quinta-feira, 16 de abril de 2015


* Meu 69º conto publicado em livro de antologia CONTOS DE OUTONO, pela editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ- lançamento em 20/06/2015.

Saudades da dor


Enquanto se preparava para a volta ao trabalho, absorto a apertar o nó da gravata, vagava em pensamentos dispersos, alheio aos ponteiros do relógio, senhor de seu tempo, cobrador incansável de sua rotina. Jamais pensara em dar-se uma folga, mas fora quedado pelas circunstâncias, prostrado em casa por mais de 15 dias, enfermo. A vermelhidão na perna, aparentemente inchada e incomodando, além de um estado febril intermitente fora o diagnóstico de erisipela a pô-lo a noucate, criando um vazio em sua azáfama cotidiana, impondo-lhe compulsória  pausa. Até então não tinha conhecimento dessa enfermidade, causada, soube depois, por uma bactéria, sujeitando-o ao repouso forçado e a medicamentos antibióticos. Hiato repentino a mudar-lhe o ritmo de vida, pela metade de um mês inteiro, gerando inconvenientes, alterando seus passos, relegando a outros seus compromissos profissionais. Inimaginável, antes da ocorrência, ficar detido por tanto tempo em sua residência, mudando hábitos, adaptando-se à forçosa e inesperada trégua. Condicionado aos limites do quarto ou da sala, necessitado de um apoio numa bengala, evitando sobrepor peso sobre o membro em tratamento.
Passara, nesse intervalo de dias a observar minúcias, a se deter em coisas corriqueiras, aparentemente sem interesse algum, não fosse a necessidade de preencher as horas, quando se cansava da leitura de alguns livros, sim, pois, enfastiado, detinha-se em várias leituras simultâneas, como se enfadado dos temas. Trocava de obras, inquieto, como se quisesse conferir ritmos, mudando de cenários, ao tratar de assuntos variados. A televisão não o apetecia. Era um indócil sendo adestrado, um cavalo rebelde, solto, tendo que conviver nos limites da cocheira, na imposição de tomar comprimidos, na posologia prescrita, onde figurava como um impaciente paciente.
Neste intervalo da vida, dera-se conta, constrangido, de que o silêncio era intolerável, que o pensar com vagar era tortura, e que necessitava, como o dependente químico da droga, da correria para se afugentar de si mesmo, evitando, ou tentando fazê-lo, de estar em solilóquios.
Agora que a alta desejada foi enfim concedida, revia, com aparente e surpreendente calma, as lições que aprendera sob o castigo do ostracismo involuntário.
Praguejava por aquela enfermidade imprevista, parecia doer, latejar, mas, no íntimo, era a detenção dos movimentos que o fazia sofrer, como pássaro engaiolado. Com o inchaço da perna, pequeno abscesso formou-se, purulento, reclamando cuidados de terceiros, a fazer curativos, cuidando da higiene da pequena chaga exposta.
Momentos em que dava ouvidos à tagarela da empregada. Para não ser inconveniente, participava de suas narrativas, detalhes  de uma vida simples, às voltas com os problemas comuns, nos embates diários pela sobrevivência.
Dava-se conta de sua natureza reservada, introspectiva, quase antissocial. Estava perto dos cinqüentas janeiros, ainda assim renegava compromissos, compartilhar sua vida com mais alguém. Detestava reuniões, que não fossem as profissionais. Dir-se-ia um misantropo assumido, eremita moderno, não fornecendo ensejos a assédios femininos, embora fosse um homem conservado e até atraente. Não se permitia a tais convívios, nunca especulou por quais razões. Sua postura não admitia invasões à sua privacidade, nem aos colegas mais próximos, arredio que era a intimidades.
Naqueles modorrentos e espaçados dias de reclusão, atentou para o olfato, sentindo nas narinas o aroma dos temperos vindos da cozinha, a salsa, o coentro e, principalmente, o alho. Sempre se alimentando fora, não se detinha em aguçar o faro, como era seu costume de menino. Aquela mistura de sensações o reportavam à infância, parecia estar esperando pela mãe no preparo dos alimentos, na distância de suas reminiscências. Fora filho único, já órfão dos pais. Também os produtos utilizados na limpeza do chão e dos móveis, traziam lembranças, saudades. Estava se desconhecendo, ou estaria se descobrindo? Momentos em que se permita um sorriso, indulgente consigo mesmo. Será que a enfermidade o deixara frágil, sensível? Abstraía-se como se apresentado a um estranho, partilhando, por fim, com alguém, como se dividido em duas personalidades, uma analítica, racional e fria, outra mais permissiva, saudosa, talvez romântica. Tinha algumas gravuras espalhadas nas paredes, perdidas e desfocadas de suas retinas de longa data, vistas, saboreadas como novidades, com a curiosidade e atenção como se nunca tivessem sido apreciadas antes. Até o folhear de velho álbum de fotografias, em redemoinhos pretéritos vendo-se em outras fases de sua existência, permitindo-se voar com as asas de um petiz que foi em algum passado, soterrado pelas conveniências adultas.
Estaria ficando velho, meditativo, melancólico? Aquela idéia o assustou, lembrou-se de que já não era jovem, a juventude passara aos seus olhos com a fluidez de uma ventania, raras recordações, poucos amores sem conseqüências, nada marcante, nem mesmo uma desilusão amorosa a ser chorada.  Os poucos amigos perderam-se na voragem dos tempos, esquecidos, raramente relembrados, aonde andariam? Suas feições trazidas dos recônditos das memórias reavivadas, parecendo que o abraçavam , ressuscitados do fosso do passado. Fora feliz. Então sorria, como reencontrando-se com sua história e suas personagens, sendo ele o protagonista a rir e a se divertir, despreocupado de qualquer amarra a retê-lo na carantonha das responsabilidades. Cerrava o livro das reminiscências representado naquelas já amareladas fotografias.
Aquele período intramuros a vergastar suas entranhas, a explorá-lo, trazendo-o descongestionado da indumentária social e impositiva, o devolvia a si mesmo, prazeroso de viver e voltar a sonhar, não mais se escondendo na sua aparência sóbria, inescrutável a outros, e às ilusões.
Aprendera muito naquele claustro indesejado, a repensar-se e rever-se, a trazê-lo melhor em seus juízos, talvez coisas da dor a cutucar humores, a nos fazer mais humanos, sem a necessidade de ostentar fortalezas, de se esconder no orgulho. Há dores que ensinam bem mais que maltratam... Cuidar da pústula vertida na pele, assepsia física e espiritual, curativos diários, a presença da vulnerabilidade, de como somos doloridos e nos inibem vôos ousados, alados pela soberba e incríveis leviandades que a mente nos transporta quando, imunes, parece que nada nos incomoda... Sobretudo reconhecer-se necessitado da ajuda de alguém próximo, quando, por vezes, nos sentimos autosuficientes, verdadeiros semideuses.
Vermos como ficamos sofridos e gememos dengosos, a criança desponta no adulto e ficamos mimados, quando o infausto nos visita, abrem-se portas antes inauditas, inusitadas e inesperadas, a nos fazer crescer nas observações jamais percebidas...
Pegava a valise e o paletó, aspirando gostosamente o ar impregnado pelo café coado na cozinha...
Ah, se pudesse ser entendido, por bizarro que pareça, já tinha saudades daquela ferida!


* Publicado no BLOG DO LIMA COELHO (17/09/2012) - BLOG LITERÁRIO - CONTOS, CRÔNICAS, POESIAS E ARTIGOS LITERÁRIOS ( + de 6 milhões de acessos na internet). Ilustrações de Mel Alecrim, contista e poetisa.

quarta-feira, 8 de abril de 2015



MEU PAI, EDILOY FERRARO -  * 08/12/32  -  + 05/04/2015
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