sábado, 28 de setembro de 2013


ÁGUAS E MÁGOAS ( CONTO )





Suas lágrimas mesclavam-se com o suor. Onde as mãos fortes torciam as peças, confundindo-se com os respingos da água da torneira aberta do tanque. Assim ninguém percebia, reminiscências que pareciam acompanhá-la naquele trabalho cotidiano, lavar e estender as roupas nos varais.

Na pressão exercida naquelas vestes alheias, forma de arrecadar o sustento dos 5 filhos, parecia desafogo imprimido com força, sustendo gritos e dispersando tristezas. Ao término, exaurida, já não pensava nos problemas, apenas no descanso da lida, a recomeçar no dia seguinte.

Condenada pela morte do companheiro, cumpria pena e trabalhava no cárcere como lavadeira, uma liberalidade da diretoria do presídio e forma encontrada para remeter alguma importância aos filhos, espalhados em casas de amigos e parentes, após a tragédia.

Cansara-se de ser constantemente espancada, apanhando como um Ser sem vontade própria, ao sabor dos humores etílicos daquele homem rude e imprevisível. Agüentar os sopapos desferidos até que suportava, mas que não tocasse nos pequenos e indefesos, isso não permitia. Virava uma fera em defesa dos filhotes. Crescia em sua fúria leonina, inimaginável na postura frágil e acanhada.

Que Deus a perdoasse pelo desatino, mas não via outra forma de dar cabo àquela situação. Era a miséria e o sofrimento dos gritos e agressões costumeiras. As crianças encolhiam-se aterradas com as investidas daquele homem furibundo, incapaz de atos de delicadeza, exceto nos momentos em que a procurava como fêmea, satisfazendo seus desejos carnais, feito animal instintivo, não humano. Raros instantes em que parecia lhe dar importância, em que a desejava pelo seu corpo não entendendo  sua alma.  A culpava por tudo que a vida madrasta lhe impunha, os reveses da sua trajetória, os percalços dos caminhos errantes, do serviço duro, inconstante. Dos bicos eventuais para ganhar o pão, despendido pelo caminho entre goles, de boteco em boteco. Ela e os filhos com os trapos e trastes mudando de endereço de tempo em tempo, despejados por falta de pagamentos, errando de barraco em barraco, feitos nômades.

Jamais fora capaz de supor que um dia cometeria um crime, ceifando a vida de um semelhante. Por mais difícil que fosse a convivência, matar nunca esteve em seus planos, porém, em defesa de si mesma e dos filhos, agiu determinada, superando a diferença de forças entre um homem avantajado e forte para uma mulher franzina e de estatura mediana. Depois do terror imposto a todos no lar, vociferou até quedar-se desfalecido na embriaguez, estava chumbado naquele corpo encharcado de cachaça. O rosto marcado de hematomas a fez decidir-se pela libertação.  Nunca mais aquelas mãos se levantariam para agredi-la, sem clemências, o que a aliviava a consciência, apesar de sentir-se impura diante às leis divinas. Persignava-se nestes instantes a lembrá-la a desobediência máxima dos Mandamentos.

O julgamento voltava em suas reflexões. A figura daquele homem de palavreado pomposo, em sua capa preta, pedindo contra ela a condenação máxima, distante de suas razões e sentimentos, vendo-a, injustamente, como uma selvagem a aproveitar-se da condição alcoólica do companheiro para tirar-lhe a vida... Parecia falar de uma outra pessoa, calculista, má, abjeta, premeditada, mesquinha, assassina determinada e cruel; não dela, tão insegura, tímida, trabalhadora e recatada.  Quis gritar, mas foi retida, ainda mais uma vez calada, não bastasse as palavras  eternamente engolidas, o choro sufocado, as angústias reprimidas. Até para chorar abria a torneira, com a água caindo, suas mágoas ficavam despercebidas. A mão cautelosa do advogado de defesa a segurou, retida em sua indignação, sem forças para rebater as acusações injuriosas, carregadas de inverdades. Não, aquele homem de palavreado sofisticado não poderia sequer supor o que fosse a opressão de uma vida amarga como a dela, senão  não a execraria diante a todos aos que cabiam dar o veredicto sobre aquele crime. Sabia-se culpada, não procurou fugir de suas responsabilidades, porém jamais premeditou o assassinato, agiu por impulso, autodefesa, a sua própria e principalmente de seus filhos ameaçados. O que diria aquele acusador, caso estivesse sendo julgado o morto, no papel de assassino ? Sim, pois numa daquelas surras sofridas poderia ela ser a vítima, assassinada, ou pior, algum de seus filhos, na gana de um pai desnaturado e embriagado. 

Reteve o grito, o choro, a mágoa, como sempre. Parecia uma represa prestes a romper o dique, mas, deteve-se, talvez não por si mesma e sim pelos pequenos que dela necessitavam. Era um vulcão prestes a implodir em lavas incandescentes e fumegantes, arrasando tudo o que viesse pela frente.

A força imprimida na roupa retorcida aplacava a fúria, percebia-se enforcando aquele homem de fala difícil, de olhar frio e decidido, a acusando das maiores baixezas, fazendo-a se sentir pior do que a situação em si já a colocava... Tremia , talvez o matasse, se pudesse, naquele momento, isso a preocupava, ressentida e culpada pelos pensamentos irados.  Por que seria que a idéia de matar, antes tão distante, inimaginável, lhe ocorria nestes instantes de indignação, com freqüência ? Antes sacrificar um frango a constrangia, agora, em pensamentos, queria vingar-se do acusador.  Vago temor a visitava nas cogitações, talvez por já ter matado uma vez, meu Deus ! Sacudia a cabeça como querendo afugentar as más intenções, coisas abomináveis.


 Seus gestos foram contidos, mas o olhar ninguém pôde impedi-la, o fitou com firmeza, altiva, olhos nos olhos, entendesse ele o que lhe ia na alma, seu sofrer e seu ódio. Ele tinha a palavra, a lei, o estudo; ela a sua dignidade, sua vida humilde mas honrada.

Talvez sim, ela fosse capaz de novamente matar, a vida já lhe parecia uma carga penosa demais para carregar. O corpo do ex marido voltava em sua mente, engolfado em sangue, olhos vidrados, asfixiado até a convulsão, as mãos feito garras imprimindo a pressão impiedosa na garganta, consumindo suas resistências, enfraquecido pelos teores alcoólicos que impedia a reação. Era uma fera no ataque, não dando chances para a presa, alimentada pelo medo a fazê-la forte e ousada.  

Na aula de direito penal, o velho professor,  então  já um desembargador,  embalado nas lembranças, narrava esta história do início de sua carreira, atuando como promotor público de uma comarca pequena, relembrava que, se fosse hoje, não teria sido tão impiedoso com aquela pobre mulher...

  Os olhos raivosos dela não foram esquecidos, ainda os acompanhava.

Texto classificado para publicação em livro na ANTOLOGIA CENAS COTIDIANAS  da editora Beco dos Poetas e Escritores, outubro de 2011
Selecionado para publicação em livro na antologia de contos COMIGO NINGUÉM PODE, da editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE, Rio de Janeiro- RJ, lançamento novembro de 2013.