Selecionado para figurar em livro na antologia de contos Histórias, Causos e Lorotas que só o brasileiro sabe contar - editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, março de 2013.
Distinguido entre os autores com mais de 100 mil leituras nas antologias on line da editora
Ausências & Temores
Ao levantar-se refugou o afago da gata
em seus pés, mostrando intolerância, a bichana saiu contrafeita num miado
arisco. Ergueu os braços para se espreguiçar, estava moída, tivera uma noite
aborrecida, pelo calor intenso e o tédio. Levantara várias vezes, buscando água
gelada. Olhava para a folhinha na parede, era quarta-feira, havia 10 dias que o
marido se ausentara, nunca ficara tanto tempo fora. Não estava se controlando,
afinal, sem notícias, pois naquele ermo esquecido por Deus, nem o celular tinha
sinal, virou apetrecho sem utilidade.
Casaram-se e resolveram morar ali. Apesar
dos incômodos, seria, na pretensão deles, algo provisório, não precisariam
pagar aluguel, visto que a humilde propriedade fora deixada pelos pais do
marido.
Para tal, ela ficaria sem atividade
profissional, visto que o local não oferecia empregos, além de serviços
domésticos. Ele era representante comercial da empresa, vivia em viagens,
geralmente se estendendo além do
prometido.
Aquilo a estava deixando intranqüila, sempre trabalhara fora, agora via-se obrigada a pequenas tarefas domésticas, entediando-se. A ausência do companheiro a fazia injuriada, chegando a pensar besteiras: Tenho sinceras dúvidas sobre as atividades dele nas cidades visitadas, homem é tudo igual, não podem ver rabo de saias...Não acredito que se abstenha de sexo por tantos dias.
(Fotógrafo Carlos Julio Martinez em Cali, na Colômbia)
Justamente por aquelas cismas que
tantas vezes a visitava, que resolvera assistir uma sessão no terreiro, queria
saber das andanças do marido em tão prolongadas ausências. Nunca tinha
freqüentado tal ambiente. Motivada por uma prosa à toa com uma vizinha,
freqüentadora habitual. Não confessara suas dúvidas com a moradora ao lado, era
reservada, pois roupa suja se lavava em casa. Iria como
companhia, por pura curiosidade, sem entrar em detalhes.
- Pois tenho certeza que vai gostar,
tem “ entidades” fortes, ajudam a
arrumar emprego, dão conselhos para os negócios e para a saúde, falava convicta
a acompanhante.
Lá estava ela, sentada em um banco de
madeira, surpresa com o ambiente, cheio de imagens. Naquela noite a “gira”
seria da esquerda, os homens trajavam roupas escuras e vermelhas. As mulheres
participantes também com indumentárias rubras e escuras, saias longas e
enfeitadas, com colares, pulseiras e adereços nos cabelos, além da pintura acentuada
nas faces.
Aberta a sessão, com os convidados em
pé, passava o defumador esfumaçando o ar, envolviam-se naquela queima odorífica
de ervas, acompanhava silenciosa os movimentos dos
presentes, a cantoria era geral. Os atabaques enchiam os ouvidos com a
percussão ritmada.
Aos poucos, o grupo de médiuns que se
encontrava no centro do terreiro, parecia entrar em transe, movendo-se ora para
trás e para a frente, falando em voz estranha, dando risadas e cumprimentando-se
entre si. As mulheres rodavam com suas saias armadas, piteiras nos lábios,
olhando charmosas para o público masculino da assistência.
O atendimento era por fichas e hora de
chegada, tinham que entrar descalças na área determinada, onde seria feita a
consulta. Nervosa, ela pensou em
desistir, aquilo tudo era muito estranho. Depois tinha dúvidas do que fora
buscar ali, nem como iniciar sua conversa com a “entidade”. Só não desistiu por
que não queria voltar sozinha, sua casa distava várias quadras e a iluminação
nas ruas era precária, a vizinha, já acostumada, não iria perder a entrevista
por ela. Aquietou-se, constrangida, decidida a tomar apenas um passe para não
passar despercebida.
Quando finalmente fora chamada pelo
número da senha, viu-se cumprimentada por uma mulher, figura exótica, com
risadas soltas, ostentando uma taça de champanhe, oferecendo a ela, que não
sabia como agir.
- Então menina, em que minha força
pode te ajudar ?
Ante o mutismo da consultada, num riso
escancarado, falou-lhe aos ouvidos: O pernas de calça anda aprontando, minha
menina ?
Diante ao assombro dela, sem querer
abrir-se com receio de ser ouvida por estranhos, fez sinal de que não tinha
certeza...
Pois bem, coloque um marafo pro meu homem,
ai deu o nome dele para a cambono ( pessoa que anota as orientações), uma rosa
vermelha para mim ( deu o seu nome), e deixa com a gente... Se ele tiver
mentindo, você fica sabendo logo. (Gargalhadas.) Senão, terá uma notícia que
mudará para melhor a vida de vocês, tirando-lhe suas inquietações, aliviando
seu coração.
Saiu dali mais grilada do que quando
havia entrado. Não disseram nem que sim e nem que não, mas a pulga estava
colocada atrás da orelha. Somando a angústia da solidão e a carência de carinho
do companheiro ausente, parecia que tinham falado tudo o que ela já
desconfiava. O que a abismava era como aquela mulher sabia de sua dúvida, se
ela sequer abriu a boca? Ou será que tinha falado e nem se lembrava diante de
tanto nervosismo?
Caminho de volta, a vizinha
interessada em saber as impressões dela, perguntando, fazendo com que ela se esquivasse
com evasivas. Confidenciar-se com
estranhos, nunca. Lugar pequeno, falta do que fazer, a língua corre solta. Não
queria ser tida como a traída na boca de ninguém. Assuntos pessoais seriam resolvidos
com reservas e dentro das paredes de sua casa, nenhum sinal para a platéia
sequiosa por boatos difamatórios.
Apenas dois dias depois ele chegou.
Falando muito, animado com suas notícias de vendas, sequer percebendo o
desânimo da companheira, desconfiada e infeliz.
A pretexto de buscar suas roupas para lavar,
procurou pelas cuecas, tentando aspirar
perfumes femininos nas camisas, cheirando-as, e alguma pista de eventual
relacionamentos clandestinos do parceiro. Revirava as peças afoita, torcendo
para não encontrar nada que depusesse contra ele. Precisava recuperar a sua paz
íntima, abalada por tantas suspeitas.
Depois de banhar-se e comer alguma
coisa, buscou por ela, enamorado e saudoso. A princípio pensou em negar-se a
ele, e expor toda a sua angústia por esperá-lo por tantos dias, porém, carente, achou que não estaria jogando
com a melhor tática, dizem que quem não tem em casa busca em outros braços.
Nos momentos íntimos não conseguia
perceber traição, pois demonstrava um “apetite” de esfomeado, a deixando feliz
e saciada, não sendo possível tanto
ânimo caso ele estivesse com uma vida dupla.
Assim ele passava alguns dias com ela, até que retornava a pegar a
estrada, deixando-a solitária.
Os dias corriam,
períodos de esperas e de chegadas, noites inteiras imaginando como ele estaria,
e, no inferno das incertezas, com quem
pudesse estar, virava-se incomodada no leito de casal Por tantas hesitações, via-se frente a
frente com uma cartomante, precisava ter certeza, a dúvida a estava deixando
maluca. No reservado da casa daquela mulher, moradora distante, sentia-se mais
à vontade para se abrir. No terreiro, as consultas aconteciam sem privacidade,
apesar do barulho existente e das conversas serem feitas “ao pé do ouvido”,
além da presença de vários conhecidos, razão pela qual nunca mais retornou
àquele local.
Diferentemente da consulta anterior,
com a entidade, a consulente era simpática, extrovertida e a deixava confiante.
Juntos tomaram café com bolachas, antes
de iniciar a leitura do baralho normal e
do tarô.
As cartas não denunciavam nenhuma
traição do companheiro, pelo contrário afigurava-se homem trabalhador e
entusiasmado com seu serviço e devotado esposo, porém algo surgia naquela
leitura que intrigava aquela senhora. Parecia um bloqueio, um impedimento de
enxergar mais claro. Acabou por confidenciar à consultada, que não sabia o que
ocorria, mas pela primeira vez tinha a visão obscurecida. Algo não estava claro.
Desculpava-se, não pretendendo sequer cobrá-la pelo atendimento que não achava
a contento.
- Algo está impedindo que eu veja mais
longe, por acaso você ficou pendente de fazer alguma coisa? Vejo com
insistência uma figura feminina, desejando algo de você...
Parecia que acordava, ouvindo
intimamente uma gargalhada, estremeceu-se, lembrando do que fora pedido pela
Pomba Gira, uma garrafa de cachaça para o parceiro dela e uma rosa vermelha
para ela.
- Então cumpra, falou a cartomante
decidida. Depois retorne, as coisas ficarão mais claras.
As exigências foram cumpridas
discretamente, e, aliviada, deixou de procurar dentes em cabeça de cavalo,
esquecendo-se de tantas asneiras e desconfianças.
Após alguns dias, uma indisposição, um
leve enjôo, uma tontura intermitente. A notícia não poderia ser melhor, estava
feliz, percebendo-se grávida, a menstruação atrasada reforçava a sua intuição
materna.
Alvoroçada
com o imprevisto tão desejado, percebeu-se liberta de sua idéia fixa, tomada
por outros afazeres tinha algo mais
sério com que se ocupar...
21 comentários:
09/03/2013 11:45 - Professor Edgard Santos:
Ed: Dizem que filho prende o homem. Em parte é verdade, mas do jeito que anda moderno o nosso mundo, não sei não. Procurar consultas com os que se dizem adivinhos é outra coisa pra desconfiar. Ela preferiu assim e parece que deu certo em parte. Seu conto foi bem elaborado, com imagens, boas descrições e suspense à altura. parabéns!!!
Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)
(RECANTO DAS LETRAS)
08/03/2013 11:48 - annabailune:
Excelente. É assim mesmo: os 'santos' nunca dizem que sim, nem que não. Vejo na TV as previsões para o novo ano, e é sempre a mesma coisa:"Um famoso vai casar-se." "Um grande ator vai morrer." Ora, isso acontece todo ano! Adorei o conto. Uma narrativa que prende e atiça a curiosidade.
Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)
(RECANTO DAS LETRAS)
07/03/2013 11:51 - Michele CM:
Oi Ediloy! Gostei da trama psicótica vivida pela sua personagem. Em cabeça vazia sempre entra bobagens, e essas desconfianças (muito comuns) poderiam ser amenizadas antes com alguma outra coisa! Ainda bem que ela ficou grávida, assim ela vai ter com o que se ocupar!
Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)
(RECANTO DAS LETRAS)
06/03/2013 18:18 - Marianne Morais:
Excelente! Abç.
Para o texto: AUSÊNCIAS & TEMORES (T4174689)
(RECANTO DAS LETRAS)
Não tem pior inimigo do que: dúvidas e incertezas. Confiar não é pródigo do ser humano, há sempre um bichinho fazendo cócegas e daí os temores.
Belo texto!
ubirajara
caravanapoeta@gmail.com
12/03/2013
(SITE DE POESIAS)
Texto realmente fascinante, meus sinceros cumprimentos!
Pastor
altair.poesia@hotmail.com
12/03/2013
(SITE DE POESIAS)
Caro poeta mais uma vez nos brinda com um lindo texto que enfoca os males provocados pelas falta de Companhia e pelo temor da solidão. Parabéns pelo belíssimo texto.
J.A.Botacini
Zezinho.
Jose Aparecido Botacini
ze-botacini@hotmail.com
10/03/2013
(SITE DE POESIAS)
Eu sempre me abstive de comentar os textos desse mestre dos contos, simplesmente por julgar-me incapaz intelectualmente para fazê-lo.
Mas enche-me de orgulho, quando EDILOY A C FERRARO, diz humildemente em meu texto AVISO! AVISO! AVISO!
"Estarei te Visitando."
Essa é daquelas visitas, que mesmo estando a casa em ordem, com tapete vermelho estendido. Agente sente que ainda não é merecedor de tão nobre visita.
Milhões de brasileiros, se conhecessem esse genial escritor e o lesse, de certo fariam do Brasil uma grande nação, não só no que concerne a extensão territorial.
Redimindo-me agora digo:
Parabéns por todo conjunto de sua genial e valorosa obra.
Papa-Jaca
papajaca@yahoo.com.br
10/03/2013
(SITE DE POESIAS)
Conto, em minha opinião, precisa
ser assim: prender a atenção até
o fim e ser, na medida do possível
ser realístico, enfocando o corriqueiro...
Gostei da experiência!
RONALDO RHUSSO
ronaldo.rhusso@gmail.com
10/03/2013
(SITE DE POESIAS)
Olá Poeta,
Gosto muito de seus contos,
esse em especial me lembra a frase
"Mente vazia, oficina do diabo."
Abraços,
Hinah
Hinah
ka.dye@hotmail.com
10/03/2013
(SITE DE POESIAS)
EDILOY A C FERRARO. Meu nobre escritor, eu acabei de lêr um maravilhos texto, fiquei maravilhado com a tua capacidade de prender o leitor ao teu conto. Parabéns e boa sorte.
Galdino
galdinoalves@uol.com.br
(SITE DE POESIAS)
Um conto do mundo da intimidade da protagonista. Sofrido. Bonito.
Comentário Enviado Por: Luiza Brandão Mota Em: 13/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
Oi Ediloy, maravilha de conto.
Comentário Enviado Por: Rosa Amélia Em: 12/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
Mestre, não me mate de inveja. É melhor ter asma do que inveja. Você é um Messi, Ferraro, o jeito é nome-a-lo papa para ver se deixa de fazer inveja a gente.
Comentário Enviado Por: william porto* Em: 12/3/2013
*WILLIAM PORTO é contista e blogueiro.
( BLOG DO LIMA COELHO)
Coisas da vida. Casar com caixeiro-viajante tem dessas aflições. Bem sei.
Comentário Enviado Por: Maria das Graças Dourado Em: 12/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
É, o medo faz cada uma!
Comentário Enviado Por: Alice Matos Em: 12/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
Achei muito bom, mas meio confuso. Ou não entendi direito. Belas ilustrações.
Comentário Enviado Por: Mabel Em: 12/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
Um conto bem legal. Edyloi é um contista dos bons: criativo e escreve bem
Comentário Enviado Por: Corina Lobão Em: 14/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
Comentário Enviado Por: Vitória Caldas Em: 14/3/2013
Pura prosa-poema
Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos Em: 13/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
Eu adorei. Bem intimista.
Comentário Enviado Por: Vitória Caldas Em: 14/3/2013
(BLOG DO LIMA COELHO)
Ediloy, eu estou sempre perdendo a hora aqui no site, mas sempre chego a tempo para não perder coisa boa. Ótimo conto, retratando bem as angústias de uma mulher solitária, sem sua vida profissional e tendo que viver em uma cidadezinha, à espera de um marido viajante. Você foi hábil em arranjar-lhe uma criança para cuidar, mas será que ísso bastará? Abração, Ivette.
Comentário Enviado Por: Ivette Gomes Moreira Em: 21/3/2013
* Ivette Gomes é contista com livros publicados.
(BLOG DO LIMA COELHO)
Postar um comentário