer um contato com aquela cobiçada dama. Informou-se no balcão do bar e teve conhecimento de que ela só atendia com prévio agendamento, e parecia que a espera seria longa, ainda assim levou um cartão de visitas. Quanto mais difícil era, mas crescia seu interesse por ela, não dando chances para as demais.


A rotina de seu trabalho, com tempo certo para o término, quando então deveria retornar à matriz, na capital onde trabalhava e residia, o absorvia. Esquecera-se de ligar, o faria por curiosidade, não era dado a aventuras tais, apenas, motivado pela popularidade da prostituta, queria conhecê-la pessoalmente.


Revirando os bolsos das roupas para mandá-las à lavanderia, encontrou o cartão, sorriu com quem não pretendia levar  a sério aquela estória, mas, ainda assim, não o descartou, guardando na gaveta do criado mudo do hotel.


 Foi durante o expediente, num rápido intervalo para o café, que ouviu a conversa que o intrigou. Um dos homens, envaidecido, afirmava a outro que passara uma noite inesquecível com aquela dama, que fora difícil conseguir um espaço na agenda dela, mas valera a pena.  Como um garoto curioso, cresceu novamente a sanha de conseguir vê-la,  antes que terminasse o prazo dos trabalhos que o prendiam na filial, naquele lugarejo parado no tempo.


No quarto, buscou pelo cartão e tentou ligar, sendo que entrava em uma caixa postal, onde  uma voz feminina avisava que retornaria a ligação, não sendo possível atender naquele momento, caso quisesse, deixar o nome e o número de telefone.. Desligou sem deixar recado.


Os dias corriam, o trabalho estava próximo do fim, parecia ter desistido daquela aventura maluca. Era apenas mais uma mulher, bela, sem dúvida, mas não única, a capital estava cheio de beldades desfilando, por que tanto esforço para conhecê-la ?. 


Contudo, havia o desafio da conquista, vencer as resistências, um certo fetiche, um prêmio que se tornava mais interessante quanto mais difícil se apresentava. Eram enfadonhas as noites na cidade desprovida de atrativos para turistas, ficando praticamente deserta antes das vinte e três horas. Restava a televisão, a internet, ou o sono que demorava a chegar, acostumado com a rotina de grande centro e a dormir tarde.


Incomodava a idéia de desistir de estar com ela,  poderia ser uma lembrança diferente, um souvenir de viagem, um troféu, já que era disputada por todos os homens que chegavam naquele local.Não deixara o telefone para retorno, não se sentira seguro de dar seu número a estranhos, principalmente naquelas situações. Perdera a oportunidade de tentar estabelecer o contato. 


No último dia de estada na cidade, terminou o serviço mais cedo, preparou a mala de viagem, tentou uma nova ligação para aquele número do cartão e ouviu a  mesma gravação... Mesmo que quisesse deixar recado, não daria mais tempo, estaria pegando a estrada logo mais. 


Ainda era cedo, por certo a “casa” não tinha sido aberta ao público, por que não tentar vê-la, mesmo que fosse para uma conversa rápida, não um programa, caso ela não quisesse, mas vê-la e quebrar com aquela curiosidade que o consumia desde que chegou ali ? 


Chegou ao local meio sem jeito, não sabia como se dirigir a quem quer que fosse, afinal a função só começaria a partir das vinte e uma horas e eram apenas dezessete da tarde, seria a última tentativa. Acabou vendo o rapaz que atendia no bar, confidenciou-lhe sua intenção e pressa.


Orientado pelo informante, entrou na casa e caminhou pelo extenso corredor, onde ficavam os quartos pessoais das mulheres ,não os de atendimento de clientes, separados em outro hall. Passando-se por entregador de  mercadorias para abastecer a cozinha. Soube o número do quarto da enigmática dona, chegou perto, viu que a porta estava entreaberta, uma música suave, de cantigas de rodas, ouvia-se, empurrou discretamente a porta sem fazer barulho... ela ressonava sobre leve lençol, abraçada a um  boneco de pelúcia , inacreditável aquele quarto infantil, decorado com  personagens de contos de fadas e gnomos, numa alegoria destoante do ambiente esperado de um prostíbulo. 


Sem saber como agir, desprevenido diante o que presenciava, recuou, passo a passo, sem fazer barulho...


Aquela cobiçada mulher parecia uma princesa em um reino de fantasias, uma cinderela no bosque dormindo tranqüila, uma criança feito uma flor em um jardim...


Distante daquele objeto de prazer, fetiche sexual, fêmea em sedução e lascívias, desejada prenda de ávidos machos, naquele palco de ilusão e solidão de tantos boêmios, nos  alvos seios em farto corpo, estrela absoluta na constelação de neons do meretrício, disputada, cobiçada, de todas a mais cara, devassa, naquele íntimo universo parecia uma inocente menina de ninguém...