*Publicado em livro na ANTOLOGIA CONTOS DE AMOR & DESAMOR, lançamento junho/2014, editora CBJE-Rio de Janeiro-RJ.
D E S E N C O N T R O S

O que o levava a apresentar-se naquele consultório, adentrar aquela sala em luz baixa, deitar-se naquele divã e rememorar a um estranho, homem sisudo e de poucas palavras, fatos que o marcaram em sua trajetória, numa viagem ao pretérito, como se desenrolasse em filme suas reminiscências ?
Chegar até ali não fora fácil, teve que vencer resistências pessoais e íntimas, sempre se considerou uma pessoa equilibrada, ciosa de si, e com uma auto-estima elevada, portanto imune àquilo que julgava destinado aos fracos de ânimo. Ainda se perguntava sobre as razões que o levava a parecer falar sozinho, não fora a presença daquele analista, quase nunca o interrompendo, ainda assim de forma monossilábica, como uma breve pausa. Parecia atento à sua narrativa a tomar algumas anotações em uma caderneta. Sentia-se um rato em um laboratório de pesquisas. Aquilo era desconfortável, pagar para ser exposto, revendo lembranças, retornando fatos aparentemente triviais e irrelevantes.
Sujeitara-se a isso movido por dores morais que jamais imaginou sentir. .Seu castelo esboroou com a decisão terminativa do relacionamento conjugal. Posição unilateral, implacável, a seu ver injustificável. Parecia incrédulo às advertências e lágrimas, vistas amiúdes, no semblante daquela que amava, e a quem se consorciara em um casamento memorável. Os pedidos dela pareciam irreais, desnecessários. Percebera-se sem chão, egoísta, ao não dar atenções aos reclamos de distanciamento implorados por ela, alegando sentir-se só com a convivência com ele, sempre atarefado e alheio ao mundo dela, confundida como um objeto da vistosa residência, sentindo-se uma inútil.
sendo, todavia, convencida pelas contemporizações do marido, até desistir de expor seus pontos de vista, parecendo concordar com ele. Fora vencida no silêncio, o assunto perdera a vitalidade, parecendo arquivado.
Imaginava fazê-la feliz, a poupando de uma iniciante carreira de advogada, com todos os óbices que qualquer carreira inicial apresenta. Afinal, tinha uma situação financeira excelente, o que ganhava dava muito além do necessário para ambos, não tinha porque incomodar-se com nada relativo à sobrevivência. Todas as suas vontades poderiam ser supridas, nunca foi de regatear nas despesas. Tiveram uma tórrida paixão nos tempos de universidade, herdara como filho único a empresa da família, já constituída e próspera. Mas a percebia infeliz. Imaginava que tendo tudo o que precisasse, pela origem dela, família classe média, e de ter lutado com as dificuldades inerentes, a confortasse não precisando mais incomodar-se com as comezinhas necessidades.
Presentes, viagens, o que ela quisesse, estava disposto a tudo para alegrá-la, como era ela antes. Não haveria porque ela se incomodar com trabalhos fora, não necessitavam disso, eram suficientemente abastados.
Ela o olhava tristonha, como se fizesse um apelo, mas silenciava, era uma mágoa que se instalava naquele rosto jovial e belo. Principiava-se a ruptura da lealdade e do respeito, conspurcado por ele contra ela, na melhor das intenções. Ele parecia não ver um palmo adiante do nariz, talvez por ter sido filho único achasse que o mundo girava em torno de si mesmo, suas realizações não poderiam ser as delas, não era uma questão de dinheiro. Mas ele, possivelmente, não se conhecia.
Os dias pareciam tediosos, a buscava, e a encontrava insatisfeita, melíflua, distante. Geralmente introspectiva, ausente, como uma sombra a percorrer a casa. Se não falasse com ela, provavelmente, não obteria qualquer reação.
No início, havia a recepção na sua chegada, o via com alívio, como se estivesse entediada de ficar apenas na companhia da empregada, então curtiam aqueles momentos a dois, ela o ouvia sobre o seu dia e seus afazeres, parecia entreter-se com seus comentários.
Com o tempo, até mesmo aqueles momentos rareavam, parecia estar só em casa, falando alto com a intenção de ser ouvido por ela, até surpreender-se ao vê-la aturdida na leitura de um livro, ou fazendo algo sozinha,e alheia. Aos poucos, sua presença parecia indiferente.
Mudara hábitos, saía mais cedo dos compromissos, tentando suprir a ausência de que ela sempre reclamava, pretendendo surpreendê-la, estar mais próximo. Com os olhos da esperança pensava enxergar pequenos avanços, a estimulava nas conversas, buscava, obsequioso, um sorriso, obtendo, quase sempre, um riso, breve e apagado.
Chegara a imaginar que estivesse com algum problema de saúde, embora fisicamente não demonstrasse qualquer desconforto. Talvez deprimida, sugeriu-lhe que convidasse uma das primas para visitá-la, ou mesmo fosse fazer uma viagem para visitar a família, moradores em uma pequena cidade interiorana. Parecia animada quando esta possibilidade era sugerida, porém não tomava a iniciativa de viajar, e o assunto ficava no esquecimento.
Algo a incomodava, sabia-o bem. Nada tinha da estudante animada que conhecera em um ardoroso namoro, em que pareciam viver um para o outro. Animada, tinha projetos e sonhos, assuntos que a movimentavam, e o encantavam.
Espaçavam as saídas noturnas do casal, não que ele não insistisse, mas ela parecida desestimulada de sair de casa. Como ,dizia ele, se você queixa-se de tédio, mas nega-se a se divertir ? Vá entender as mulheres, repetia em voz baixa de si para si.
Ocorria que nas saídas, apenas ele tinha seus assuntos a falar, ela apenas uma paciente ouvinte. Tinha ele a narrativa de um dia de trabalho, de suas realizações, da sua rotina cheia de acontecimentos úteis, quanto a ela, sentia-se amortecida, sem nada a acrescentar de si.
Todavia, no decorrer dos tempos, nem mesmo reclamava mais dos inconvenientes imprevistos que a deixava solitária. Parecia não mais importar-se com aquilo.
Aos poucos, estavam sob o mesmo teto, juntos e distantes.
Certo dia, não a encontrou em casa, não tinha o hábito de sair sozinha, não sem antes avisá-lo, razões tinha, então, para preocupar-se.
Sobre a mesinha de centro, com um cinzeiro de cristal sobre um papel, uma carta, na verdade uma narrativa, como um conto...Falava de um pássaro feliz com sua vida, de cantar e de voar, para onde bem quisesse, sendo os dias, uma verdadeira emoção, livre, realizado com a sua vida e sua liberdade. Certo dia fora aprisionado em uma gaiola finíssima, elegante e bela, grande e confortável, mas restrita na sua dimensão, farta de ração de boa qualidade, protegido das intempéries climáticas e dos predadores, uma segurança fausta, não mais haveria de buscar o seu próprio sustento, arriscando-se em terrenos ermos, imune aos perigos. Então ele minguou, não cantava, não brincava, e sua rotina de prisioneiro o asfixiava...

Abateu-se sobre ele a tristeza, parecia sentir-se culpado por não conseguir viver bem com seu grande amor.
Na separação, ela fez questão de não querer nada do patrimônio, dispensava a pensão e qualquer direito.
Tempos depois a encontrou, por acaso, ao passar por uma rua, no centro da cidade a esperar um ônibus, com pastas nos braços, levando processos. Estacionou o carro mais a frente e voltou até onde ela estava.
Cumprimentaram-se, falaram amenidades, como quem receassem tocar nos assuntos do passado, pareciam velhos amigos que casualmente se encontravam. Ele tinha prevenção em falar qualquer coisa, administrava as palavras, não queria perdê-la de vista para sempre... Ofereceu uma carona, como ameaçasse chuva, o coletivo estava atrasado, acabou aceitando.

Parecia que ela entendia seu olhar, suas dúvidas...
Deu-lhe um beijo fraterno em seu rosto, aconselhando-o a buscar se conhecer.
* Ilustrações da escritora / poetisa Mel do Blog do Lima Coelho - Contos, Poesias, Artigos e Crônicas - São Luiz / MA.